ESTRATÉGIA NAVAL

Assuntos em discussão: Marinha do Brasil e marinhas estrangeiras, forças de superfície e submarinas, aviação naval e tecnologia naval.

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#136 Mensagem por Marino » Ter Fev 12, 2008 12:06 am

Jolly Roger escreveu:Marino eu to lendo... Mas confesso que é uma leitura que requer atenção e carinho !!! assim que tiver um entendimento melhor eu postarei algumas perguntas !!!! :? :oops:

parabéns.. certamente esse topico agrega muita coisa e o material é de altissimo nivel !!! :D

Valews.
Estou as ordens no que estiver a meu alcance.
Um abraço




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#137 Mensagem por Marino » Ter Fev 12, 2008 11:17 am

Vou começar a fazer alguns comentários que, creio, facilitarão o entendimento do texto e ajudarão nas perguntas.
Existem dois conceitos que precisam ser entendidos profundamente: a Natureza da Guerra e o Caráter da Guerra.
O Caráter da Guerra nos mostra se ela é predominantemente Marítima ou Terrestre.
A Natureza da Guerra nos mostra se ela é Limitada ou Ilimitada.
Foi o próprio Clausewitz que escreveu:
"O primeiro, o mais importante e mais decisivo ato de julgamento de um estadista ou de um general, é compreender perfeitamente qual o gênero de guerra em que vai empenhar-se, para que não a tome pelo que não é e não queira dela fazer o que a natureza das circunstâncias a impede de ser."
Normalmente podemos dizer que uma guerra é Limitada se os Objetivos Políticos que se buscam atingir com esta guerra são limitados. Não queremos a rendição incondicional do país inimigo, não queremos a destruição completa de suas FFAA, mas atingir um objetivo que nos satisfaça.
Aqui a subordinação da guerra a Política. Os militares necessitam ter em mente esta limitação e agir limitadamente, conforme a necessidade do estadista.
A guerra ilimitada busca um Objetivo Político ilimitado, tipo incorporar territorialmente um país, a destruição total de suas FFAA e a subordinação do mesmo a nossa vontade, etc.
Corbett, mais adiante vamos ver, escreveu que os maiores ganhos da Inglaterra foram quando ela lutou as guerras limitadas.
Isto deveria ser a primeira lição para os governantes.
Anteriormente apresentei o exemplo do Vietnã.
Para os americanos, tratava-se de uma guerra com objetivos políticos limitados, manter o "status quo". Para os vietnamitas, uma guerra ilimitada, pois significava a unificação do país, a retomada da soberania sobre todo seu território.
Então um lutava limitadamente, enquanto o outro usava de todas as formas, todos os recursos, para atingir seu objetivo político.
A Natureza de uma Guerra deve ser profundamente avaliada antes de se lançar um pais numa aventura inconsequente.




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#138 Mensagem por Marino » Ter Fev 12, 2008 11:45 am

Uma outra análise vital da obra de Clausewitz diz respeito a sua Trindade Paradoxal.
Ele falava que a guerra possuia 3 matizes: a violência, as emoções e a razão (subordinando-a a política). Estas 3 matizes foram então associadas ao Exército (FFAA), ao Povo e a Política (ou Governo, ou Governante).
Esta é outra análise a ser feita profundamente.
Alguns autores chegam a propor a construção de um triângulo equilátero de vetores, e conforme a análise mostra a preponderância de uma das matizes, fazer crescer o vetor correspondente, para ao final da análise compreender qual o fator preponderante (e onde devem ser focadas todas as atenções e ações na guerra - fazer Centro de Gravidade).
O Vietnã citado anteriormente é outro exemplo.
Escrevi que os americanos foram derrotados sem sofrerem uma derrota no campo de batalha. Os vietnamitas não poderiam vencer o exército americano, ou influenciar/mudar/destruir o governo americano.
Centraram sua ação na opinião pública mundial, aparecendo como o país pequeno que estava sendo destruído pela super-potência, buscando fazer o maior nº de baixas possível para que os body bags aparecessem todos os dias nos noticiários americanos, etc.
O objetivo era atingir a meta política estabelecida, e não ganhar militarmente a guerra, o que era impossível.
De novo: os americanos lutavam uma guerra limitada e os vietnamitas uma ilimitada. Os americanos faziam centro de gravidade nas FFAA inimigas e os vietnamitas na opinião pública americana.
O resultado é conhecido.

Pergunta simples da produção: quantos políticos compreendem estes conceitos, ou se interessam em ouvi-los dos militares?
===============================================

Separei para tratar de um assunto correlacionado, mas não pretendi seguir direto.
Qual os tipos de guerra mais difíceis de analisar e que fogem da racionalidade? As étnicas, como o massacre entre Tutsis e Hutus, o Quênia atualmente, e Kosovo e sua limpeza étnica; e as religiosas, como no Oriente Médio.
Como vencer militarmente um combatente que acredita que ao morrer vai para o céu e lá estarão lhe esperando 70 virgens?
Há solução militar para este tipo de guerra?
E para as guerras étnicas, onde o ódio racial impera, chegando quase a uma guerra ilimitada, total, como em Cartago antigo, com mulheres e crianças sendo mortas a facão?
Este tema é aberto. Deixo para os comentários dos que se interessaram pelo tópico.




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#139 Mensagem por alcmartin » Ter Fev 12, 2008 11:46 am

[009]

Show de bola, Marino!! Estamos aí, acompanhando, com um certo atraso, como sempre :oops: , mas sempre presente!
E, por favor, toca a frente nas estrategias aereas também...acho até melhor que fica centralizado.

Envergonho-me de dizer que comecei a ler o "Da Guerra", do Clausewitz, mas não consegui acabar... :oops: O zilhão de pág. exige tempo que um simples escrav..., cof!cof!digo, empregado, tem pouco! :D

Só um adendo bem simples, mas que acho pertinente:

"Não queremos a rendição incondicional do país inimigo, não queremos a destruição completa de suas FFAA, mas atingir um objetivo que nos satisfaça."

O Sun Tzu (esse deu, é pequeno! :D )tem um trecho formidável e muito simples , nessa mesma linha. Diz que voce sempre deve deixar uma pequena saída de fuga p/o inimigo, em que fique claro sua derrota, mas não o aniquilamento. Caso contrário, ele lutará até o desespero. Não tem nada a perder e isso pode até provocar uma surpresa... :shock:
O exemplo citado é do gato: ele foge do cão, mas se acuado num canto, o cão poderá ficar em apuros!!! :lol:

abs!




Editado pela última vez por alcmartin em Ter Fev 12, 2008 11:54 am, em um total de 1 vez.
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#140 Mensagem por Marino » Ter Fev 12, 2008 11:52 am

O Sun Tzu (esse deu, é pequeno! )tem um trecho formidável e muito simples , nessa mesma linha. Diz que voce sempre deve deixar uma pequena saída de fuga p/o inimigo, em que fique claro sua derrota, mas não o aniquilamento. Caso contrário, ele lutará até o desespero. Não tem nada a perder e isso pode até provocar uma surpresa...
O exemplo citado é do gato: ele foge do cão, mas se acuado num canto, o cão poderá ficar em apuros!!!

Perfeito!!!
Muito bem lembrado e apresentado no contexto.
Obrigado caro amigo.
Vou tentar finalizar até o fim do mês, pq depois não vou ter tempo para nada.
Sigo sua sugestão e vou postar a parte das "aéreas" aqui, mas não abro mão de sua contribuição e comentários.
Forte abraço.




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#141 Mensagem por alcmartin » Ter Fev 12, 2008 11:55 am

[009]

Abs!




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#142 Mensagem por Brigadeiro » Ter Fev 12, 2008 11:56 am

alcmartin escreveu:O exemplo citado é do gato: ele foge do cão, mas se acuado num canto, o cão poderá ficar em apuros!!! :lol:

abs!


A velha lei do Gato Acuado... É uma verdade incontestável. Em situação como essa, de estar cercado e sem condições de fugir, a única coisa a fazer é um ataque, mesmo que suicida.
No filme "A Irmandade da Guerra" conta algo parecido com isso. A patrulha em que estava o soldado Jin-Tae é cercado por vários dias pelo exército norte-coreano deixando-os sem víveres e com pouca munição. Sem opção e não querendo rederem-se, eles partiram pra cima abriram uma brecha no cerco e conseguiram escapar...

É só um exemplo... :mrgreen:

Até mais!




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#143 Mensagem por Marino » Sex Fev 15, 2008 1:14 pm

Centro de Gravidade (CG)
Conceito de Clausewitz que espressa o ponto ótimo de aplicação de força na guerra, ou seja, o ponto (ou pontos). Segundo o autor, trata-se de “um centro de poder e de movimento de que tudo depende, forma-se por si próprio e é contra este centro de gravidade do inimigo que se deve desferir o golpe concentrado de todas as forças”. Assim, é o ponto (ou pontos) onde a aplicação de força pode produzir os melhores resultados e,.no limite, induzir ao sucesso na guerra, isto é, à obtenção do propósito político.
O CG pode ser muita coisa. Segundo Clausewitz, nos Estados agitados por dissensôes internas, normalmente é a capital, em Estados pequenos que dependem de aliados poderosos, é o exército de seus aliados, numa confederação de Estados, é a unidade de interesses, numa sublevação nacional, ele é formado pela pessoa do chefe e pela opinião pública.
Um exemplo que consta de um estudo americano de 1988 cita “o moral público” como o centro de gravidade dos EUA, explorado com êxito por seus inimigos na guerra do Vietnã. Há, também, quem considere o conceito aplicável aos níveis tático e operacional.

Outro conceito pouco entendido é o CG.
Muitos pensam que ele é somente militar. Grande engano.
O CG pode ser político, como citado anteriormente, Militar (em diversos níveis), pode ser formado por uma pessoa (personalidade), pode ser moral, etc.
E outra coisa: pode mudar durante o conflito.
É, a guerra é o assunto mais importante, vital para o Estado, como já nos ensinava Sun Tzu.
Orestes, estou esperando seus comentários antes de seguir, agora com Mahan e Corbett.
Já adianto aos que possuem paciência para ler o que posto: comparem Mahan com Jomini e Corbett com Clausewitz.




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#144 Mensagem por Valdemort » Sex Fev 15, 2008 1:57 pm

Caros colegas especialmente os da MB .
Gostaria de saber como sera esse PAC naval , em alguns POSTs li que serao 8 navios escolta de 6000 ton deve ser Fragatas com esse peso e porque nao se fala mais em Destroyers .
Quanto aos subs pude entender que nao esta definido o modelo , nao seria o tal Barracuda sem propulcao ? E os navios Patrulhas oceanicos ?
bem torco como contribuinte (ex por enquanto) para que saia 1 reequipamento de 1 linha para a MB e FAB , que alem de ser necessario tb a imagem do nosso pais muda bastante com 1 forca militar de respeito.
Obrigado




"O comunismo é a filosofia do fracasso, o credo da ignorância e o evangelho da inveja. Sua virtude inerente é a distribuição equitativa da miséria".
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#145 Mensagem por Valdemort » Sex Fev 15, 2008 2:08 pm

Alguem sabe me esplicar como faco pra inserir 1 avatar ?




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#146 Mensagem por LEO » Sex Fev 15, 2008 2:10 pm

Valdemort escreveu:Alguem sabe me esplicar como faco pra inserir 1 avatar ?


Valdemort, basta você clicar em "Perfil" e botar o link pra uma imagem que você gosta (por favor, que não seja grande pra não atrapalhar a navegação :wink: )




"Veni, vidi, vinci" - Júlio Cesar

http://www.jornalopcao.com.br/index.asp ... djornal=43

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#147 Mensagem por Marino » Sex Fev 15, 2008 2:54 pm

Valdemort escreveu:Caros colegas especialmente os da MB .
Gostaria de saber como sera esse PAC naval , em alguns POSTs li que serao 8 navios escolta de 6000 ton deve ser Fragatas com esse peso e porque nao se fala mais em Destroyers .
Quanto aos subs pude entender que nao esta definido o modelo , nao seria o tal Barracuda sem propulcao ? E os navios Patrulhas oceanicos ?
bem torco como contribuinte (ex por enquanto) para que saia 1 reequipamento de 1 linha para a MB e FAB , que alem de ser necessario tb a imagem do nosso pais muda bastante com 1 forca militar de respeito.
Obrigado

Caro Valdemort
Sugiro postar estas perguntas no tópico correspondente, deixando este somente para o tema Estratégia.
Forte abraço




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#148 Mensagem por Valdemort » Sex Fev 15, 2008 3:00 pm

Ah OK
:mrgreen:




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#149 Mensagem por Marino » Sáb Fev 16, 2008 4:45 pm

Continuando.
Primeiro somente uma breve introdução.

PENSADORES DA GUERRA NO MAR

4.1 - O USO DO MAR NA GUERRA
Não se irá muito longe na discussão da estratégia naval se não se perceber que existem, pelo menos, três grandes eras do uso do mar com propósitos bélicos, na paz ou na guerra. Enxergar uma continuidade entre o mais remoto passado e o presente redunda em graves erros de entendimento, que levam a projetar no passado as práticas e problemas do presente, destruindo a possibilidade do aprendizado com a história militar do mar.
Ao descartarmos o período arcaico — do neolítico até o surgimento das primeiras cidades — podemos perceber que a maior parte da história humana, desde a invasão dos povos do mar sobre o Egito (5500-4500 A.C) até as batalhas pela posse do Mediterrâneo Oriental entre cristãos e muçulmanos (1500-1600 D.C), foi marcada pelas embarcações cujo tipo mais conhecido é a galera. Esta realidade era conformada pelas limitações impostas pelo remo como força propulsiva; pela limitadíssima capacidade de tanqueamento de água (poucos dias); pela pequena resistência estrutural das embarcações ao tempo (só era seguro navegar de 6 a 8 meses do ano); pela limitada disponibilidade de pessoal para tripular os navios (que obrigava ou ao uso de um grande número de milícias voluntárias por curto período de tempo, ou de pequeno número de escravos de forma permanente); pela extrema dependência do porto base (pela necessidade de dar quartéis de inverno para as tripulações e para reparo das frotas, já que não era fácil mover os artesãos e materiais de um lugar para outro); pelos armamentos, que impunham uma dinâmica de enfrentamento dominante indistinguível da terrestre (a luta de infantaria nos conveses e, por outro lado, a permanente opção de abicar em uma praia e utilizar os navios como fortificações de campo).
Na era das galeras, uma frota podia ser inteiramente criada em menos de um ano, sendo tripulada por alguns marinheiros (pescadores, mercadores) e muitos cidadãos ou súditos, ou escravos, sem nenhuma experiência prévia no mar. Não havia necessidade nem se reconhecia valor na manutenção de uma grande esquadra, na ausência de uma necessidade militar presente imediata. O grande Vegetius argüía mesmo, escrevendo por volta do século III D.C., que para o combate à pirataria bastava criar uma frota de guerra a cada cinco anos, empregando-a durante oito meses — o período entre invernos — para desbaratar os piratas, desmobilizando-a em seguida.
De fato, o conhecimento necessário para construir navios em grande quantidade era relativamente pequeno. Em diversas ocasiões, frotas de centenas de navios foram construídas em alguns meses por um número surpreendentemente pequeno de pessoas: a construção das frotas romanas da Segunda Guerra Púnica, a construção da força de invasão da Bretanha por uma única legião entre 48 e 47 A.C., e a reposição das perdas turcas em Lepanto (duzentas a trezentas galeras). Percebe-se como estes elementos — em especial, a enorme dependência da terra para as operações no mar, tanto em termos das necessidades logísticas quanto da própria forma de guerrear — configuravam um mundo naval inteiramente diverso do que o sucedeu.
Para aquele mundo, as lições do De Rei Militarii (literalmente, “Das coisas militares”, normalmente chamado de “As instituições militares dos romanos”), de Vegetius, ao entender que a guerra no mar era equivalente à guerra em terra com algumas restrições, tinha total validade para a época. Não há registros de qualquer obra que se pudesse identificar como uma tentativa de formular uma teoria para a guerra no mar no período das galeras. A própria idéia de teoria como a entendemos hoje não existia naquele período. Nesse sentido, os registros de Tucídides sobre A história da guerra do Peloponeso constituem uma tentativa historiográfica, com diversas noções úteis e até mesmo inovadoras, mas não são uma teoria da guerra.

A vida a bordo dos navios a vela
As longas viagens, possibilitadas pelas embarcações a vela, mudaram de forma radical a natureza da vida dos homens do mar. Não se voltava mais à terra ao cabo de uns poucos dias; ao contrário, permanecia-se no mar por semanas e meses. A centralidade que a vida a bordo passou a ter para a identidade dos oficiais e marinheiros vem desta época, porque, até então, era normal que as marinhas fossem formadas para a guerra a partir de alguns navios de Estado, ou resultassem do processo de armamento de navios mercantes ou ainda da incorporação de corsários (privateers), fazendo com que, cessado o motivo que havia levado à formação da esquadra, esta fosse inteiramente desmobilizada. Em função das necessidades construtivas dos canhões e das vantagens táticas daí advindas, as marinhas a vela foram se profissionalizando progressivamente, até o ponto em que o serviço naval era uma atividade permanente de vida inteira para grandes contingentes dos homens do mar.


O que associamos com a era da vela teve início com a aventura da Escola de Sagres, pouco reconhecida na literatura contemporânea. Talvez só a corrida para a Lua lhe possa ser comparada em termos de ambição, de recursos e meios mobilizados e de resultados obtidos. Que Dom Henrique, o Navegador, não tenha podido ver a materialização do sonho de uma embarcação capaz de domar o Mar Oceano (como o Atlântico era então chamado) é apenas mais um elemento que engrandece os quase quarenta anos em que “Portugal deu-se todo para fazer o mundo conhecer o mundo”. O navio a vela que nasceu da fusão dos conhecimentos ocidentais e muçulmanos — a caravela — foi a matriz de todos os desenvolvimentos navais da era da vela.
A carraca foi a primeira descendente da caravela em que o papel combatente se sobrepôs às necessidades marinheiras. A necessidade de estabilidade para o disparo dos canhões da carraca foi atendida, em parte, pela concepção de grandes navios — os galeões e os galeões de guerra, verdadeiras fortalezas flutuantes — e, também, por um processo de evolução do jogo de mastros e velas que acabou por configurar a complexa rede de velas e cordames que associamos aos navios da era da vela. Em linhas gerais, tão cedo quanto 1550, a forma do navio a vela já estava definida, embora as questões associadas à otimização das linhas, armamentos, carga, tripulação, navegabilidade e segurança ainda estivessem sendo resolvidas em fins do século XIX. Neste sentido, tanto o Victory (capitânea de Nelson), construído em fins do século XVIII, quanto o Wasa (maior navio a vela já construído), ou o Flying Cloud (talvez o clipper mais veloz já construído) eram extremos do desenvolvimento da idéia original — a caravela — para fins bélicos, econômicos ou de desempenho.
Durante esse processo, cada navio era concebido e construído individualmente, tornando difícil compará-los. Como resultado, os navios foram objeto de várias propostas de classificação que os arranjassem por classes funcionais específicas, permitindo estabelecer equivalências e realizar comparações. Uma primeira classificação, oriunda da observação direta, era orientada por elementos estruturais: números de mastros e conveses como medida da capacidade e tamanho. Outra tinha como referência o número dos canhões, que só ganhou um significado mais preciso quando estes foram padronizados em termos do peso de suas munições. Outra classificação buscava agrupar os navios em função do seu propósito ou, mais freqüentemente, de suas capacidades. No auge da era da vela — 1660 a 1815 —, a classificação dos navios de guerra descendia de sua capacidade de realizar tarefas específicas e de compor a linha de batalha: navios de primeira linha (simplificadamente, os navios de linha, os navios de batalha de 64 ou mais canhões); os de segunda (navios de batalha antigos em que o número de canhões era menos importante do que sua incapacidade de enfrentar navios de primeira linha); os de terceira linha (navios com menos que 50 canhões); e os de quarta linha (as fragatas de até 48 canhões). Uma diferença marcante entre navios de terceira e quarta linha dizia respeito a seu desenho: os de terceira linha eram destinados ao combate, sacrificando velocidade; os de quarta linha privilegiavam a velocidade. A estes se acrescentavam uma variedade de outros tipos de navios, como por exemplo as corvetas (pequenas embarcações de 10 a 20 canhões de uma variedade enorme de desenhos) e os cruzadores (originalmente, navios a vela destinados às longas expedições de mapeamento, pesquisa e comércio, que acabaram por se consolidar num tipo de navio a vela conhecido como fragata). Apesar da enorme distância entre os navios contemporâneos e os do auge da era da vela, os mesmos nomes ainda são empregados, mostrando, de uma maneira bastante sugestiva, como ainda hoje o mundo naval é fortemente influenciado pelo fulgor da era da vela.
Até o século XVIII, as ações no mar eram consideradas semelhantes, em essência, às ações em terra, e não havia nada de extraordinário na nomeação de generais ou nobres para o comando no mar, sem nenhuma experiência prévia. Reconheciam-se as especificidades da vida marinheira e do manejo dos navios a vela, mas isso era considerado, para a boa condução da guerra no mar, menos importante na seleção de um almirante do que o entendimento da arte da guerra ou vínculos aristocráticos. No entanto, deve-se compreender que as marinhas, tal como as entendemos hoje, não se originaram na Antiguidade ou mesmo no período medieval, embora tenha havido navios e guerras no mar nestes períodos. Marinhas são uma invenção recente.
A terceira era — a era da máquina — foi marcada em seu início pelas alterações determinadas, em um primeiro momento, por inovações técnicas com ênfase nas áreas propulsivas, metalúrgicas e de armamentos, consideradas isolamente. Num segundo momento, caracterizou-se pela busca dos melhores arranjos que as possibilidades combinatórias desses elementos permitiam, gerando assim uma dinâmica de inovação complexa cujos efeitos são sentidos até hoje. O fator marcante dessa era foi — aqui vale o lembrete de que uma revolução nos assuntos militares navais pode ter inaugurado uma era que não sabemos ainda nomear — a vigência alternada da predominância temporária de um entre vários arranjos possíveis e concorrentes, sempre marcada pela presença inercial de componentes do arranjo predominante anterior, pela multiplicação dos elementos do arranjo atualmente predominante e pela presença de ensaios, nem sempre bem-sucedidos, de candidatos a arranjos predominantes futuros.

4.2 - O NASCIMENTO DA MARINHA MODERNA
A partir do século XVII, a Marinha Inglesa, reorganizada por Samuel Pepys, redefiniu o relacionamento entre as sociedades e a guerra no mar, lançando as fundações do sistema do almirantado e de senioridade naval que perduram de forma praticamente inalterada até os dias de hoje. Por exemplo, a estrutura hierárquica do almirantado reflete uma tentativa de formalização e adaptação ao que originalmente era apenas a partição dos navios disponíveis em vanguarda onde se colocava o almirante da esquadra (fleet admiral), seguido do vice-almirante da esquadra (vice admiral) que comandava a parte central do dispositivo e, finalmente, o almirante que comandava a retaguarda da esquadra ou contra-almirante (rear admiral).
A era da máquina foi ainda marcada pelo desejo de continuidade das práticas e estruturas que haviam sido amadurecidas na era da vela. Apesar disso, a transitividade entre o mundo marítimo e o mundo naval foi reduzida progressivamente, criando problemas de toda a ordem tanto no entendimento quanto mesmo no preparo e emprego das marinhas. Em nossos dias, a especificidade técnica da guerra naval chegou a tal ponto que parece mesmo difícil conceber qualquer processo de mobilização que possa prover os meios navais tecnologicamente atualizados no caso da necessidade de seu emprego. A esta especialização extremada das pessoas e coisas que compõem as marinhas se podem associar especulações muito amplas, desde a impossibilidade da expansão das marinhas da paz até, mercê das necessidades políticas, de guerras navais travadas muito aquém do patamar técnico conhecido.




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#150 Mensagem por Marino » Sáb Fev 16, 2008 11:39 pm

Continuamos com Mahan.
Lembrem-se do que falei, para lerem mahan com a mente em Jomini.
Tambem coloquem-se no tempo histórico do mesmo, com a transição da marinha a vela para as máquinas, com toda a incerteza que isto trazia, e aparece alguem dizendo que nada mudava.
Mahan, para mim, não pode ser considerado um grande estrategista, mas sim um brilhante geopolítico, que influenciou enormemente seu país.
Ele nos legou os conceitos de Poder Marítimo, Poder Naval, as Fontes do Poder Marítimo, de Comando do Mar (alterado depois para Controle do Mar por Corbett), da Batalha Decisiva, etc.
Aqui começamos realmente a leitura do Pensamento Estratégico naval.
Aproveitem

===============================================

4.3 - ALFRED THAYER MAHAN
O mais influente escritor de assuntos navais é, sem sombra de dúvida, o Almirante Alfred Thayer Mahan, da Marinha dos Estados Unidos. Seus escritos influenciaram decisivamente toda uma geração de políticos e oficiais, trazendo para o centro do debate político-estratégico a discussão sobre o que ele chamava de “poder marítimo”. O Kaiser Guilherme II chegou a declarar publicamente sua intenção de saber de cor o livro The influence of sea power upon history, de Mahan, e torná-lo amplamente acessível a todos os seus oficiais. Em uma visita à Grã-Bretanha, Mahan foi saudado com toda a pompa, tendo privado da companhia da Rainha Vitória e do futuro rei Eduardo VII; foi descrito pelo Times como o “novo Copérnico”, como se fosse o descobridor da centralidade do mar para a grandeza das nações. Discutir Mahan é, portanto, confrontar-se com um verdadeiro mito.
Mahan foi levado a produzir sua obra a partir do convite, feito pelo Almirante Stephen Luce, para lecionar no então recém-fundado Naval War College. A tarefa atribuída a Mahan era a de encontrar conexões entre a prática da guerra em terra e a no mar a partir de exemplos históricos de onde se pudesse derivar um conjunto de lições e preceitos que pudessem ser úteis para a formação dos futuros comandantes da marinha americana.
Diante dessa tarefa, Mahan buscou leituras que pudessem orientar o seu entendimento, acabando por se apoiar em diversos textos de história naval e, de forma marcada, na obra de Jomini; sua confessa ignorância da lingua alemã o impediu de ter contato com a obra de Clausewitz, até então sem tradução para o inglês ou francês. Profundamente religioso, sua visão de mundo é marcada pela convicção de que a Providência Divina instruía não apenas o destino dos povos, mas que se manifestava, mesmo, na inspiração que levava a novas idéias. Sua conversão ao expansionismo americano fundava-se na mesma convicção religiosa; Mahan considerava que o principal benefício a ser conseguido por esta expansão era a de distribuir gratuitamente as benesses do Ocidente a todo o mundo. Nesse sentido, é importante perceber Mahan como um homem de sua época, que via o “fardo do homem branco” (uma concepção racista de que os ocidentais tinham por dever civilizar toda a humanidade) como uma realidade e que entendia a dinâmica conflitiva de poder entre as nações como inevitável e necessária ao engrandecimento de qualquer uma delas. Desta forma, Mahan participava de um entendimento do mundo no qual a guerra era uma circunstância recorrente e inteiramente aceitável.
Mahan trouxe um bálsamo que aliviava as angústias de um momento de transição especialmente doloroso para uma marinha como a da Grã-Bretanha, confrontada com a necessidade de readequar-se para a era da máquina cujos efeitos já se faziam visíveis em todas as dimensões do mundo naval. O vapor questionava o modo de ser de marinhas da era da vela; as granadas de alto-explosivo punham em xeque os navios de madeira; o torpedo ameaçava romper com a proporcionalidade entre o deslocamento dos navios e suas capacidades combativas; o incremento no volume e diversidade no comércio marítimo internacional questionava a predominância do transporte em navios britânicos; a ferrovia acenava com a possibilidade de um desenvolvimento continental independente do uso do mar e dos rios, levando a que países continentais, pela primeira vez, pudessem almejar a prosperidade antes restrita àqueles que possuíam marinhas; o telégrafo reconfigurava as possibilidades de comunicação em terra e a invenção do telégrafo sem fio colocava em dúvida a autonomia plenipotenciária que até então fora a marca do comando no mar.
Além disso, a enorme expansão demográfica resultante dos avanços da medicina e da revolução industrial colocavam em tela questionamentos à própria viabilidade das marinhas como instrumentos bélicos. Por um lado, estes grandes contingentes populacionais podiam ser mobilizados, o que levava à formação de exércitos de massa, cuja dimensão, com o apoio das ferrovias e do telégrafo, podia tornar a projeção de poder sobre terra a partir do mar uma impossibilidade, já que o defensor dispunha de meios e articulação tais que poderia fazer frente a quaisquer ameaças vindas do mar. Isso ameaçava reduzir à irrelevância a opção britânica de fustigar um inimigo continental a partir do mar, o que era a tradição britânica de intervir militarmente no continente europeu. É dizer: o contingente que os navios britânicos podiam desembarcar contra o território de um inimigo continental passava a ser irrelevante em face dos exércitos de massa integrados pelo telégrafo, de tal maneira que a opção por incursões ou mesmo a ameaça de tais incursões perdia qualquer sentido prático para o desenrolar de uma guerra na Europa.
Por outro lado, este mesmo crescimento demográfico, ao reduzir as áreas madeireiras em benefício da agricultura, ao mesmo tempo em que dava base fiscal a marinhas de dimensões extraordinariamente grandes, colocava o problema da disponibilidade de recursos madeireiros suficientes para permitir a construção de marinhas. Embora os navios de aço acenassem com a promessa de reconfiguração da construção naval, os navios de madeira, que ainda eram a base das marinhas, exigiam grandes quantidades de madeira de tipos específicos, principalmente para as quilhas e mastros necessários a grandes navios. As projeções da época alertavam para o fim dos estoques naturais de árvores adequadas à construção naval e portanto pesava sobre os almirantados o receio de que não fosse possível continuar a construir marinhas.
Tudo isso constituía a dolorosa realidade com que a Marinha Real se confrontava, ao ver obsoletos e ameaçados todos os elementos sobre os quais sua glória havia sido fundada. Mahan, ao afirmar a continuidade principial da guerra no mar em todos os tempos, apaziguava a agonia da transição ao assegurar a validade dos arranjos e entendimentos das marinhas. Dessa forma, os desafios sociais, políticos e tecnológicos eram menos relevantes do que as lições eternas da guerra no mar. Mahan instrumentalizava o entendimento de que, por mais que as coisas mudassem — navios de metal, exércitos de massa, telégrafo sem fio —, a guerra naval como praticada pelos britânicos nos séculos anteriores seguiria inalterada.
A Marinha americana recebia Mahan de forma diferente. Ao contrário da Marinha britânica, o final do século XIX viu a Marinha dos EUA reduzida a uma marinha costeira, tecnicamente obsoleta e despreparada para a guerra moderna. Isto refletia uma continuidade, para a Marinha, da tradição militar americana de pequenez e obsolescência na paz e mobilização e modernização na guerra. Mahan era apenas um dentre os muitos americanos que viam em uma marinha oceânica moderna e de grandes dimensões o símbolo e o instrumento da materialização das ambições americanas. Por um lado, isso refletia a necessidade de assegurar o predomínio americano nas Américas; por outro, isso era a forma de atender a aspiração por um papel de destaque nos assuntos mundiais.
Entretanto, ao vincular a grandeza e riqueza dos povos à posse de um grande poder marítimo (tal como ele o definia), e ao apontar os riscos que se anunciavam para a predominância no Caribe advindos da vindoura construção do Canal do Panamá, Mahan articulava de forma sistemática, dando legitimidade pretensamente científica (nos moldes jominianos, em quem Mahan se inspirou) à sua leitura da História em defesa daqueles preconceitos: uma marinha poderosa, uma marinha mercante de grande porte e uma indústria naval plenamente desenvolvida e moderna.
A leitura da História, conduzida por Mahan, não tinha qualquer validade científica. Mahan não chegou à sua conclusões a partir de um longo estudo crítico e reflexão instruída cientificamente; mas sim a partir de uma inspiração, a da centralidade do poder marítimo para a História, expresso na forma do comando do mar. Para ele, o trabalho do historiador era o de “reunir fatos como se reunem tropas”, subordinando-os a uma “idéia central”; alguns fatos, segundo Mahan, “não valiam o evidente trabalho” de identificá-los; e que a paixão dos acadêmicos pela precisão histórica “pode resultar em incapacidade de decidir”. Tais idéias foram expostas em sua palestra proferida em 1902 na Associação Histórica Americana e são uma chave importante para a leitura de sua obra.
A obra de Mahan é grande. Tratava-se inicialmente de séries de conferências proferidas no Naval War College e posteriormente transformadas em livros; boa parte de seus artigos, entretanto, fugia a essa característica e atendia demandas do momento, buscando instruir contextualmente tomadas de decisão políticas. Mahan tinha uma vida pública intensa, sendo chamado a dar parecer sobre questões navais, assessorando o Congresso dos Estados Unidos, realizando viagens de palestras e propugnando o seu entendimento sobre o que deveria ser a Marinha dos EUA.
Assim sendo, Mahan nunca escreveu uma obra de síntese de suas idéias, que se encontram dispersas por seus livros, artigos e conferências. Isso serve de alerta para que não se superestime a importância de seu livro mais famoso, The influence of sea power upon history.
Mahan era um escritor e não um cientista. Suas idéias nunca foram apresentadas em sua inteireza, em uma exposição que as apresentasse de forma completa e com a meta de explicitar o seu entendimento sobre a guerra no mar. Mahan compartilhava uma descoberta e não um processo de análise. Seu uso da História era ilustrativo, aduzindo casos que pudessem dar sustentação às suas idéias. Alguns capítulos introdutórios chegam a arrolar considerações mais abrangentes; alguns textos sintetizam partes do pensamento mahaniano; mas, aparentemente, nunca ocorreu a Mahan produzir uma espécie de “Sumário da Arte da Guerra” no mar.
A convicção de Mahan sobre a centralidade do comando do mar e do poder marítimo não estava aberta a críticas, era um aforisma sobre o qual ele erigiu nem tanto uma estrutura lógica de teoria naval, mas uma versão da História que ilustrasse sua validade principial. Sobre suas idéias, construíu-se uma série de proposições de caráter, na prática, dogmáticas, consolidadas em palavras de ordem, concepções, conceitos e lemas, em parte difundidos pelo próprio Mahan, em parte nascidos do desejo de expressar de forma simples e sintética toda a discussão sobre as alternativas do preparo e emprego das marinhas. O exemplo mais difundido é o famoso “nunca divida a esquadra!”, que consta em vários parágrafos de sua obra Naval strategy compared and constrasted with the principles and practice of military operations on land (Estratégia naval comparada e contrastada com os princípios e práticas em terra).

Esquadra de combate
Um elemento central para o entendimento da discussão naval é a idéia contida num dos diversos significados da palavra inglesa fleet, que por vezes é traduzida por esquadra, frota ou, até mesmo, armada. Da mesma maneira, inexiste uma tradução para o termo que descreve o acervo dos navios de combate de uma marinha do tempo da vela: em inglês, “battle fleet”, arrumada segundo os princípios de classificação dos navios que podiam ser engajados no combate em linhas. O termo “esquadra de combate” será empregado neste Guia para designar esta fração dos navios de uma marinha; outras divisões, no mesmo molde, seriam ainda os cruzadores (tarefa que, no mundo da vela, cabia às fragatas); e a “flotilha” (flotilla, em inglês) que agregava a quantidade de pequenas embarcações e navios que integravam as marinhas.


4.4 - O LEGADO DE MAHAN
Para que se possa ter uma apreciação do significado e do legado do Almirante Mahan, é adequado que se façam duas exposições complementares. A primeira, de alguns pontos marcantes de sua contribuição, recortados de forma a permitir um primeiro contato com o mais original de seu pensamento. A segunda, mais desenvolvida, onde se busca mapear de forma preliminar o legado de Mahan, apresentando algumas considerações sobre as formas de sua evolução e validade
4.4.1 - O PODER MARÍTIMO
Em seu primeiro livro — The influence of sea power upon history (1890) —, Mahan inicia com uma digressão a respeito do que foi alterado e do que não foi alterado na guerra no mar com o advento dos navios a vapor, contrastando-os com as características dos navios a remo e a vela. Para ele, embora algumas realidades táticas tenham sido modificadas, a condução da guerra no mar, de um ponto de vista estratégico, permanecia a mesma; também permaneciam as condições que permitiam a uma nação (para permanecermos fiéis à linguagem mahaniana) utilizar em seu proveito aquele “amplo caminho comum” que é o mar. Para tanto, era necessário que essas nações dispusessem de um grande poder marítimo. Cabe destacar que o que ele chama de poder marítimo distingue-se marcadamente da simples posse de uma grande esquadra. Tratava-se, na verdade, do conjunto das atividades e recursos voltados para o uso do mar, incluindo o comércio marítimo, as atividades de construção naval e suas forças navais
4.4.2 - AS “FONTES DO PODER MARÍTIMO”
Um grande poder marítimo, para Mahan, decorria de seis condições fundamentais, que ele chamava de “as fontes do poder marítimo”: a posição geográfica de um país; sua configuração física; sua extensão territorial; sua população; aquilo que ele chamava “caráter do povo”; e, por fim, o que ele chamava de “caráter do governo”.
A posição geográfica de um país expressa sua localização em relação às rotas marítimas e o território de outros Estados. Nesse sentido, o grande exemplo eram as Ilhas Britânicas, cuja posição deixa ao Reino Unido a flexibilidade no uso de seus navios sobre as rotas oceânicas do Atlântico Norte e que, ao mesmo tempo, eram suficientemente próximas do continente europeu para projetar suas forças sobre ele. Esta vantagem inicial foi racionalmente expandida pela aquisição de bases que permitiram à Grã-Bretanha exercer um papel decisivo no desenrolar da vida econômica de outros mares, como por exemplo Gibraltar no Mediterrâneo.
A configuração física e a extensão de um dado território nacional influenciam a disposição com que um povo busca e pode vir a obter o poder marítimo. Bons portos e ancoradouros, o fato de ser uma ilha, de dispor de uma grande costa, não dispor de um território grande o suficiente para lhe permitir obter por si mesmo os recursos naturais necessários à sua vida econômica, tudo isso contribui decisivamente para o interesse de um país na posse de poder marítimo. Ao contrário, grande extensão territorial e abundância de terras férteis, além de uma costa que dificulte as atividades marítimas, podem obstar o desenvolvimento do poder marítimo de uma nação.
O caráter do povo e a fração da população ocupada com assuntos marítimos eram da mais alta relevância para o poder marítimo. Por um lado, só um povo inclinado à construção de navios e propenso ao comércio poderia dispor dos conhecimentos e práticas essenciais para a expansão, quando necessário, das forças navais combatentes. Por outro, quão maior fosse aquela fração, maiores seriam os contingentes e recurso passíveis de incorporação no esforço naval. De fato, Mahan preocupava-se com a convicção americana de que seu enorme potencial tornava desnecessário dispor de força naval considerável em tempo de paz. Mahan foi um dos primeiros a articular a especificidade de uma força suficiente para assegurar o tempo necessário à mobilização dos recursos nacionais nos exércitos e forças navais dos tempos de guerra.
O caráter do governo era de crucial importância para a obtenção do poder marítmo: políticas bem ordenadas e conduzidas sistematicamente por um longo tempo (sucessivos governos) acabavam por gerar um grande poder marítimo. Mahan salientava que tal continuidade de propósitos era mais facilmente encontrada em governos monárquicos do que em democráticos, uma vez que, nestes, tendia a haver uma resistência aos grandes investimentos militares, cujo retorno nem sempre era facilmente visível. A administração, orientação e direção dos assuntos navais pelo governo, bem como o estímulo governamental a produção de navios e ao comércio eram determinantes no desenvolvimento do poder marítimo. Ao decidir sobre o tamanho, aprestamento, doutrina de emprego e uso das marinhas na guerra, o governo podia ter grande influência na evolução do poder marítimo de um país.
4.4.3 - O COMANDO DO MAR
Um grande poder marítimo supunha, para Mahan, uma grande força naval, cujo propósito era proteger a capacidade de uma nação em usar o mar. Para ele, a melhor maneira de fazê-lo era obter o comando do mar. Isso significava a neutralização definitiva de forças que pudessem interferir ou ameaçar o seu comércio. Nesse sentido, o objeto de toda e qualquer esquadra de combate era sempre a esquadra de combate inimiga. Mahan resistia a que marinhas fossem empregadas de maneira estritamente defensiva: a melhor defesa, dizia ele, era sempre destruir o quanto antes a esquadra de combate inimiga. Segundo Mahan, o comando do mar não era divisível nem admitia relativização, já que se escorava no entendimento de que o mar era indivisível. Assim, a melhor garantia de que um país tivesse uma grande esquadra era a existência de fortes interesses comerciais ou não militares no mar. A alternativa era a posse de uma esquadra de combate com fins exclusivamente expansionistas ou agressivos, situação que, para Mahan, não era decididamente a dos Estados Unidos.
4.4.4 - OS PRINCÍPIOS PARA A OBTENÇÃO DO COMANDO DO MAR
Para obter o comando do mar, Mahan identifica quatro princípios fundamentais da guerra no mar: a concentração de forças; uma posição central com relação às forças inimigas; operar a partir de linhas interiores; e dispor de boas linhas de comunicações. Mahan ecoava assim, para a guerra no mar, os princípios jominianos da estratégia, transpondo-os e adaptando-os.
Em perfeita harmonia com Jomini, Mahan via na concentração de forças a chave da estratégia; a posição central, as linhas interiores e as linhas de comunicação eram formas e considerações adicionais necessárias à produção da maior concentração possível de forças no ponto decisivo. Para Mahan, como para Jomini, as guerras eram ganhas em batalhas.
O que era crucial era concentrar a força para a batalha, o que, no mar, se traduzia em duas vertentes principais. A primeira afirmava de forma categórica que os encouraçados — os navios de batalha por excelência, os navios de linha — eram tudo o que importava, no limite, a uma marinha. A flotilha ou os cruzadores — considerados navios de apoio ao combate, seja como escoltas, seja como esclarecedores — só eram admissíveis como alternativa de composição da força naval enquanto não concorressem com a aquisição e aprestamento do maior número possível de grandes navios de linha voltados precipuamente para o combate contra outros navios de linha: a esquadra de combate.
A segunda vertente preconizava que se deveria manter a esquadra concentrada e, assim, buscar a esquadra inimiga a fim de destruí-la em uma batalha decisiva.
4.4.5 - A BATALHA DECISIVA
A segunda vertente dizia respeito à forma de emprego da esquadra de combate na guerra. A esquadra de combate devia ser empregada de forma concentrada, o que, segundo a visão mahaniana da busca da batalha, significava que os encouraçados deviam ser compostos numa única força e enviados para “buscar e destruir a esquadra inimiga”. Esta concepção, uma vez mais, jominana de uma forma ideal de conduzir a guerra tinha tradução mahaniana na idéia de que o comando do mar seria produzido pela vitória contra a esquadra inimiga, resolvendo em único embate a guerra no mar, o que fazia deste enfrentamento a batalha decisiva da guerra naval.

4.4.6 - NUNCA DIVIDIR A ESQUADRA
Para Mahan, a busca e a destruição da da esquadra inimiga deveriam ser conduzidas em quaisquer circunstâncias, sem jamais dividir a própria esquadra de combate, independentemente do risco de que, ao se buscar a esquadra inimiga, , o próprio território, o próprio comércio e o próprio exército embarcado fossem ameaçados por forças navais inimigas. “Nunca divida a esquadra” é a máxima mahaniana por excelência. Obter o comando do mar pela neutralização da esquadra inimiga era a única razão de ser de uma esquadra, segundo Mahan.
Observe-se assim como é forte a continuidade principial estabelecida por Mahan com o mundo pré-industrial: não há necessidade de qualquer alteração diante dos exércitos de massa, nem dos enormes fluxos marítimos, pois a esquadra nada tem a fazer com relação a estes; seu único objetivo é a esquadra inimiga. Este resultado geral, principial, eterno, sobre a guerra naval instruía uma tomada de decisão radical: por um lado, a construção de marinhas absolutamente centradas na esquadra de combate: em encouraçados, em detrimento de todos os demais navios; por outro, de forma ainda mais incisiva, esta estratégia exigia o abandono consciente de quaisquer esforços — qualquer divisão da esquadra — em atividades que buscassem explorar o uso do mar, contestar este uso pelo inimigo ou mesmo de se dar resposta a iniciativas de contestação do uso do mar pelo inimigo, até o momento em que a esquadra inimiga fosse destruída; quando então, segundo esta estrutura, o comando do mar estava assegurado.
4.4.7 - AS BASES NAVAIS
Mahan reconhecia a necessidade de que a esquadra voltasse ao porto durante o inverno — quando podiam ser efetuados os reparos necessários e a tripulação descansada —, já que o estado do mar nesse período praticamente impedia a permanência dos navios na busca da esquadra inimiga. A partir de certa distância entre as bases de apoio e as áreas de operação, as limitações temporais advindas da aproximação do inverno eram de tal monta que, na prática, impediam a consecução do objetivo de neutralizar a esquadra inimiga. No Mediterrâneo, por exemplo, caso a Esquadra britânica quisesse voltar ao porto de origem, na Grã-Bretanha, a tempo de evitar os rigores do inverno, era necessário que ela iniciasse o movimento de retorno tão cedo quanto o mês de agosto, o que lhe deixava, então, com apenas cinco meses de operação, sem descontarmos o tempo de trânsito. Esta situação era pior ainda para os navios a vapor, já que o reabastecimento de carvão no mar era impraticável. Fica clara a inconveniência do retorno a bases distantes quando se pensa nas dimensões extracontinentais do Império Britânico.
Assim, tornava-se premente, para qualquer marinha, a aquisição de portos (ou, no mínimo, a aquiescência dos governos que os controlassem) em locais que permitissem um prolongamento do tempo de operações. Como a mera cessão destes portos por outros governos era um expediente pouco confiável, era imprescidível que se estabelecessem colônias ou, ao menos, bases navais praticamente auto-sustentáveis, em todas as regiões relevantes. A afirmação da necessidade de uma rede de bases navais coroa a construção mahaniana, integrando os interesses dos Estados ao poder marítimo.
Nesse sentido, pode-se ver como as idéias de Mahan estavam em consonância com a realidade política americana do final do século XIX, particularmente com as idéias e politicas expansionistas de Theodore Roosevelt.
4.4.8 - COMENTÁRIO SOBRE OS PENSAMENTOS DE MAHAN
Esta exposição sumária dos principais pontos do pensamento mahaniano admite algumas considerações sobre sua validade, atualidade, consistência e utilidade. É verdade que muito — talvez a maior parte — do legado mahaniano foi transmitido na forma de máximas, aforismas e o que se denomina erradamente de “princípios mahanianos” (Mahan só afirma quatro princípios, e pode-se mesmo afirmar que a concentração de forças é o único verdadeiro princípio mahaniano).
É essencial que se entenda o cerne da mensagem mahaniana, que podemos resumir nas seguintes proposições. O poder marítimo é o elemento decisivo para a grandeza das nações. O poder marítimo possui uma base científica que permite conceber e aplicar a estratégia naval perfeita. O fundamento e a essência da estratégia naval perfeita é a concentração de forças contra forças: aniquile a esquadra inimiga e todo o resto se resolve.
Estas convicções o sustentaram através de questionamentos que teriam dobrado uma fé mais frágil: a transição para o vapor, a inviabilidade do bloqueio aproximado, o uso do rádio, dos submarinos, da arma aérea. A todos estes desafios, Mahan respondia com simplicidade: nada jamais mudaria na dinâmica do poder marítimo.




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