Já que ninguem apresentou nenhum questionamento, vamos em frente.
Agora vou tratar de apresentar O Mestre: Clausewitz.
Muito se fala, muito se cita Clausewitz, mas poucos se aventuram a ler seus escritos, pesados, filosóficos, não indicados para iniciantes.
O que posto abaixo é mais uma interpretação, como centenas de outras, mas é a que usamos na MB.
Ela não isenta o interessado em Estratégia em procurar o original.
Depois de postá-la devo estacionar um bom tempo, esperando comentários, pois muito se pode extrair desta leitura, e depois começar a parte "naval" do Pensamento Estratégico.
Chamo atenção para as diferenças entre Clausewitz e Jomini, a começar pela utilização de uma metodologia científica pelo primeiro.
Também a busca de uma Teoria da Guerra, o estudo do
fenômeno Guerra, e não como vencê-la com receitas.
Boa leitura.
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CLAUSEWITZ
3.3.1 – CLAUSEWITZ E A TEORIA DA GUERRA
O contraste entre as vidas de Jomini e Clausewitz é profundo. Carl von Clausewitz nascera em 1780 na pequena nobreza alemã, sólido membro do establishment militar prussiano. Posteriormente, filiou-se a uma emergente tradição de ilustração militar e foi membro destacado, junto com Scharnhorst e Gneisenau, de um dos diversos movimentos da reforma militar prussiana. Participou da guerra contra a França aos 12 anos (1792), tendo contato direto com o novo exército francês.
O Estado-Maior
Para dar conta do gênio de Napoleão, os reformadores prussianos metamorfosearam a equipe de assessoria e acompanhantes do comandante numa instituição que, pela divisão coordenada do trabalho intelectual de préparação e gestão da guerra, pudesse agregar os esforços de muitos e igualar o desempenho extra-ordinário do “grande Corso”. Neste processo, na feliz expressão de Trevor N. Dupuy, institucionalizaram o gênio militar: o Estado-Maior passou a ser uma verdadeira instituição nacional, que dava continuidade e aperfeiçoamento ao saber e à estrutura militar de um Estado.
Por um lado, permitia o processo de organização militar de forma racional, informada tanto pela dinâmica técnica quanto pelas necessidades e possibilidades políticas. Por outro, aperfeiçoava e disseminava o processo de condução das guerras de forma racional, informada tanto pela correta atribuição de responsabilidades aos escalões decisórios quanto pela criação e sustentação de uma cultura organizacional militar orientada para a busca solidária da vitória.
Os resultados que a organização de um estado-maior franqueava a um Estado eram de tal ordem que a posse desta estrutura se tornou obrigatória a qualquer país que desejasse conduzir uma guerra moderna. Assim, os elementos do Grande Estado-Maior Prussiano, que era um órgão de Estado que perpassava e controlava toda a instituição militar terrestre, foram emulados e adaptados numa variedade de arranjos nacionais, admitindo variações consideráveis no entendimento que cada país, cada exército e cada marinha tinham do que era ou não era objeto de sua competência. Pode-se argumentar que nenhum exército jamais conseguiu o grau de organicidade e poder militar que o Grande Estado-Maior emprestou às tropas prussianas; pode-se, da mesma forma, afirmar que este sucesso roubou à Alemanha a possibilidade de um estado-maior combinado, capaz de articular todas as suas ações na guerra.
Clausewitz era parte de um conjunto de oficiais que buscava no iluminismo e na educação a atualização do poderio militar prussiano, suspeitando dos efeitos debilitadores da formalização de tradição frederiquiana. Vivia entre generais intelectuais, escritores e leitores de história e teoria, como Yorck e os já mencionados Scharnhorst e Gneisenau. Entre suas obrigações estivera a de ser o mestre-escola militar do neto de Frederico, o Grande, filho do desafortunado Frederico Guilherme III, rei da Prússia quando da fragorosa derrota militar prussiana frente aos franceses e Napoleão na batalha dupla de Jena-Auerstadt, em 1806, em que foi feito prisioneiro.
Clausewitz rebelou-se contra a rendição da Prússia e, em seguida, abandonou sua patente no exército prussiano para servir ao Czar da Rússia contra Napoleão, tendo tido papel relevante na resistência russa ao sítio francês do porto de Riga. Retornou à Prússia e à sua carreira militar para participar da reestruturação e rearmamento secreto do Exército Prussiano, servindo como oficial do staff de Scharnhorst nas campanhas de 1814 e 1815. Clausewitz permaneceu por longo tempo em Berlim, como diretor (à época, um cargo administrativo) da Academia de Guerra Prussiana, a inédita Kriegsakademie, a primeira escola de estado-maior do mundo. Foi designado Chefe do Estado-Maior da mobilização prussiana de 1831, sendo vitimado pela epidemia de cólera daquele ano, falecendo aos 51 anos de idade, no posto de general. Sua viúva, Marie von Clausewitz, organizou e fez publicar, em 1832, seu livro Da Guerra, cujos 150 exemplares só se esgotaram trinta anos depois.
Clausewitz não escrevia para ninguém, se não para si mesmo. Os textos que utilizou para educar o soberano eram apenas uma pequena parte de volumosos trabalhos, ensaios, estudos e notas: um enorme acervo, muitas vezes sem datas ou referências, que acumulava e relia e melhorava, buscando principalmente o seu próprio entendimento.
A complexidade e carência de revisão da obra de Clausewitz induziram muitas e distintas interpretações de difícil solução em função da morte prematura de seu autor. O século XIX não conheceu outros escritos seus além de Da Guerra, cujas primeiras traduções eram simplesmente sofríveis. Sucessivas interpretações nasceram da publicação e divulgação de suas notas e da atualização do texto do Da Guerra, muitas das quais só vieram a público tão tardiamente quanto 1937. O trabalho mistificador de Jomini fez com que Clausewitz se tornasse um autor pouco lido, embora muito citado, mercê de edições parciais, resumos ou simples coleções de frases cujo objetivo era facilitar o entendimento de uma obra difícil, mas que acabaram por comprometer seu conteúdo.
A reputação do Da Guerra resulta de seu valor inegável. Clausewitz é o autor de um grande livro sobre a guerra; talvez, mesmo, o único verdadeiramente grande livro sobre o tema. É extraordinário perceber-se que suas reflexões ainda têm valor um século e meio depois de sua publicação. Clausewitz se confrontara com a complexidade intrínseca do fenômeno bélico, subitamente exposta pelas campanhas napoleônicas. Ao reunir em si mesmo a vivência direta e uma forte tradição intelectual, construiu uma sólida teoria da guerra. Até hoje, nenhuma obra já escrita sobre a guerra pode lhe ser comparada. Nunca antes a busca pelo entendimento pautara de forma tão clara um estudo sobre o bélico.
Ao excluírem as diversas ponderações e qualificações que Clausewitz fazia em suas reflexões, os aforismas construídos supostamente com base em interpretações dos escritos clausewitzianos eram uma leitura mais facilmente assimilável para um mundo habituado aos “princípios claros e simples” de Jomini. Ganharam grande popularidade, mas a obra propriamente dita foi praticamente abandonada. Assim, após a humilhante vitória prussiana do final do século XIX contra a França, a assertiva do triunfante von Moltke, em 1871, de que tudo que sabia de guerra tinha aprendido com Clausewitz, foi recebida como a revelação de um segredo. Uma febre de Clausewitz se espalhou pela Europa e pelo mundo. Clausewitz era difícil de ser entendido, ainda mais em contraste como a simplicidade instrumental de Jomini. Isto levou a que se tentasse uma reconstrução do arcabouço jominiano a partir de uma suposta compatibilidade entre a sua obra e a de Clausewitz.
Assim Clausewitz não pertence, realmente, ao mundo do século XIX, pois só em suas últimas décadas sua leitura ganhou algum espaço. Apenas em inícios do século XX é que começou a ser tomado pelo que era: a primeira tentativa rigorosa de uma teoria da guerra.
Em franco contraste com Jomini, Clausewitz não manteve suas convicções da juventude ao longo de toda vida; manteve, antes, suas questões, o que fez com que Da Guerra estivesse sendo revisto quando sua morte era talvez inevitável. Desde o início do século XIX, Clausewitz trabalhava e retrabalhava, refazendo seu trabalho quando percebia que suas idéias não eram respaldadas por seus estudos. Os leitores que se dirigiram a Clausewitz se confrontaram com um trabalho incompleto, cuja revisão final fora apenas indicada na nota em que Clausewitz orientava a interpretação das partes não revisadas de Da Guerra.
Clausewitz iniciara suas buscas sob o impacto dos traumáticos anos de 1792-1815, sob o peso da derrota prussiana de 1806, sob o impacto da capacidade individual de Napoleão de transfigurar o mundo militar e transtornar o mundo político em meia dúzia de campanhas. Ansiava por respostas: o que era a teoria militar? O que ela podia ensinar? Como pudera Napoleão fazer o que fizera? Isto seria feito de novo?
Na busca dessas respostas, Clausewitz se revelaria rigoroso, cuidadoso e aberto. Mais que a influência do século XVIII, Clausewitz foi moldado pelo ambiente berlinense da ressurgência intelectual romântica alemã do início do século XIX — onde as idéias de Kant, Hegel, Goethe, entre outros, tinham livre curso. Clausewitz buscava ferramentas úteis em todos os campos, sem a pretensão de igualar a densidade que estes conhecimentos tinham em suas obras de origem.
A conexão com o mundo material era importante, mas secundária. Dependia de infinitas variações de circunstâncias, de arranjos de todo tipo. Cada momento, cada era, tinha seus próprios requisitos e exigências. Não admitiam uma ponderação genérica, mas um aprendizado com a História, como tantas outras atividades humanas. Havia que observar, estudar, refletir e estabelecer os melhores arranjos possíveis — os mais eficazes, em seguida os mais eficientes. Só se podia aprender e acumular experiência. Havia, sem dúvida, a possibilidade do uso de dispositivos e ferramentas teóricas nestes campos, mas que não eram bélicos em si mesmos. A matemática, a administração, a engenharia, todas tinham seu valor. Neste sentido, até o combate, o uso de armas, de formações, a construção de pontes eram conhecimentos passíveis de uma teorização benéfica. Mas esta mesma percepção deixava claro que se estabelecia uma hierarquia gradativa da utilidade de tais subteorias, mais úteis próximas às bases materiais e praticamente inúteis no topo da preocupação militar, na formulação de estratégias.
Esta busca por ferramentas úteis seria fonte infinita de complicação para seus intérpretes. Clausewitz passaria por ciclos de interpretações, algumas simplesmente oportunistas, outras mais filosóficas, onde sua obra seria vista como o desejo por uma filosofia da guerra, uma forma platônica pura da guerra; outras leituras seriam políticas, onde o mundo seria reduzido a uma dinâmica de poder e enfrentamento, a Realpolitik despida de valores; ou outras ainda históricas, em que o processo de depuração moral e física da guerra seria a mola mestra do progresso. Aos poucos se descobririam nas linhas das notas a negação explícita do que as leituras viam implícitas nas entrelinhas de seus escritos. Clausewitz tinha uma meta mais modesta: entender a guerra.
3.3.2 - BASES CONCEITUAIS DO PENSAMENTO DE CLAUSEWITZ
Clausewitz alicerçou sua teoria a partir de uma reflexão abstrata sobre o absoluto da violência da guerra. Este processo o havia levado, por volta de 1820, à idéia de que a guerra era violência absoluta, sem limites. Foi quando se dedicou à produção e revisão de uma série de estudos históricos e se confrontou com o fato de que a violência absoluta, que sua teoria inicial propugnava, inexistia. As guerras, se lhe diziam algo, era que a violência fora sempre controlada, diminuída, limitada. Com grande coragem intelectual, Clausewitz se debruçou sobre as limitações de suas idéias, reavaliando-as a partir de um confronto entre elas e os fatos revelados por seus estudos; não se voltou contra os fatos — aceitou-os.
Clausewitz exigia rigor de sua construção. Uma verdadeira teoria teria que se emancipar de tudo que fosse circunstancial. Quaisquer considerações sobre detalhes, armamentos ou chefias e estruturas hierárquicas eram inúteis, porque excessivamente vulneráveis à mudança. Clausewitz buscava relações, vínculos permanentes. Ainda que seu foco viesse a ser o do estudo das guerras napoleônicas, sua ambição era a da investigação de uma teoria geral, se tal coisa fosse possível. Diante da onipresença de limites no que deveria ser ilimitado — limites à violência da guerra, Clausewitz realizou uma profunda revisão de seu ponto de partida. Em seus últimos escritos, que, vale a pena reiterar, careciam de uma revisão final e foram publicados postumamente por sua viúva, acreditava ter chegado a uma quantidade necessária e suficiente de axiomas:
• O desdobramento lógico do conceito da guerra (“um ato de força destinado a dobrar o inimigo à nossa vontade”) não admitia qualquer moderação e levava a um extremo de violência, a guerra absoluta;
• As guerras, na prática, eram limitadas ou ilimitadas, jamais absolutas;
Isto se devia à assimetria entre ataque e defesa; às dificuldades intrínsecas de qualquer ação na guerra: o somatório de dúvida, desgaste, cansaço, medo, erros e acidentes, a fricção que qualquer ação militar enfrentava. A partir destes fatores limitadores, tornava-se necessário que a política retomasse o controle da guerra em todo o seu desenrolar, tornando-as limitadas ou ilimitadas, jamais absolutas;
• A guerra era instrumento da política e não tinha sentido fora do mundo político.
Foi com estas bases que Clausewitz se propunha a rescrever sua obra. Nunca a terminou. Apenas considerava definitivamente pronto o primeiro capítulo. E Clausewitz pretendia, com certeza, uma revisão completa do todo antes de qualquer divulgação, onde diversas notas soltas teriam encontrado lugar. Com tudo isto, produziu a primeira e talvez mais penetrante análise da guerra como fenômeno sócio-político-bélico.
3.3.3 - AS SOMBRAS DO DA GUERRA NO SÉCULO XIX PELOS OLHOS DO SÉCULO XX
A complexidade e a profundidade dos escritos de Clausewitz desafiam uma síntese completa. Ao contrário de Jomini, em Clausewitz não se pode encontrar um sistema geral simples e claro, de fácil entendimento e aplicação. Clausewitz não pode ser lido e posto de lado - coloca em pauta relacionamentos e fundamentos, não definições de termos ou regras de imediata aplicação. Clausewitz não buscava restaurar, mas aprender. Ao se debruçar sobre o seu tempo, fez o primeiro diagnóstico sistemático do mundo bélico moderno e identificou os pilares do bélico sobre os quais nos apoiamos. Acima de tudo, como dizia o próprio Clausewitz, sua obra ainda não estava em sua forma definitiva; necessitava de uma extensa revisão. De fato, ainda mais que Jomini, Clausewitz foi reescrito e pretensamente sintetizado por autores que viam em sua obra o que queriam, estivesse lá ou não. Assim, o que se segue é, necessariamente, um entendimento sobre uma obra que é de difícil compreensão e que reflete uma leitura moderna de Clausewitz, apoiada em intérpretes rigorosos e sistemáticos do final do século XX.
O que o Da Guerra faz é aparentemente muito simples. O texto dá continuidade à reflexão militar ocidental aceitando a novidade político-sócio-bélica resultante das Revoluções Americana e Francesa, cuja forma final foi dada por Napoleão. Absorvia as tendências racionalistas e formalizantes do final do século XVIII — como a geometria bélica de von Bülow e os diagramas militares de Lloyd, mas as subordinava às percepções humanistas, sistemáticas, intensamente emocionais, intelectualmente densas, vibrantes e nacionalistas do romantismo alemão.
O Da Guerra não tolerava a idéia de uma guerra estanque, desvinculada do restante da vida política e social, regida por etiquetas militares. Ao contrário, reconhecia-a como claramente inserida num mundo complexo, dinâmico, difuso, e profundamente marcado por uma quantidade inesgotável de ligações e relações, principalmente políticas. É impossível lhe fazer justiça sem um espaço muito mais amplo do que o que se dispõe aqui — literalmente, só se lhe faz justiça lendo o próprio Da Guerra e seus melhores intérpretes. Trata-se aqui antes de um convite à leitura, adequado a um Guia, mas não de um resumo que substitua o contato com a própria obra.
A literatura dos estudos estratégicos tem criticado enfaticamente a forma parcial, fragmentária e oportunista pela qual Clausewitz foi (e ainda é) lido. Esses estudiosos mostraram que sua obra foi objeto de apropriações, inferências e edições muitas vezes completamente incompatíveis com suas bases e assertivas. Muito de Jomini foi justaposto a Clausewitz, sem que se levasse em conta as profundas divergências entre os dois autores e suas obras.
Não se pretende, neste Guia, fazer uma revisão completa do trabalho de Clausewitz em si, nem de suas sucessivas interpretações, mas antes, trazer os pontos pelos quais se tomar a sua obra, contrastando-a com a de Jomini e sua herança. Com isto, busca-se informar sobre a vertente clausewitziana que orienta a linhagem predominante do pensamento estratégico contemporâneo.
Ao contrário do que muitos intérpretes afirmaram, Clausewitz não é um filósofo da guerra, tanto em um sentido estrito quanto em um mais popular do termo. Clausewitz é o teórico da guerra. Talvez se possa atribuir a caracterização errônea de Clausewitz como filósofo a um reconhecimento de uma profundidade em seu trabalho que transcendia as necessidades muito práticas de boa parte de seu público; ou, talvez, a uma tentativa de enquadrar sua obra e pô-la lado a lado com outras de caráter prescritivo — como manuais, por exemplo; ou mesmo ao desejo, nem sempre consciente, de se livrar do desafio de uma interpretação consistente, exilando o Da Guerra a um plano abstrato.
Como teórico, Clausewitz e o Da Guerra se inserem na grande tradição das obras fundadoras de campos inteiros do conhecimento científico moderno, podendo ser comparado, tanto em rigor quanto em profundidade, aos máximos gênios dessa tradição, como Thomas Hobbes em O Leviatã, Newton nos Principia Mathematica Philosophiae Naturalis, Marx em O Capital, Darwin em A origem das espécies ou Freud no conjunto de sua obra sobre a Psicanálise.
3.3.4 - A TEORIA CLAUSEWITZIANA DA GUERRA
Como aqueles gigantes da ciência, Clausewitz começa seu estudo definindo conceitualmente o objeto central: para ele, “A guerra é ... um ato de força para compelir nosso inimigo a fazer a nossa vontade”. A violência (força) é portanto um meio da guerra; impor nossa vontade ao inimigo é seu propósito. Para garantir tal propósito é necessário deixar o inimigo impotente, e este é o objetivo da guerra. Observa-se uma distinção clara entre o propósito político (impor nossa vontade) e o objetivo da guerra (deixar o inimigo impotente).
As conseqüências teóricas desse conceito são aquilo que ele chama de “as três interações” que levariam necessariamente a um exercício extremo de violência:
• um lado que use a força sem constrangimentos ganha vantagem sobre o outro, que é obrigado a imitá-lo.
O lado que exercer violência de forma mais imoderada tenderá a ser capaz de infligir mais danos ao inimigo; por força desse fato, este inimigo terá ou que reagir no mesmo grau de violência, abandonando suas perspectivas e mecanismos de moderação, ou aceitar uma luta desigual, uma assimetria de vantagens e desvantagens, a partir de que sua derrota é mais provável.
• o objetivo da guerra, para ambos os lados, é desarmar o inimigo;
Dado que a guerra é um ato de força, a melhor maneira de garantir o sucesso na guerra e a sua permanência é simplesmente destruir a capacidade do inimigo de seguir combatendo, isto é, privá-lo de suas armas. Uma vez que ambos os lados podiam antecipar essa tendência, ambos tenderiam a usar o máximo de força necessário para privar o quanto antes o inimigo dessa capacidade, o que, outra vez, implicaria uma ascensão a um extremo de força e violência na guerra.
• a guerra demanda, para ambos os lados, o máximo dispêndio de todos os meios disponíveis e de toda a força de sua vontade.
Dados os riscos e conseqüências de se ver desarmado, cada um dos lados agiria de maneira a evitar esse risco a todo e qualquer custo. A guerra atingiria, então, um máximo de violência que seria melhor descrito como absoluto. Ou seja, para Clausewitz, o próprio fato de que a guerra era um ato de força determinava, em função do efeito que produzia no inimigo e que sua reação produzia em nós, as três tendências acima, que logicamente determinavam um exercício imoderado e simultâneo do máximo de força disponível em qualquer sociedade.
Entretanto, Clausewitz se deparou com um fato inescapável que seus estudos históricos mostravam: as guerras nunca haviam sido espasmos de violência absoluta. Ao contrário, as guerras sempre terminavam antes que se atingissem os extremos de violência que o conceito exigia. Para ele, as guerras históricas:
- nunca eram um ato isolado de pura força;
- nunca consistiam em um único espasmo de extrema violência; e
- seu resultado nunca era final, pois tendiam a terminar antes do desarmamento total de um dos lados.
Era preciso não descartar esses fatos, e sim esclarecer os motivos pelos quais a guerra na prática era tão diferente do que o desdobramento lógico de seu conceito exigia. Aqui reside a força teórica de Clausewitz: em estabelecer o conceito, confrontá-lo com a realidade, e incorporar teoricamente as diferenças entre o conceito e a realidade. De fato, uma boa teoria não é simplesmente o desdobramento de um conceito, mas a análise de um fenômeno.
3.3.5 - O MÉTODO CIENTÍFICO USADO POR CLAUSEWITZ
Assim, transparece aquilo que é o método científico clausewitziano: definir um conceito; extrair dele todas as suas conseqüências lógicas; verificar se e como essas conseqüências lógicas são respaldadas pela realidade, tomando a realidade como critério de validade; incorporar as diferenças com a realidade à formulação teórica, agregando ao conceito puro todas as determinações que a realidade impõe. O vigor desse método diferencia a obra de Clausewitz e sua descendência de todas as demais, incorporando em si mesma e oferecendo um critério poderoso de validação e crítica, não só de sua própria obra, mas de quaisquer outras no campo dos estudos da guerra.
É por realizar essa passagem que Clausewitz se insere decisivamente na moldura intelectual do grande cientista, afastando-se inapelavelmente do terreno da filosofia e da tradição memorialista ou propositiva que caracterizava os textos sobre assuntos militares até então.
Num certo sentido, pode-se dizer que a teoria da guerra exposta em Da Guerra é a melhor resposta para o paradoxo da diferença entre a guerra como conceito e a guerra como história. Ao expor suas reflexões, Clausewitz vai refinando seu entendimento de por que é que as guerras não atingem os extremos de violência; nesse processo, produziu-se a mais completa investigação sobre o fenômeno bélico de que se tem notícia.
3.3.6 - FATORES QUE MODERAM A VIOLÊNCIA DA GUERRA
Por que é que a guerra nunca atinge os extremos de violência conceituais? A resposta é decorrente de uma série de fatores identificados por Clausewitz, a saber:
3.3.6.1 - A guerra é a continuação da política por outros meios (especificamente, os meios de força)
Clausewitz lembra que, em função mesmo de seu conceito, a guerra não pode ser separada de seu propósito político, ou seja, a “nossa vontade” que se quer que o inimigo cumpra. Essa vontade transcende as organizações militares, alojando-se no processo do interrelacionamento político das diversas sociedades. Nesse sentido, há uma continuidade lógica entre política e guerra, já que esta última é apenas uma das formas pelas quais equacionar os interesses conflitantes entre os Estados, interesses que são a matéria tanto de uma quanto de outra. Por essa razão é que se pode dizer que a guerra pertence ao domínio da política, sendo, nas palavras de Clausewitz, “uma continuação do intercurso político por meio da força”.
Um dos motivos que impede a ascensão aos extremos na guerra é o fato de que o propósito que leva à guerra nunca é o único propósito político de um Estado — por mais importante ou vital que este propósito seja. Assim, o tempo todo, os custos e riscos da continuidade da guerra, a necessidade de continuação de outras atividades que não a guerra, a probabilidade de que outros objetivos sejam ameaçados por uma excessiva debilitação, tudo isto leva os governantes a não empregarem a totalidade de suas forças num único empreendimento.
O uso da violência deve traduzir o propósito político e fazê-lo de maneira racional e utilitária. Ele não deve tomar o lugar do propósito político e nem obliterá-lo. Consequentemente a liderança política deve exercer o controle supremo e dirigir a condução da guerra. Deve evitar exigir o impossível e deve colaborar com os chefes militares no desenvolvimento de uma política global.
Porque a guerra é a continuação da política, “não pode existir nenhum problema em uma grande questão estratégica, cuja avaliação seja exclusivamente militar e nem um esquema puramente militar para resolvê-lo. Se o propósito político assim o requer, as forças armadas tem que resignar-se com uma mobilização parcial de recursos e com resultados limitados; por outro lado, devem estar preparadas para o sacrifício e nem a sociedade e nem o governo devem considerar tal sacrifício como além de sua missão, caso isso seja uma expressão da política racional”.
3.3.6.2 - A guerra é a província da incerteza e do acaso
A guerra ocorre num ambiente de informação imperfeita e incompleta, decorrente tanto da ação deliberada do inimigo — no sentido de gerar desinformação — quanto da imprevisibilidade dos próprios elementos que conformam o ambiente. A guerra é extremamente sensível a um sem-número de fatores — acidentes, clima, mal-entendidos, simples confusão, nascidos do simples acaso. Esse ambiente de incerteza e sensibilidade ao acaso concorre para que os responsáveis pela condução da guerra sejam bastante prudentes no emprego da força, moderando, mais uma vez, a tendência de ascensão aos extremos de violência.
3.3.6.3 - A guerra é dominada pela presença dos fatores morais
Uma das afirmações de Clausewitz que mais o distingue dos que o precederam é que, na guerra, fatores morais (entusiasmo ou sensação de derrota, medo, coragem, angústia, confiança, timidez, audácia) têm efeito desproporcional nas possibilidades e no resultado do emprego da força com relação aos fatores materiais (números, combatentes, armamentos), potencializando ou restringindo estes últimos. Esse fenômeno é específico da guerra, não encontrando paralelo evidente em qualquer outra atividade humana. Em suas palavras, “a guerra é uma prova de forças morais e físicas por meio da última”. Com isso, ao ressaltar e incorporar teoricamente os fatores morais, Clausewitz permite também compreender por que é que nem sempre quem tem uma força materialmente superior triunfa nas batalhas ou nas guerras. Além disso, a inconstância e oscilação típicas dos fatores morais introduzem uma fonte adicional de incerteza nos responsáveis pela condução da guerra, acrescentando-lhe, assim, outro fator intrínseco de moderação.
3.3.6.4 - Na guerra coexistem três tendências, a do povo, a das forças armadas e a do governo (trindade paradoxal)
Para Clausewitz, a guerra é o resultado de três tendências, uma “surpreendente trindade” em que se encontram, primeiro que tudo, sua violência original, o ódio e a animosidade, o que é preciso considerar como um cego impulso natural; depois, o jogo das probabilidades e do acaso, que fazem dela uma livre atividade da alma e, finalmente, sua natureza subordinada de instrumento da Política, por via da qual, ela pertence à razão pura.
O primeiro desses três aspectos interessa particularmente ao povo, o segundo, ao Comandante e seu exército, e o terceiro releva sobretudo ao governo. As paixões chamadas a se incendiarem na guerra, que pré-existem nos povos em questão, a amplitude que assumirá o jogo da coragem e do talento do domínio do acaso e das suas vicissitudes, dependerá do caráter do comandante e do exército; quanto aos objetivos políticos, só o governo decide sobre eles.
Essas três tendências estão profundamente enraizadas e variam de intensidade; daí o efeito moderador da violência de sua resultante.
O reconhecimento do povo como um dos componentes essenciais da atividade bélica é uma inovação marcante da teoria clausewitziana. Os que o precederam sempre reconheceram a pertinência da amizade ou hostilidade das populações, sem jamais as incorporarem como parte da guerra propriamente dita. Hostilidade ou amizade faziam parte do ambiente em que a guerra ocorria, mas não eram parte da própria guerra. Clausewitz foi o primeiro a incorporar plenamente o povo em sua equação, reconhecendo a sua centralidade. No limite, não bastava mais derrotar as forças armadas ou dobrar o governo — era preciso quebrar ou conquistar a vontade popular.
Ao enquadrar, pela primeira vez, a possibilidade do povo em armas, Clausewitz permite reconhecer algo como uma guerrilha como um fenômeno bélico ou político, e não mais apenas como banditismo ou distúrbios sociais.
3.3.6.5 - O combate, mesmo “virtual”, é a atividade essencial da guerra
Clausewitz rejeita a idéia de que uma guerra possa ser travada independentemente do combate. Para ele, o combate é a atividade essencial da guerra, mesmo quando ele não ocorre de fato. É dizer: há situações em que o combate não ocorre de fato, ainda que as forças estejam em condições de combater. Estas ocasiões, para Clausewitz, se explicam pelo fato de que ele foi travado mentalmente — nesse sentido, virtualmente — por pelo menos um dos comandantes, cujo resultado provável antecipado é desfavorável — seja do ponto de vista tático, seja do estratégico — diante do quê, decide não sacrificar forças.
3.3.6.6 - A defesa é a forma mais forte da guerra
Aqui, aparece uma das inovações mais fortes e contra-intuitivas de Clausewitz. Para ele, existe uma assimetria na guerra, qual seja: em situações de força equivalente, a força que está defendendo tem a vantagem. A força que tem o propósito defensivo tem apenas que manter a situação para ganhar a guerra; a força que tem o propósito ofensivo é quem tem a responsabilidade de alterar a situação. Além disso, o defensor geralmente tem a vantagem de conhecer o terreno, de poder prepará-lo, do favor da população, de proximidade com relação às suas bases, e portanto de linhas de suprimento menos estendidas. Por outro lado, o atacante tem a vantagem da iniciativa, em princípio podendo escolher onde e como atacar. Para Clausewitz, a essência da defesa é a espera, e a do ataque é a rapidez.
Tudo ponderado, entretanto, Clausewitz identifica uma assimetria entre ataque e defesa, com nítida vantagem para a última. Essa assimetria explica situações em que ambos os lados são fortes o suficiente para se defenderem, mas não suficientemente fortes para atacarem. Resulta daí a impossibilidade do lado que tem o propósito ofensivo continuar atacando com sucesso, dando mais uma vez vantagem ao lado cujo propósito é defensivo, pois a ele basta não ser derrotado para ganhar a guerra. Esta é, para Clausewitz, mais uma das explicações de porque a guerra na maioria das vezes cessa sem que algum dos lados tenha sido totalmente desarmado.
Cumpre destacar que a concepção de Clausewitz não coloca a defesa numa situação meramente passiva, pois valoriza as ações dinâmicas da defesa, principalmente o contra-ataque: a forma defensiva de guerra não é a de um simples escudo, mas, sim, um escudo constituído de golpes bem dirigidos.
Mesmo quando o único objetivo da guerra é o de manter o “status quo”, continua válido que tão somente aparar o golpe contraria a natureza essencial da guerra, que certamente não consiste apenas em resistir.
Por outro lado, Clausewitz considerava uma contradição a própria idéia de a guerra admitir a defesa como seu objetivo final, aceitando seu emprego somente quando se encontrasse em inferioridade de meios, devendo abandonar a postura defensiva tão logo se esteja forte o suficiente para adotar um objetivo positivo (ofensiva): “A partir do momento em que o defensor obtém uma vantagem importante, a defesa desempenhou o seu papel”, chegando o momento da “poderosa transição para a ofensiva”.
3.3.6.7- A onipresença do fenômeno da fricção
Um fenômeno identificado por Clausewitz e incorporado à sua teoria é o da fricção. Fricção é um fenômeno recorrente em toda a realidade da guerra, para o qual o próprio Clausewitz não apresenta uma definição. Ele prefere ilustrá-lo por exemplos e analogias. Para ele, independemente da ação do inimigo, “tudo na guerra é muito simples, mas mesmo a coisa mais simples é difícil”. A fricção é o fenômeno que faz com essas coisas simples sejam tão difíceis. Uma chuva atrasa um batalhão, impedindo-o de chegar na hora certa; um nevoeiro impede o inimigo de ser avistado em boa hora, ou um canhão de disparar quando deveria. Podem-se aduzir, inspirando-se em Clausewitz, alguns exemplos navais, tais como: o mar revolto que atrasa o deslocamento da força ou a maré que dificulta o movimento navio-terra em um desembarque anfíbio.
Para Clausewitz, “a ação na guerra é como o movimento num meio resistente”. Isso se deve ao fato de que, no ambiente de acaso, incerteza e perigo que é a guerra, qualquer ação implica perdas e risco. Ordens são mal-compreendidas ou não são recebidas, caminhos errados são tomados, equipamentos quebram, uma infinidade de eventos fortemente relacionados com o acaso tem lugar. “A guerra é a província do desperdício”. A existência da fricção faz com que as forças, simplesmente por existirem ou se moverem, sejam progressivamente consumidas e prejudicadas. Com o passar do tempo, esse fenômeno pode causar perdas absolutamente decisivas. Como resultado, esforços normais não produzem os efeitos esperados; a guerra consome as forças e exige esforços desproporcionais para as coisas mais simples.
Por tudo isso, a fricção é mais uma das explicações de porque a guerra na realidade é tão diferente da prevista conceitualmente.
3.3.6.8 - as guerras podem ser limitadas ou ilimitadas
“Desde que a guerra não é um ato de paixão insensata, mas controlada por seu propósito político, o valor desse deve determinar os sacrifícios a serem feitos para sua conquista em magnitude e também em duração. Uma vez que o dispêndio de esforços exceda o valor do propósito político, este deve ser renunciado, seguindo-se a paz”
Assim, para Clausewitz, chega-se a um ponto fundamental, que permeia seus capítulos relacionados com o plano de guerra. Para ele, as guerras podem ter objetivos ilimitados — a saber, a destruição efetiva das forças armadas do inimigo — ou limitados — a posse e conquista desta ou daquela parte do território inimigo, na maior parte dos casos. Quanto mais ilimitados forem os objetivos, mais a guerra tenderá a se aproximar de sua forma absoluta, isto é, a forma exigida pelo conceito; quanto mais limitados os objetivos, mais a guerra tenderá a se afastar da guerra absoluta. Configura-se, assim, o último fator moderador da ascensão aos extremos de violência: para objetivos limitados, uma violência proporcional.
3.3.7 - OUTROS CONCEITOS DE CLAUSEWITZ
• Centro de Gravidade (CG)
Conceito de Clausewitz que espressa o ponto ótimo de aplicação de força na guerra, ou seja, o ponto (ou pontos). Segundo o autor, trata-se de “um centro de poder e de movimento de que tudo depende, forma-se por si próprio e é contra este centro de gravidade do inimigo que se deve desferir o golpe concentrado de todas as forças”. Assim, é o ponto (ou pontos) onde a aplicação de força pode produzir os melhores resultados e,.no limite, induzir ao sucesso na guerra, isto é, à obtenção do propósito político.
O CG pode ser muita coisa. Segundo Clausewitz, nos Estados agitados por dissensôes internas, normalmente é a capital, em Estados pequenos que dependem de aliados poderosos, é o exército de seus aliados, numa confederação de Estados, é a unidade de interesses, numa sublevação nacional, ele é formado pela pessoa do chefe e pela opinião pública.
Um exemplo que consta de um estudo americano de 1988 cita “o moral público” como o centro de gravidade dos EUA, explorado com êxito por seus inimigos na guerra do Vietnã. Há, também, quem considere o conceito aplicável aos níveis tático e operacional.
• O ponto culminante do ataque
Das considerações apresentadas nos tópicos 3.3.6.1 a 3.3.6.7, Clausewitz extrai a importantíssima idéia do ponto culminante do ataque. Em função da fricção, da assimetria entre ataque e defesa, da participação do povo na guerra, da dinâmica das forças morais, do resultado dos combates e do caráter político da guerra, Clausewitz demonstra que o ataque tende a se exaurir com o seu avanço pelo território inimigo e com a passagem do tempo. Os fenômenos associados à fricção se multiplicam, as vantagens inerentes da defesa começam a produzir resultado, o atacante é obrigado a desviar cada vez mais forças para proteger flancos e linhas de comunicação cada vez mais extensas, sua vanguarda se distancia cada vez mais de suas bases de abastecimento e de forças, complicando seu problema logístico. Assim, o atacante tende a relaxar seus esforços e Estados neutros tendem a interferir na guerra para restabelecer o status quo e o equilíbrio de poder. Trata-se de uma dinâmica pela qual o atacante se enfraquece progressivamente tão mais profundamente penetre no território inimigo e se distancie de suas bases, quanto mais território ocupado tenha que defender, quanto mais postos tenha que guarnecer. Já o defensor, recuando rumo a suas próprias bases, fortalece-se pela facilidade de se reforçar, tanto por tropas adicionais quanto pelo empenho advindo da percepção da gravidade de sua situação. Enquanto forças adicionais do atacante têm mais dificuldade para se juntarem às demais e o sucesso lhe sobe à cabeça, o defensor pode contar com forças adicionais muito mais facilmente e possivelmente mais motivadas.
A partir de certo ponto — cuja determinação, Clausewitz admite, é bastante difícil — o prosseguimento do ataque torna-se temerário porque começa a debilitar a força atacante, que passa a ficar comprometida. A esse ponto Clausewitz dá o nome de “ponto culminante do ataque”.
A continuação do ataque, então, pode fazer com que o atacante perca até mesmo o que já havia conquistado ou, ainda, a capacidade de se defender, expondo-se a um contra-ataque que pode chegar a ocupar parte de seu próprio território. A persecução do objetivo lógico de toda guerra — o desarmamento do inimigo — nem sempre é possível, em função do atingimento do ponto culminante do ataque. A percepção desse ponto deve ser uma das maiores preocupações do estrategista.
• o ponto culminante da vitória
A aferição da vitória em uma guerra não é configurada necessariamente pela destruição completa das forças do inimigo. A essencialidade da vitória está, sim, na consecução dos propósitos políticos que determinaram o emprego de forças a fim de submeter a vontade do inimigo à nossa.
Diferentemente do ponto culminate do ataque, que nos indica até que ponto nossas forças podem ir em um ataque, há um ponto (teórico), além do qual, a busca desse propósito político incorre no risco de que o balanço dos fatores de força (moral e física), desencadeados pelos sucessos até então obtidos na guerra, se torne desfavorável pela agregação, pelo oponente, de novos fatores de força, e da nossa própria debilitação com o prosseguimento da guerra.
Essa situação de vantagem relativa (ou de equilíbrio) do atacante no confronto dos fatores de força e fraqueza é denominado Ponto Culminante da Vitória. Além desse ponto, a continuidade da guerra, segundo Clausewitz, não projetaria mais expectativas de obtenção do propósito político originalmente considerado, sendo racionalmente determinante que o atacante altere seus objetivos políticos (reduzindo-os), coerentemente com o novo equilíbrio de forças, procurando recuperar capacidades que lhe permitam consolidar os ganhos obtidos no sentido de obter uma paz vantajosa.
Cabe assinalar que o ponto culminante da vitória também pode ser considerado na exploração ou consolidação de êxitos estratégicos. É o caso, por exemplo, quando, após a derrota de Napoleão em Waterloo, o Marechal Blütcher decide avançar até Paris e Clausewitz recomenda a Gneisenau (Chefe do Estado-Maior de Blütcher) que o dissuada de sua intenção, tendo em vista que esse avanço incorreria no risco de que uma França humilhada mobilizasse outros contingentes, projetando a possibilidade de uma guerra ilimitada, para a qual o exército aliado não estava preparado.
Neste caso, Clausewitz considerava que se havia atingido o Ponto Culminante da Vitória pois, com o resultado de Waterloo, a França aceitaria as condições dos aliados, não se devendo ir além como Blucher queria, humilhando os derrotados com a ocupação de sua capital.
A determinação do ponto culminante da vitória atesta a continuidade lógica política-guerra-política, ou seja, a guerra como parte do todo político. Note-se, portanto, que a centralidade da política não é hipótese de partida, mas sim uma conclusão, e que essa parte pode ser demonstrável a partir da teorização das relações entre evidências (fatos da realidade).
Pode haver o caso de, após a obtenção do objetivo político, o balanço de forças seja tão vantajoso que se pense em prosseguir a guerra com um novo objetivo político, mais amplo, o que significaria a busca de um novo ponto culminante da vitória. Essa possibilidade exige um exame muito cuidadoso da situação, pois o conjunto de aspectos envolvidos poderá levar a uma situação pior que a já conseguida – foi o caso da Guerra do Golfo de 1991, quando, após a esmagadora vitória da coalizão, com a consecução do objetivo político - a expulsão das tropas iraquianas do Kuwait – cogitou-se de ampliar esse objetivo com a derrubada de Sadam Hussein, para o que seria necessário avançar até Bagdá, explorando o grande êxito inicial, que havia levado as forças da coalizão até bem dentro do Iraque. Verificou-se, então, que não havia lider alternativo a Sadam Hussein e sua derrubada pioraria em muito a situação já conseguida, pois poderia provocar o fracionamento do Iraque, com a tomada do sul pelos xiitas, o que faria aumentar a indesejável influência do Irã na área e, no norte, as pretensões dos curdos por seu Estado nacional, o que perturbaria as importantíssimas relações dos EUA com a Turquia (para onde o pretendido Curdistão se estenderia).
3.4 - A INCOMPATIBILIDADE ENTRE JOMINI E CLAUSEWITZ
Há ainda, entretanto, outros pontos que vale a pena expor, a fim de que se tenha uma visão mais abrangente do significado de Clausewitz. Com isso, também, pode-se mais facilmente estabelecer um contraste entre a sua obra e a de Jomini. É importante destacar como os mesmos termos adquirem significados bastante diferentes, em função do entendimento distinto de cada um deles sobre o que é a guerra e como interpretá-la.
Relembra-se aqui a responsabilidade que cada um tem de se posicionar e refletir individualmente sobre a utilidade e o valor de quaisquer contribuições, evitando, no entanto, justapor idéias de bases conflitantes na falsa esperança de conciliá-las ou, alternativamente, produzir uma síntese entre elas. Sugere-se, dessa forma, que este contraste sirva como um convite ao exercício da capacidade de se saber um mesmo assunto a partir de dois pontos-de-vista diferentes, reconhecendo a especificidade de cada um deles e entendendo seus pontos fortes e fracos.
Foi dito mais acima que Clausewitz considerava o combate como a atividade essencial da guerra. De fato, isto é tão forte na sua construção teórica que orienta mesmo a sua análise e definição de alguns termos, como, por exemplo, tática e estratégia. Enquanto para Jomini esses termos são estanques, sem outro relacionamento que não o de serem todos eles “partes da arte da guerra”, para Clausewitz, trata-se de um contínuo cuja ligação é dada pelo próprio combate e que têm uma relação de interdependência muito estreita, sendo impossível pensar um sem ter em mente sua conexão com o outro. Os melhores exemplos são as definições de tática e estratégia de cada um deles.
Tomem-se inicialmente as definições de Jomini. Para ele, a estratégia é “a arte de fazer a guerra sobre o mapa”; a tática admite uma repartição entre “tática” propriamente dita e “grande tática”. Grande tática é “a arte de alocar tropas sobre o campo de batalha de acordo com os acidentes do terreno, levá-las ao ponto de contato e a arte de lutar sobre o terreno, em distinção a planejar sobre o mapa”.
Em outro ponto, no entanto, estratégia é apresentada como sendo “a arte de se trazer a maior parte das forças de um exército para o ponto importante do teatro de guerra ou da zona de operações”. A tática seria “a arte de usar estas massas nos pontos para os quais foram levadas por marchas bem realizadas; é dizer a arte de fazê-las atuar no momento e ponto decisivos do campo de batalha”.
No entanto, é difícil conciliar este entendimento com as seguintes passagens, por exemplo:
“há outras operações de natureza mista, tais como a transposição de cursos d’água, retiradas, surpresas, desembarques, comboios, quartéis de inverno, cuja execução pertence à tática, [ainda] que sua concepção e planejamento [pertençam] à estratégia”’;
ou ainda:
“grande tática é a arte de atribuir postos às tropas no campo de batalha de acordo com os acidentes do terreno, de levá-las à ação, e a arte de lutar num determinado sítio, em contraste com o planejamento que se faz sobre a carta”;
“a estratégia decide onde atuar; a logística leva as tropas até este ponto; a grande tática decide a maneira de se empregar e o que executar com as tropas”;
e por fim:
“grande tática é a arte de se fazer boas combinações antes das batalhas bem como durante o seu desenrolar. O princípio guia das combinações táticas, como o das estratégicas, é trazer o grosso da força disponível sobre uma parte do exército inimigo, naquele ponto cuja posse promete os resultados mais importantes”.
De fato, o caráter particional das definições jominianas admite leituras que são expressas num jogo de relacionamentos de difícil compreensão:
“a tática...começa com detalhes, e ascende às combinações e generalizações necessárias à formatura e manejo de um grande exército”.
As múltiplas definições, muitas vezes contraditórias, do que seja tática e do que a ela pertença em Jomini obriga a inferir, a partir de algumas observações, o que ele entende pelo termo. A primeira referência a tática diz respeito à sua natureza como uma das partes da arte da guerra, onde Jomini se refere à “tática das armas” (armas entendidas como infantaria, cavalaria e artilharia); noutra passagem, Jomini enfatiza que a tática vem de baixo, da disposição e formações de tropas, e que instrui a organização de “um grande exército”; fala, ainda, das táticas de batalhas e sítios, circunscrevendo em diversas passagens o valor de combinações táticas no campo de batalha e a especificidade tática de uma variedade de operações como, por exemplo, a passagem de rios, a escolta de suprimentos etc. Assim, o entendimento do que seja tática em Jomini fica aberto à interpretação de seus leitores, que podem escolher o que quiserem entender como “tática” para Jomini a partir destas passagens.
Contrastem-se os entendimentos de Jomini com as proposições de Clausewitz. Para este, tática é o “uso das forças armadas no combate”, enquanto estratégia é o “uso dos combates para o propósito da guerra”. A idéia de grande tática lhe é inteiramente dispensável.
Observe-se que a definição clausewitziana de estratégia depende da de tática, e ambas estão diretamente relacionadas com o combate, que, como já dito, é para Clausewitz a atividade essencial da guerra.
Note-se que a definição do “propósito da guerra” é uma questão fundamentalmente política, evidenciando assim, mais uma vez, a compreensão clausewitziana da continuidade entre guerra e política. Essas definições revelam o empenho de Clausewitz em se livrar de tudo que é circunstancial, material, datado, buscando identificar relacionamentos fundamentais, e não simplesmente oferecer uma terminologia a mais.
Outro contraste evidente entre Clausewitz e Jomini é o seguinte: embora tanto Clausewitz quanto Jomini compartilhem o desejo de que suas obras sejam de utilidade para aqueles que têm a responsabilidade de decisão na guerra, a maneira pela qual o fazem contrasta radicalmente. Clausewitz pretende fundamentalmente educar o juízo de políticos e comandantes, mostrar os relacionamentos entre os diversos fenômenos e elementos presentes na guerra, suas constantes e variações, pois considera a guerra algo excessivamente complexo para que se possa sobre ela fazer prescrições de caráter geral. Jomini afirma o contrário: pretende ensinar como produzir vitória, e para tanto expõe um sistema de regras universais e perenes, princípios a serem seguidos por comandantes, cuja aplicação conduz à vitória na guerra. Para Clausewitz, não é possível haver uma regra ou conjunto de regras que leve necessariamente à vitória. Para ele, toda a atividade da guerra é pautada pelo objetivo e pela dinâmica da política, pelas forças inimigas e pelas próprias, incluindo, nos dois casos, os fatores morais. Portanto, para Clausewitz, não existe a estratégia vencedora, nem um único caminho para a vitória, nem uma estratégia que sempre leve à vitória. Ao contrário, Clausewitz salienta a possibilidade e mesmo o valor daquilo que ele chama de “O Gênio Militar” para a condução da guerra, e que se caracterizaria pelos seguintes atributos:
• coup d’oeil, ou seja, a capacidade de avaliar correta, intuitiva e instantaneamente a situação;
• coragem para tomar decisões difíceis;
• perseverança para prosseguir em situações desfavoráveis; e
• liderança para conduzir e restaurar forças com moral baixo.
Como conclusão desse contraste entre os dois fundadores do pensamento sistemático sobre a guerra, cabe ressaltar o seguinte paradoxo: enquanto para Clausewitz, um teórico inscrito na melhor tradição científica, não existe nem pode existir uma ciência da vitória na guerra, sendo sua condução o espaço da genialidade e da arte, para Jomini, um artista da persuasão, a guerra tem princípios eternos, de universalidade e validade científicas, cujo cumprimento por si só assegura a vitória.
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É essencial que se perceba que o que está em jogo não é uma questão de informação e, sim, de método. Tome-se como exemplo o fenômeno bélico da guerrilha, que foi um dos desafios que confrontaram as forças armadas no século XX.
A resposta a este desafio à luz da teoria de Clausewitz nada dizia sobre a perspectiva de vitória ou derrota da guerrilha, informando tratar-se de um tipo viável de guerra na qual o povo prescindia de forças armadas e governo formalmente organizados, acessando, desta forma, recursos que normalmente não poderiam ser mobilizados para a luta. Desta perspectiva, H. Summers, por exemplo, pode explicar a derrota americana no Vietnã exatamente pelo contraste entre a solidariedade povo-governo-força dos vietcongs e a carência de vinculação entre as metas políticas, as opções militares e o povo dos Estados Unidos da América. Para um estudioso que compreenda Clausewitz, a derrota dos EUA não se deveu à forma do conflito — guerrilha —, mas sim ao fato de que o interesse político, para os vietcongs, fazia daquela guerra uma guerra ilimitada de seu ponto de vista; não era este o caso dos EUA que só tinham interesses limitados no apoio ao governo do Vietnã do Sul. Assim, apesar da derrota americana no Vietnã, um estudioso informado por Clausewitz se aproximaria da guerra do Afeganistão sem um juízo prévio sobre se a guerrilha seria vitoriosa ou não, buscando identificar as metas e as possibilidades de meios de ambos os lados, isto é, os limites no interesse político e nas alternativas militares disponíveis para cada um dos lados bem como o empenho de seus povos.
Uma postura diferente reflete o enfoque jominiano diante do mesmo problema: Por um lado, a guerrilha, ao exigir a dispersão da força para o exercício do controle do território, ao evadir o combate sem abrir mão da luta, ao se dissolver e reconstituir sem preocupação com bases de operações e todo o resto das considerações jominianas, coloca um problema não-trivial para o estudioso que queira tratá-la a partir de Jomini. De fato, a reação dos exércitos europeus do século XIX e do início do XX diante da guerrilha foi a de negar a sua existência e, como resultado, se abrirem a derrotas fragorosas quando a insurgência pôde amadurecer solidariedade política, apoio popular e forças armadas próprias, já que os exércitos fingiam estar diante de bandidos. Por outro lado, a tradição jominiana buscou, na ausência de uma solução para o problema da guerrilha, enquadrá-la numa formulação simples e clara na qual os resultados da forma de guerra “guerrilha” estivessem inteiramente contidos. Isto implicava, de imediato, o abandono de qualquer tentativa de descrever ou analisar o desenvolvimento da guerrilha e se concentrava no resultado final do conflito, quando as forças guerrilheiras travavam batalhas convencionais pelo controle do território.
Assim, num primeiro momento, a leitura da guerrilha como praticada contra Napoleão — sobre a qual Jomini é muito reticente — permitiu a formulação de que “a guerrilha sempre vence”. O crucial desta leitura reside na alegada capacidade de se distinguir entre banditismo — que será sempre derrotado — e guerrilha — que sempre vence. Assim, as leituras jominianas transferiam ao comandante na cena de ação o ônus de aferir se os reclamos populares eram desordem e influência de maus elementos ou, de forma tipicamente jominiana, suficientes para que se estivesse diante de uma guerrilha. Esta era uma proposição tautológica: ao se vencer a insurgência, evidencia-se que ela não é uma guerrilha; ao se perder contra a insurgência, descobre-se que se enfrentava uma guerrilha; dessa maneira, incidentalmente, inocentava-se o comandante que perdesse, pois a guerrilha sempre vence.
Perceba-se como se buscou dar a aparência de rigor àquela afirmativa — a guerrilha sempre vence — pela seleção de exemplos ilustrativos, da mesma forma e com os mesmos limites de Jomini: apresentar os exemplos comprobatórios, omitindo os contraditórios. O fracasso turco contra a guerrilha de Lawrence pareceu comprovar esta regra simples e fácil: a guerrilha sempre vence. Infelizmente, esta regra só pode ser defendida se, automaticamente, todos os casos em que a insurgência for derrotada não forem consideradas guerras de guerrilhas - assim, o efetivo controle prussiano do território francês durante a guerra de 1870-71 não podia ser considerado como um caso de derrota de uma guerrilha, já que isto contradiria o que se julgava ser a lei da guerrilha. Da mesma forma, os sucessos britânicos e francês contra a insurgência tiveram que ser renomeados não como a derrota da guerrilha, mas sim como casos de distúrbios, onde uns poucos agitadores e maus elementos haviam perturbado a ordem. Outra leitura jominiana, perdida em nosso tempo, tomava tais casos para afirmar o contrário: contra um exército moderno, a guerrilha sempre perdia. Note-se como o hábito jominiano de construir estruturas falsamente científicas prescinde de uma vinculação explícita com a obra original: a tradição jominiana continua sempre que se ceda à tentação de querer reduzir o bélico a expressões simples que assegurem resultado.