Crise sistémica global:
Em busca da retomada impossível
por GEAB [*]
Antes do Verão, a equipe do LEAP/E2020 anunciara que não haveria retomada mundial na entrada de 2009; e que não a previa daqui até o Verão de 2010. Neste mês de Setembro de 2009, ao contrário do discurso que hoje domina os media e os meios financeiros e políticos, mantemos a nossa previsão.
O actual enfraquecimento da velocidade de afundamento da economia mundial, que "cria" as "boas notícias" [1] , só foi tornado possível pelo imenso esforço de sustentação financeira pública mundial dos últimos doze meses [2] . Mas o "tempo ganho" graças ao dinheiro dos contribuintes do mundo inteiro teria devido ser consagrado à reforma do sistema monetário internacional uma vez que ele está no cerne da crise sistémica actual [3] . Entretanto, para além de considerações cosméticas [4] e dos enormes presentes dados aos bancos americanos e europeus, nada de sério foi empreendido para o futuro, o cada um por si impõe-se doravante [5] .
Neste fim de Verão de 2009, com as três vagas monstruosas do Verão a golpearem com toda a força a economia mundial (desemprego [6] , falências [7] e choques monetários [8] ), o tempo de reparação do sistema, ou mais exactamente da sua transição suave para uma novo sistema global, está ultrapassado [9] . Os primeiros efeitos da grande desconexão [10] concretizam-se nos factos: o resto do mundo afasta-se rapidamente da zona dólar.
As estatísticas incoerentes reflectem uma economia mundial caótica
Caminhamos portanto directamente para a fase de deslocação geopolítica com começo previsto no 4º trimestre de 2008 [11] . Este GEAB nº 37 analisa as tendências em curso (inflação ou deflação, mercados imobiliários, bancos, geopolítica, ...) no interior do caos actual criado pela avalanche de fundos públicos não dominados e a persistência de um sistema financeiro descontrolado, sobre um fundo de incoerências estatísticas crescentes. Paradoxalmente, esta deslocação tornou-se, segundo nossos investigadores, a única via praticável para uma retomada económica, mas que se fará conforme uma arquitectura global e modalidades de interacção entre as esferas económicas, sociais e financeiras profundamente diferentes daquelas que experimentámos ao longo das últimas décadas. A nossa equipe estima que daqui até ao Verão de 2010 surgirão claramente as primeiras características do "mundo após a crise". Vamos certamente nos dedicar a identificá-las nos próximos meses.
Mas na expectativa, como antecipado nos GEAB anteriores, doravante já ninguém pode reconstruir imagens coerentes da realidade económica mundial actual com a ajuda das estatísticas macroeconómicas — cada vez mais contraditórias ou muito simplesmente aberrantes [12] . À força de manipular os dados e os instrumentos de medida [13] e de se limitar ao US dólar como padrão de valor quando as suas variações são cada vez mais caóticas [14] , nem os governos, nem as instituições internacionais, nem os bancos [15] sabem mais em que direcção evolui o sistema mundial. A leitura dos media também reflecte este caos que mergulha seus leitores e ouvintes nos abismos da perplexidade: conforme os dias, até mesmo na mesma jornada, sucedem-se informações contraditórias sobre as finanças, a economia ou a moeda. Governantes, chefes de empresa, assalariados, ... economistas ou analistas ... estão reduzidos à aposta de Pascal para avaliar os próximos meses.
Para o LEAP/E2020, há uma realidade incontornável: a deriva do sistema económico, financeiro e monetário global acelera-se, sua fraqueza atinge níveis, nunca igualados na história moderna, que doravante o tornam susceptível de ruptura ao menor choque importante: financeiro, geopolítico ou mesmo natural [16] . O mergulho vertiginoso dos Estados nos défices públicos incontroláveis [17] (uma vez que os governos sentem que sem os seus planos de sustentação pública as economias mundiais vão reiniciar a sua queda brutal) cria uma situação literalmente explosiva, com uma formidável alta das arrecadações fiscais do Japão à Europa passando pelos Estados Unidos. Se há alguma retomada à vista, esta é certamente a das altas de impostos. Igualmente, os eleitores japoneses, face a uma taxa de desemprego histórica e a uma economia sempre em queda livre, decidiram afastar os dirigentes do país que ali estavam há décadas: eles não são senão os primeiros a encetar o grande descalabro político da próxima fase da crise [18] . Assim, com surpresa a administração Obama descobriu neste Verão a profundidade da cólera popular que se concentrou no seu programa de reforma do sistema de saúde (muito necessário).
Para representar a crise hoje, a nossa equipe tentou encontrar uma imagem simples. Eis a analogia que se impôs aos nossos investigadores: uma bola de borracha a saltar de degrau em degrau numa escada: se ela parece subir a cada degrau devido ao efeito do salto (dando por um momento a impressão de que a sua queda cessou), é para cair ainda mais baixo no degrau seguinte, para efectuar uma "retomada" da sua queda.
Actores económicos e dirigentes políticos "sem bússola"
Naturalmente nada disto cria um ambiente muito propício ao investimento das empresas. As capacidades de produção estão subutilizadas por toda a parte em proporções históricas. Os stocks não são mais renovados senão a conta-gotas (o que elimina toda esperança de retomada devido à sua reconstituição). Os consumidores tornaram-se actores económicos racionais: não há dinheiro, não há compra. Os seus salários diminuem quando não são muito simplesmente perdidos devido à falta de emprego, os bancos não emprestam mais porque sabem que eles próprios continuam insolventes (apesar da poeira "dourada" lançada sobre os olhos da opinião pública nestes últimos meses) [19] . E o estado por si só não pode substituir o frenesim de consumo do passado. O estímulo de Barack Obama, com seus menos de 400 mil milhões por ano durante dois anos está bastante longe dessa quantia se for para aliviar em simultâneo a deserção das famílias e das empresas. Infelizmente, isto é exactamente a situação actual da economia dos EUA.
Mas nesta matéria os americanos não estão sós. A Ásia e a Europa também experimentam uma terrível subida do desemprego que as manipulações estatísticas [20] não podem esconder para além do período estival: desempregados erradicados das listas de subsidiados, jovens postos em colocações de espera ou desempregados recrutados para trabalhos públicos de curta duração, licenciamentos retardados através de medidas de indemnização de desemprego parcial, fábricas mantidas artificialmente em actividades por subvenções públicas, ... de Pequim a Paris, passando por Washington, Berlim, Londres ou Tóquio, todas as medidas são boas para tentar esconder a realidade o tempo mais longo possível ... à espera da retomada. Mas, infelizmente, a retomada não virá a tempo. É Blücher no lugar de Grouchy [21] . Ao invés da retomada, o que surgem são as consequências das três vagas monstruosas do Verão de 2009:
a evidência do desemprego em massa, nomeadamente em fim de indemnização e suas consequências desastrosas sobre a estabilidade política e social dos países
a explosão do número de falências de empresas, de colectividades, ... e dos défices públicos de toda espécie
e naturalmente as consequências do conjunto sobre o dólar, os títulos do Tesouro dos EUA (e o Reino Unido como dano colateral) [22] .
A primeira vaga já atingiu plenamente a margem no fim do Verão de 2009. A segunda está em curso. E a terceira começa a ser bem visível.
Se bem que a zona Euro e a Ásia em geral estejam melhor colocados para enfrentar o impacto destas vagas (como analisado em Outubro último no GEAB nº 28 ), elas não estão mais em condições de recuperar-se. Entretanto, é certamente nos Estados Unidos, no dólar e nos Títulos do Tesouro dos EUA, por um lado, e no Reino Unido e na libra por outro, que as consequências destas três vagas se vão exercer brutalmente. O sonho estival também tem um fim!
Em contrapartida, para aqueles que ainda têm meios para viajar, as férias podem continuar pois hotéis, companhias aéreas, clubes de férias ... apregoam preços em níveis jamais vistos. Um outro sinal evidente de "retomada".
Notas:
1- Por exemplo: falar em percentagem faz parte da "euforia" do Verão de 2009. Assim, certo número de bancos cujo valor em bolsa caiu próximo do 0 puderam afirmar nestes últimos meses "retomadas" de +200%, +300% ou +500%. Basta por exemplo examinar a evolução das cotações do Natixis , Citi ou Royal Bank of Scotland , para compreender a armadilha: recuperar 500% quando a acção caiu a 1, isso vos dá 5 ... o que vos deixa sempre uma perda de 40 se a tiver comprado há dois anos (ou se tomou emprestado contra esta garantia).
2- O anúncio pela França de que o estado prolonga até o fim de 2010 o seu apoio aos bancos é uma perfeita ilustração. Fonte: Reuters , 13/09/2009
3- Ver o comunicado publicado pelo LEAP no Financial Times na véspera da Cimeira do G20 de Londres em Abril último.
4- A "caça aos bónus dos traders" é uma acção moralmente saudável, mas ela não deve fazer esquecer que eles são apenas os "corsários" dos bancos que os empregam e das praças financeiras que abrigam estes últimos. São os seus patrões e os que os abrigam que lhes concedem as suas "comissões" (ou dever-se-ia dizer bónus?) e que os autorizam a esquadrinhar os oceanos das finanças mundiais. Limitar o bónus ao montante do seu salário obrigaria os bancos a empregá-los como capitães de longo curso, ao invés de piratas.
5- Fonte: Times, 02/09/2009
6- Nos Estados Unidos, o ritmo real de aumento do desemprego continua a estabelecer-se entre 600.000 e um milhão de pessoas por mês se forem considerados todos aqueles que cessam de procurar um emprego (fonte: CNBC/New York Times, 07/09/2009). E, para ter um esboço da vaga socialmente explosiva que atinge a economia dos EUA, na Califórnia, desde 1º de Setembro, são 143.000 desempregados que esgotaram seus direitos (com as suas famílias, isto dá quase um milhão de pessoas na miséria ... no mês em curso) – fonte: MyBudget360 , 02/09/2009. Na Europa, na Ásia, ... por toda a parte as taxas de desemprego orientam-se para uma ultrapassagem dos picos históricos modernos daqui até ao fim de 2009 (com 5,7%, o Japão já superou seu patamar histórico em Julho – fonte: Japan Times, 08/09/2009) ... e isto apesar das manipulações de toda espécie para reduzir os números.
7- A título anedótico, há mais falências bancárias nos Estados Unidos entre a saída do GEAB nº 36 (15/Junho/2009) e a do GEAB nº 37 (15/Setembro/2009) do que em todo o ano de 2008, incluindo-se aí duas das quatro mais importantes do ano. Mas, evidentemente, os media não podem fazer manchetes sobre a gripe A e sobre as falências ao mesmo tempo. Passa-se o mesmo quanto às taxas de falência das empresas americanas que atingiram o seu mais alto nível histórico com 12,2% (fonte: Yahoo , 09/09/2009). Na Espanha, o número de falências no primeiro semestre de 2009 é equivalente a três vezes o número de todo o ano de 2008 (fonte: Spanish News, 0 6/08/200). Em França, o patronato espera 70.000 falências de empresas daqui até o fim do ano (fonte: Capital , 02/09/2009).
8- O enfraquecimento acelerado do US dólar cria um novo stress monetário mundial e o próximo pedido, pela administração Obama, de aumento de US$1. 500 mil milhões do tecto autorizado de endividamento federal dos EUA não acalma a fuga para longe da divisa estado-unidense. O tecto de US$12.000 mil milhões de endividamento está com efeito em vias de ser atingido. Fontes: Wall Street Journal, 12/09/09; Bloomberg , 08/09/2009; Wall Street Journal, 12/09/09.
9- Havíamos indicado que uma tal "janela de oportunidade" existia entre a Primavera e o Verão de 2009. Esta janela doravante está fechada.
10- Ver GEAB N°22 , 02/2008
11- Ver GEAB N°32 , 02/2009.
12- Como as baixas do desemprego americano e francês do começo do Verão ou as taxas de crescimento da produção chinesa. Fontes: New York Times, 10/08/2009; Expansion, 27/07/2009; Wall Street Journal, 25/05/2009.
13- Verifica-se muito útil ler o artigo de Marion Selz intitulado "Les statistiques, un service public détourné". Trata-se de uma obra colectiva recente realizada no anonimato por estatísticos franceses com um título evocativo: Le grand truquage : Comment le gouvernement manipule les statistiques . Não há dúvida de que neste período de crise global as informações reveladas aplicam-se a todos os governos do planeta. Fonte: La vie des idées, 02/09/2009
14- Quando a 15 de Fevereiro de 2008, no GEAB nº 22 , anunciámos que tudo se orientava para um "Dollar carry-trade", muitos foram aqueles que consideraram impensável uma tal evolução. Contudo, hoje é exactamente o que se passa nos mercados monetários. Fonte: Le Monde, 12/09/2009. [Carry-trade: Prá de tomar emprestado dinheiro numa moeda em que as taxas são mais baixas e a seguir substituir este capital por outra moeda que o remunere melhor. NT]
15- Que em Abril de 2009 se apressaram a obter (fonte: Bloomberg , 02/04/2009) o direito de retornar ao sistema de "valor justo" (estimo que o meu activo valha 100) ao invés de manter a valorização dos seus activos ao "preço do mercado" (no mercado, teu activo vale 10)... e portanto persistem em manter nos seus balanços que já não sabem mais de todo o que realmente vale, nomeadamente porque suspeitam muito justamente que estes activos já não valem senão 10% ou 20% do seu "valor justo".
Os campos e as cidades dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Espanha, da Letónia, do Japão, da China, ... estão assim cheios de casas, apartamentos e imóveis que ninguém compra pois os seus preços são mantidos artificialmente pelos bancos muito acima dos preços de mercado, a fim de que os seus balanços não mostrem que eles estão de facto insolventes pois os seus activos estão quase todos "apodrecidos". Os banqueiros também tentam ganhar tempo, esperando um retorno ao mundo anterior. Serão eles crianças grandes nostálgicas da sua idade de ouro? Ou antes graves delinquentes que põem em perigo a sociedade? O futuro vai proximamente determinar no decorrer da fase de deslocação geopolítica global.
16- No próximo GEAB, o nº 38, que aparecerá em Outubro, faremos uma actualização das nossas antecipações por país e grandes regiões do mundo, incluindo naturalmente um balanço referente às cessações de pagamentos dos Estados Unidos e do Reino Unido.
17- Com um recorde de emissões obrigacionistas na Europa (€1.100 mil milhões para a zona Euro em 2008 e mais de €250 mil milhões para o Reino Unido), e um défice federal de US$9.000 mil milhões nos dez próximos anos, não há qualquer dúvida sobre o aspecto incontrolável do caso. Fonte: Yahoo/Reuters, 04/09/2009 CBS , 25/08/2009
18- Nos Estados Unidos, na Europa ou igualmente na China. Fontes: Reuters , 08/09/2009; Financial Times, 06/09/2009; BBC , 26/07/2009.
19- A respeito dos bancos, a nossa equipe recomenda calorosamente a leitura do notável artigo de Matt Taibbi, "No interior da grande máquina a bolha americana" aparecido no Rollingstones a 02/07/2009. Ele pormenoriza a história da Goldman Sachs e traz um esclarecimento essencial sobre as práticas financeiras e o papel central deste estabelecimento financeiro na crise financeira actual. Do mesmo modo como as defuntas Companhias das Índias, ou das ordens templárias, é provável que daqui a cinco a dez anos no máximo o poder político americano, face ao afundamento sócio-económico do país e sob a pressão popular, será obrigado a desmantelar esta instituição que doravante parasita a acção pública a todos os níveis.
20- Em última análise, todos estes indicadores repousam sobre a medida do valor que é o dólar dos EUA. Ora, se se transferisse a variação da sua taxa de câmbio para um écran semelhante ao de uma bússola, ver-se-ia a agulha oscilar a cada mês entre o Norte, o Sul, o Leste ou o Oeste. Não é de espantar que o conjunto dos actores políticos, económicos e financeiros mundiais estejam portanto "desbussolados".
21- Napoleão também acreditava com firmeza, aquando a batalha de Waterloo , que a sorte lhe iria sorrir mais uma vez e que ia receber um reforço amigo (Grouchy) no momento decisivo do combate. Infelizmente, a tropa tão esperada, cuja poeira mostrava a progressão rápida, revelou-se ser a de um reforço inimigo (Blücher). Todo o mundo sabe a sequência; e não estamos certos de que os dirigentes do G20 sejam estrategas tão experimentados quanto Napoleão.
22- Neste domínio por vezes a crise faz prova de um "humor muito britânico", provando ao mesmo tempo que se está longe de ter visto todas as suas consequências, uma vez que doravante Londres deve esperar a obrigação de pagar uma conta pesada para salvar do afundamento toda a sua pequena rede de paraísos fiscais. As ilhas Caimans por exemplo, já não podem sequer pagar os seus funcionários. Não há dúvida de que esta perspectiva vai maravilhar os contribuintes britânicos! De qualquer forma, estas ilhas poderão sempre recorrer a uma ideia simples: cobrar impostos. Fonte: Guardian, 13/09/2009
15/Setembro/2009
[*] Global Europe Anticipation Bulletin.
O original encontra-se em
www.leap2020.eu