Espírito de Heitor
Palestra do ministro Mangabeira Unger na FIESP
No dia 13 de outubro, o ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, fez uma interessante palestra na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), na capital paulista, sobre o Plano Estratégico Nacional de Defesa e a reorganização da indústria nacional de defesa. A revista Tecnologia & Defesa esteve presente ao evento. Eis um resumo da palestra.
A estrutura geral da Estratégia Nacional de Defesa está organizada em três vertentes das quais a primeira ocupa a maior parte do espaço do documento. A primeira vertente é a reorganização, a reorientação e o equipamento das Forças Armadas. Essa proposta tem como complemento uma série de proposições a respeito do desenvolvimento dos setores estratégicos: o espacial, o cibernético e o nuclear. A segunda parte tem a ver com a indústria nacional de defesa. E a terceira diz respeito à composição das Forças Armadas, inclusive a evolução do Serviço Militar Obrigatório.
A premissa é que há um vínculo indissolúvel entre projeto forte de desenvolvimento e projeto forte de Defesa. Se o Brasil quiser desbravar um caminho singular e rebelde no mundo e ascender ao primeiro plano, precisa poder dizer não quando tiver de dizer não.
Nós não temos nenhuma dúvida, incluo ai o ministro Jobim e o próprio presidente Lula, que a maior dificuldade nessa construção tem a ver com as idéias, com as premissas, com as atitudes. De todos os países na História Moderna do mundo, o Brasil é o menos beligerante e o que menos contato teve com as guerras. Essa orientação pacífica faz parte de nossa identidade nacional e esse é um valor que nós queremos conservar.
O nosso pacifismo, porém, não diminui a nossa responsabilidade. Precisamos ter margem para construir o nosso próprio modelo de desenvolvimento e para poder resistir não só as agressões, mas também às intimidações.
Assim como é difícil para o País encarar essa tarefa dada a sua tradição pacífica, também é difícil para as nossas Forças Armadas cultivar a disciplina do imperativo do combate sem a experiência concreta da guerra. Mas é isso que teremos que fazer.
No centro da discussão nacional eu espero que a Estratégia Nacional de Defesa suscite uma grande questão que tem duas faces: uma face é a pergunta: qual é o alcance das nossas ambições? Queremos ou não queremos ser um grande país? Se quisermos, teremos que nos defender; a outra face é a disposição para o sacrifício. Defesa tem tudo a ver com sacrifício. E, em última instância, disposição para sacrificar nossas vidas. Mas, antes disso, há o sacrifício de tempo de nossa juventude e o sacrifício dos recursos da nação. Nada é mais custoso no mundo do que independência nacional. O Brasil terá que decidir se está ou não disposto a pagar pela sua independência. Nós não devemos sofismar essa questão. Devemos apresentar com clareza o limite das nossas ambições e o limite da nossa disposição para sacrifícios.
Eu não vou esboçar todas as partes da Estratégia da Defesa. Vou focalizar apenas a parte que tem a ver com a indústria nacional de defesa. Permito-me, entretanto, sugerir uma diretriz que perfaça toda a Estratégia Nacional de Defesa.
A essência que propomos não é o equipamento das Forças Armadas. O equipamento é uma conseqüência indispensável. A essência é a reconstrução de nossa cultura militar, uma cultura pautada pela imaginação, pela audácia, pela flexibilidade, pela capacidade de desbordar e de surpreender. Quando se estabeleceu o Comitê Ministerial de Formulação da Estratégia de Defesa, eu disse: “Nós não somos os mais poderosos; sejamos os mais imaginativos e arrojados”.
Uma idéia central na Estratégia Nacional de Defesa é a construção de uma força armada que não apenas tenha dentro de si certas vanguardas, certos núcleos de modernidade, mas que se transforme toda ela numa vanguarda marcada por uma radicalização de um ideal de flexibilidade. Em última instância, esse ideal tem de estar encarnado no indivíduo, no infante, no marinheiro, no fuzileiro, no aviador combatente. Para representar o ideal que propomos, esse indivíduo tem que reunir três séries de atributos:
Em primeiro lugar tem que ter a capacidade de atuar em rede com os outros componentes de sua própria Arma, mas, na verdade, com todos os elementos das nossas Forças Armadas, inclusive por meio de uma interação entre as forças terrestres, marítima, submarina, aérea e o monitoramento da superfície da terra e domar conduzido a partir do espaço. Essa não é uma mera questão tecnológica, embora evidentemente tenha implicações tecnológicas.
Impõe-se um grande avanço em matéria de coordenação das Forças Armadas em cima e em baixo. Em cima, pela construção de um Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas que seja forte, que seja um manancial de uma doutrina unificada. E, em baixo, pelo atendimento dos requisitos para uma coordenação eficaz na ponta, até mesmo em questões comedidas como a congruência dos distritos em que se divide o País para as três Forças.
A segunda série de atributos que o indivíduo deve reunir para poder encarnar essa cultura militar vanguardista, é que ele seja capaz de combinar dentro de si qualificação técnica com rusticidade, com a disposição de enfrentar os ambientes severos que podem existir nos diferentes teatros de operações.
E, a terceira série de atributos, a mais difícil e a mais importante, é que a Força, sem perder as características que a destingem, sobretudo, de hierarquia e disciplina, é a de que progressivamente algumas das características tradicionalmente atribuídas ao uma força irregular, como a capacidade de atuar em situações em que a estruturas de logística e de comunicação estão sob ameaça, sob pressão, de desconcentrar-se sem perder sua unidade.
Esse avanço, essa radicalização do lineal de flexibilidade, tem de estar sempre a serviço de objetivos estratégicos claros. Por exemplo, a capacidade da Força de desconcentrar-se para induzir a desconcentração da força inimiga e seguir essa desconcentração induzida, por uma concentração fulminante e decisiva.
É isso que nós queremos. Uma cultura militar e vanguardista. Todas as nossas propostas de reorganização, de reorientação e de equipamentos estão a serviço dessa idéia.
Agora, eu quero passar para a segunda parte do meu comentário e focar a estratégia que tem a ver com a reconstrução da indústria nacional de defesa. Cinco idéias figuram no centro das nossas propostas. A primeira idéia é que as empresas privadas de defesa devem ter um estatuto, um regime jurídico, regulatório e tributário especial, que as resguarde contra as pressões de curto prazo mercantil e que assegure a continuidade nas compras públicas, inclusive ao protegê-las do risco dos contingenciamentos orçamentários e ao eximi-las das regras gerais de licitação pública. Tudo isso poderá ocorrer por instrumentos de direito privado [Golden Share] ou por instrumento de direito público [licença regulatória].
A segunda idéia é que a parte estatal de nossa indústria de defesa deve operar no teto tecnológico, não no chão tecnológico. Deve fabricar só aquilo que as empresas privadas não possam fabricar de maneira rentável a curto e a médio prazo.
A terceira idéia, é que deve haver um vínculo próximo entre pesquisa e produção. Como os senhores sabem a situação que existe agora, é que nós temos dentro das Forças Armadas certas unidades de pesquisa avançada que não têm qualquer desfecho produtivo. E nós temos algumas unidades de produção cujas linhas de produção são relativamente retrógradas e não orientadas por pesquisa avançada. Não é isso o que queremos. O que queremos é uma ligação íntima, orgânica, entre pesquisa avançada e produção avançada.
A quarta idéia é a de que as nossas parcerias com países estrangeiros, em matéria de tecnologias de defesa, devem estar sempre condicionadas à contribuição que elas possam dar ao fortalecimento de nossas capacitações tecnológicas autônomas.
Vou exemplificar esta idéia abstrata com um problema concreto que é a substituição de nossa frota de caças de combate. Posso fazê-lo com alguma clareza inclusive porque o processo [Request For Information] do projeto F-X2 já se concluiu, já terminamos a primeira etapa desse procedimento.
Nós enfrentamos um dilema que é corriqueiro para potências médias ou potências regionais. Nós não podemos tolerar o perigoso hiato de desproteção aérea. E temos que substituir a nossa frota de aviões de combate num intervalo temporal entre 2015 e 2025. Ao mesmo tempo, porém, insistimos em não sacrificar o futuro ao presente. Queremos resolver esse problema de uma maneira que contribua com a nossa independência tecnológica. Há mais de uma maneira de fazer isto.
Então vamos tomar dois exemplos: suponhamos um determinado avião, de quarta geração. Vou dar o exemplo do Gripen, o avião anglo-sueco, já que foi um dos selecionados no procedimento que está em curso. Digamos que ele apresenta certas limitações técnicas, como raio de ação, a falta de tecnologia de baixa assinatura radar, e a limitação de capacidade para manobras radicais, o chamado impulso vetorado.
Então nós podemos conceber uma fórmula do seguinte tipo: vamos propor ao parceiro estrangeiro fabricar no Brasil em parceria com empresas brasileiras uma nova versão, uma seqüela da versão existente desse avião, porque assim ajudaríamos a resolver simultaneamente dois problemas: o problema das habilitações técnicas e o problema suscitado pelo desejo de não sacrificar o futuro ao presente e de priorizar a capacitação tecnológica nacional.
Não resolveria um terceiro problema, que é a importância que tem nesse avião os componentes americanos. E, é claro que não queremos que a solução do nosso problema do hiato e desproteção aérea nos coloque numa posição de dependência tecnológica em relação a uma potência que notoriamente resiste à transferência de tecnologia e usa as tecnologias ilimitadas para exercer influência política.
Agora, consideremos uma segunda fórmula, que é o outro avião escolhido como um dos candidatos ao curso dessa primeira etapa: o Rafale francês, um avião novo. Não vamos propor uma nova versão, mas imaginemos que o Estado francês se disponha a operar uma transferência irrestrita de tecnologia, inclusive os códigos-fonte, e que nossas empresas nacionais nos assegurem que com esses elementos elas sejam capazes na etapa imediatamente subseqüente de fabricar sozinhas os ganhos daquele avião.
Ai haveria duas questões práticas: qual é o nível mínimo de compra que detonaria essa transferência irrestrita de tecnologia, e como podemos renegociar as cláusulas para organizar o mercado mundial em seguida e assegurar nossa capacidade de fabricarmos sozinho um novo avião em futuro próximo, com base na posse daquelas tecnologias transferidas?
São apenas duas fórmulas. E o que eu quero ilustrar com esse exemplo é que há mais de uma maneira de resolver o problema, de não sacrificar o futuro ao presente. E nós temos de considerar todas as alternativas sem, ao mesmo tempo, deixarmos de assegurar a prioridade da nossa capacitação e da nossa independência.
A quinta idéia das nossas propostas a respeito da reorganização da indústria nacional de defesa é que a política de compras do Estado deve ser coordenada. Nós precisamos ter uma coordenação eficaz no Ministério de Defesa da política de compras e não permitir um sistema inteiramente descoordenado e descentralizado de compras. Esse é um requisito inclusive para que se possa assegurar a unidade da pesquisa e da produção, e se possa avançar no objetivo maior da Estratégia Nacional de Defesa de construir uma cultura militar vanguardista voltada pelo ideal de flexibilidade.
Essas cinco idéias evidentemente não esgotam os problemas suscitados pelo esforço de propor uma reconstrução na indústria nacional de defesa. Há outro problema que eu quero descrever, e sobre o qual muito desejo ouvir reflexões.
Como todos sabem, a indústria de defesa enfrenta um problema de deficiência, de escala, e, portanto, de custo. Uma das razões é que por sua própria natureza é caracterizada por uma despadronização dos produtos e serviços mais avançados. Esse é um problema enfrentado até mesmo pelos Estados Unidos que atuam numa escala relativamente gigantesca em comparação com a escala em que nós teremos que atuar. E que, por isso, em muitos setores de sua produção, precisam garantir o custo das empresas privadas de operar o regime. Se nós vamos operar em escala menor por definição, vamos enfrentar o problema numa dimensão maior.
É claro que podemos atenuá-lo pela conquista de uma clientela estrangeira, sobretudo, mas não apenas na América do Sul. Se a nossa concepção da indústria nacional de defesa é uma concepção estratégica, não podemos depender dessa clientela. Nós vamos ter que encontrar soluções inovadoras para esse problema. Esse é um dos vários quesitos em que o seu aconselhamento seria de mais importância.
Eu concluo com algumas palavras sobre o atual processo e o daqui para adiante.
Nós nunca tivemos em toda a nossa História um grande debate civil e nacional a respeito da Defesa. Agora eu espero que tenhamos. Nós iniciamos esse trabalho com as Forças Armadas, o ministro Jobim e eu, com o apoio e a orientação do presidente, discutindo numa primeira etapa uma série de hipóteses de emprego da Força, que vão desde as hipóteses de monitoramento das fronteiras e de território em situações de paz, até hipótese extrema de uma guerra de resistência nacional. E essa hipótese extrema da guerra de resistência nacional é muito útil, não apenas por sua importância intrínseca, mas também porque suscita o problema maior da combinação de características de uma força regular e de uma força irregular, o aprofundamento de um ideal de flexibilidade.
Em seguida, começamos a construir, com engajamento crescente das Forças Armadas, a proposta que agora está em fase final de consideração. É uma experiência extraordinária a que fizemos. Muitas vezes, no curso deste ano, ouvimos dos oficiais-generais das três Forças que nunca em suas carreiras haviam tido uma discussão sustentada das questões militares conduzidas, suscitadas pelo serviço. É impossível exagerar a importância desse processo para País.
No dia 3 de novembro está marcada uma reunião do Conselho de Defesa Nacional que será a última etapa das consultas a que está submetida à Estratégia Nacional de Defesa. E eu espero que pouco depois a Estratégia possa ser lançada ao País. Mas, nos seus desdobramentos, no seu significado profundo, não é a construção de um governo, é uma construção de Estado brasileiro. E só vai ganhar realidade se for abraçada pelo País.
A grande tarefa será de conscientização. Eu prevejo que a Estratégia será veementemente criticada por certos formadores de opinião como de desperdício de dinheiro ou instrumento de corrida armamentista. É natural, dadas as nossas características admiravelmente pacíficas. Mas entendo que essas críticas, além de previsíveis, serão úteis porque são elas que vão propiciar a nação uma dialética de esclarecimento.
É muito importante que os senhores nos ajudem [os empresários], sobretudo na parte que tem a ver com a construção das idéias a respeito da indústria nacional de defesa, e também muito importante para que a Estratégia Nacional de Defesa não seja vista no País como influenciada para os interesses materiais das empresas. Nós estamos tratando da questão mais grave do Estado brasileiro. E temos de encarar toda essa problemática com enorme sobriedade. É natural que os cidadãos participem da discussão de tudo, mas a reconstrução da indústria nacional de defesa não é um atendimento de interesses empresariais, é um instrumento a serviço do País.
Portanto, o espírito que nos deve orientar é um espírito de sobriedade, de consciência da imensidão dessa tarefa que a contragosto assumimos. Não é o espírito de Aquiles; é o espírito de Heitor.
N. da R.: A reunião do Conselho Nacional de Defesa, prevista para 3 de novembro, foi adiada, em razão das conseqüências no mundo originadas com a crise econômica deflagrada nos Estados Unidos (subprime).
http://www.tecnodefesa.com.br/index.php ... &Itemid=54