Re: A Questão Indigena
Enviado: Qua Abr 23, 2008 2:37 pm
Fantasmas convenientes
Felipe Milanez
Nos pés do Monte Roraima, extremo norte do Brasil, uma praça-de-guerra foi montada nas últimas semanas por uma questão que assola grande parte dos sertões do País: o conflito fundiário em terras indígenas. De um lado está a Polícia Federal, pronta a cumprir a lei que determina a retirada de fazendeiros da reserva Raposa Serra do Sol. De outro, um grupo de produtores rurais, liderados por Paulo César Quartiero, a prometer resistência até a morte. Quartiero chegou a contratar pistoleiros em Manaus e na Venezuela para defender sua propriedade. No meio, 18 mil indígenas declarados donos de uma área de 1,74 milhão de hectares e que esperam obter, de fato, o que de direito conseguiram em 2005, quando a área foi homologada pelo governo federal. Como pano de fundo, uma discussão que faz reaparecer velhos fantasmas dos ultranacionalistas, entre eles o risco de internacionalização da Amazônia.
A interrupção do processo de retirada dos fazendeiros por uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) adiou o conflito em Roraima, mas criou um novo ponto de atrito em Brasília entre os poderes Executivo e Judiciário. “O que estamos assistindo é uma fraude”, dispara o ministro da Justiça, Tarso Genro, contra a tese, aparentemente acatada pelo STF, de que a homologação da reserva seria uma ameaça à integridade nacional e à soberania. Há sinais de que vários ministros do Supremo compartilham da preocupação externada por integrantes das Forças Armadas, da reserva e da ativa, de que a criação de áreas indígenas de enorme extensão é um entrave ao trabalho do Exército Brasileiro e, por extensão, um enfraquecimento da capacidade de controle das divisas.
Relator do processo no Supremo, o ministro Carlos Ayres Britto declarou que a região é próxima da fronteira brasileira e deve ser tratada como estratégica. Mais comedido nas palavras, o ministro Eros Grau expressou à CartaCapital preocupação semelhante: “Existem ali interesses de toda ordem. Há os de organizações não-governamentais, e as ONGs podem ser do bem e podem ser do mal. Tenho muito medo quando se quer transferir as responsabilidades do Estado para a sociedade civil, vale dizer para o mercado”.
O ministro Genro discorda. Para ele, o temor da suposta ameaça à soberania está embasado em mitos. “Há um apoio a uma resistência que se coloca como movimento social, coisas são apresentadas como natural, mas trata-se de ações terroristas de resistência”, considera, em referência à posição dos fazendeiros, já indenizados, de não querer deixar as terras. Segundo o ministro, o que acontece é “a chegada do Estado de Direito a um lugar dominado pelo Estado Oligárquico”. O maior dos mitos, diz Genro, é o de que as terras indígenas são indisponíveis para a União. “Alimentou-se uma mentira. Do ponto de vista jurídico, é falsa a preocupação dos militares. Na verdade, o País perde o controle quando arrozeiros armados impedem a chegada da lei.”
Militares da reserva demonstraram na mídia, nas últimas semanas, a contrariedade com a ação de retirada e o cumprimento da homologação da reserva. Não é uma posição nova a respeito do assunto. Desde que a demarcação começou a ser pleiteada, há 33 anos, as Forças Armadas sempre se opuseram ao projeto. O Exército chegou a ter três bases na área: Uiramutã, Normandia e Pacaraima. Em 1996, os generais pareciam ter vencido a queda-de-braço com a Fundação Nacional do Índio (Funai). À época, o então ministro da Justiça Nelson Jobim, hoje titular da Defesa, determinou, por portaria, que fossem criadas ilhas isoladas de reserva e não uma área contínua, como defendia a Funai.
O sucessor de Jobim, Renan Calheiros, voltou atrás e aprovou a criação de uma reserva em território contínuo. Dezenas de ações do estado de Roraima e de particulares chegaram à Justiça Federal, que suspendeu os efeitos da portaria declaratória da terra e impediu o último trâmite do processo, a homologação definitiva pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Foi durante a gestão de Márcio Thomaz Bastos no Ministério da Justiça que a criação da reserva finalmente saiu do papel. Bastos elaborou uma nova portaria que pôs fim a todas as ações judiciais. A estratégia recebeu o aval do ministro do Supremo Carlos Ayres Britto. No dia seguinte à decisão de Britto, Lula assinou a homologação da terra indígena.
Os temores dos militares deveriam ter sido definitivamente superados nesse momento. Como as terras indígenas pertencem à União, a lei determinou que o Exército disponha de total autonomia para entrar e montar bases em caso de ameaça à soberania. O Decreto nº 4.412, publicado no final do governo FHC, diz que basta as Forças Armadas consultarem a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional caso queiram instalar unidades em reservas. O próprio decreto de homologação assinado por Lula mais tarde assegura, expressamente, a ação militar e da Polícia Federal na região.
Mas nem essas medidas serviram para apaziguar os ânimos. Quando presidiu a Funai, Mércio Pereira Gomes foi convocado diversas vezes pela Escola Superior de Guerra para prestar esclarecimentos sobre o processo, por causa do continuado e irremovível receio dos oficiais. “Eles se preocupavam com a segurança, mas não há dúvidas na legislação de que o Exército tem autonomia para cuidar das fronteiras”, afirma Gomes. “E sobre a soberania, a legislação brasileira e internacional garantem a integridade do território.”
Em um seminário sobre ameaças à soberania brasileira, realizado na quarta-feira 16 no Clube Militar, no Rio de Janeiro, o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, disse que a política indigenista “é lamentável, para não dizer caótica”. Foi aplaudido por cerca de 150 militares da ativa e da reserva. O general Mário Madureira, do Comando Militar do Leste, acrescentou: “O risco da soberania é com áreas que podem ser separadas do território brasileiro”.
No ressurgimento dos fantasmas dos riscos à soberania, passa despercebida uma antiga colaboração dos índios à defesa do território nacional. Segundo o antropólogo Paulo Santilli, fatos históricos comprovam a participação indígena na defesa das fronteiras. “O Joaquim Nabuco, então advogado do Brasil, propôs uma brilhante estratégia de ocupação contínua da colônia, a formação de “muralhas no Sertão”. Essas muralhas seriam formadas por tribos que consideravam brasileiras e cujos integrantes tinham nome português de batismo”, lembra.
Santilli recorda ainda as expedições do marechal Cândido Rondon. Em 1927, Rondon partiu para a Região Norte na Comissão de Inspeção de Fronteiras. “Eram os índios que carregavam os armamentos, os instrumentos, o cimento para fazer o marco, as fardas, os mantimentos, que deram nomes aos rios da divisa. Muitos índios trabalharam nessa comissão”, afirma Santilli. Foi então que Rondon afirmou a importância das “fronteiras vivas”, habitadas pelos indígenas aliados ao governo federal.
Na Amazônia Legal há hoje quase cem terras indígenas situadas dentro da faixa de fronteira. Na Yanomami, há três batalhões, enquanto nas do Alto Rio Negro há cinco. “Muitos soldados, na Cabeça do Cachorro, são indígenas”, afirma o antropólogo Beto Ricardo, secretário-executivo do Instituto Socioambiental, uma ONG bastante ativa na região. Na própria Raposa Serra do Sol resiste o batalhão em Pacaraima.
Para regulamentar o convívio cada vez mais intenso entre as Forças Armadas e os indígenas, foi elaborada a Portaria 983, de 2003, do Ministério da Defesa. Entre os pontos levantados está o de se incluir nos currículos das escolas militares assuntos referentes à política indigenista brasileira, e considerar estudos e medidas necessários para a redução do impacto socioambiental nas comunidades da instalação ou transferência de unidades militares.
Sem um fato concreto que aponte os riscos à soberania, os militares levantam fantasmas a respeito da internacionalização da Amazônia. Segundo essa tese bastante difundida entre os oficiais, os índios poderiam se associar a ONGs estrangeiras e à Organização das Nações Unidas (ONU) para pleitear a independência de reservas. Contribuiu para o argumento nacionalista o fato de o Conselho Indígena de Roraima (CIR) ter recorrido à Organização dos Estados Americanos na tentativa de forçar o governo brasileiro a realizar a retirada dos fazendeiros.
“É uma verdadeira paranóia”, afirma o atual presidente da Funai, Márcio Meira. “Toda ONG, assim como toda empresa que se estabelece no Brasil, é obrigada a seguir as leis brasileiras”, diz. De acordo com ele, a Declaração Universal dos Povos Indígenas, da ONU, foi feita com a participação do governo brasileiro e respeita expressamente a soberania dos países. “A autonomia que se confere aos índios é cultural, na mesma linha da Constituição de 1988”, esclarece.
“Há todo um mito de processos de internacionalização da Amazônia que não é uma história recente”, afirma Nagib Lima, da Casa Civil. “A discussão de fronteiras em nenhum momento afeta a segurança do Estado brasileiro, pois as forças de segurança estão presentes”, diz.
Para o coordenador do CIR, o índio macuxi Dionito José de Souza, o STF posicionou-se a favor de uma ilegalidade. “Não faz o menor sentido dizer que não queremos ser brasileiros. É um argumento para impedir a demarcação das terras indígenas, e o Supremo entendeu que era melhor ser favorável aos bandidos”, diz. E conta: “Os rizicultores fecharam a escola e disseram que ninguém vai poder ir à aula”. Souza lembra que a escola em questão já havia sido incendiada pelos fazendeiros em 2005. O inquérito criminal corre na delegacia federal de Boa Vista.
Convidado a dar uma palestra sobre a soberania da Amazônia no Clube Militar, Jonas Marculino, ex-presidente da Sociedade de Defesa dos Indígenas Unidos do Norte de Roraima (Sodiur), organização que defendia a permanência dos arrozeiros na área até pouco tempo atrás, mas mudou de lado após, segundo ele, perceber as vantagens da demarcação, faz coro aos militares. “A questão da Raposa Serra do Sol é bastante problemática por estar nos olhos da comunidade internacional. Eu vejo muitos olhares, creio eu, mais capitalistas do que humanitários”, diz o índio.
Marculino é considerado um intelectual por seu grupo indígena, que faz oposição ao CIR. A Sodiur chegou a praticar atos violentos contra a homologação, inclusive com o seqüestro de quatro agentes federais em 2005. “A Sodiur não está mais envolvida com a violência. Antes, sim, quando houve alguma influência de pessoas não indígenas, com dinheiro que conseguiram mobilizar lideranças, e houve tragédias”, conta.
O temor no governo e em grupos defensores dos índios é que o Supremo reveja a definição da reserva e estimule uma enxurrada de ações revisionistas com contestações sobre a demarcação de outras terras Brasil afora. “O STF dita e nós obedecemos”, afirma o ministro Genro. “Porém, eles vão ter de compartilhar a responsabilidade sobre o conflito.” No momento, o calor do debate sobe nos gabinetes de Brasília. A Raposa Serra do Sol, em meio à floresta, continua em transe, entre uma solução pacífica e um confronto, cujas proporções continuam indefinidas.
Fonte: Carta Capital - obtido na resenha do CCOMSEx em 23/04/08
Felipe Milanez
Nos pés do Monte Roraima, extremo norte do Brasil, uma praça-de-guerra foi montada nas últimas semanas por uma questão que assola grande parte dos sertões do País: o conflito fundiário em terras indígenas. De um lado está a Polícia Federal, pronta a cumprir a lei que determina a retirada de fazendeiros da reserva Raposa Serra do Sol. De outro, um grupo de produtores rurais, liderados por Paulo César Quartiero, a prometer resistência até a morte. Quartiero chegou a contratar pistoleiros em Manaus e na Venezuela para defender sua propriedade. No meio, 18 mil indígenas declarados donos de uma área de 1,74 milhão de hectares e que esperam obter, de fato, o que de direito conseguiram em 2005, quando a área foi homologada pelo governo federal. Como pano de fundo, uma discussão que faz reaparecer velhos fantasmas dos ultranacionalistas, entre eles o risco de internacionalização da Amazônia.
A interrupção do processo de retirada dos fazendeiros por uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) adiou o conflito em Roraima, mas criou um novo ponto de atrito em Brasília entre os poderes Executivo e Judiciário. “O que estamos assistindo é uma fraude”, dispara o ministro da Justiça, Tarso Genro, contra a tese, aparentemente acatada pelo STF, de que a homologação da reserva seria uma ameaça à integridade nacional e à soberania. Há sinais de que vários ministros do Supremo compartilham da preocupação externada por integrantes das Forças Armadas, da reserva e da ativa, de que a criação de áreas indígenas de enorme extensão é um entrave ao trabalho do Exército Brasileiro e, por extensão, um enfraquecimento da capacidade de controle das divisas.
Relator do processo no Supremo, o ministro Carlos Ayres Britto declarou que a região é próxima da fronteira brasileira e deve ser tratada como estratégica. Mais comedido nas palavras, o ministro Eros Grau expressou à CartaCapital preocupação semelhante: “Existem ali interesses de toda ordem. Há os de organizações não-governamentais, e as ONGs podem ser do bem e podem ser do mal. Tenho muito medo quando se quer transferir as responsabilidades do Estado para a sociedade civil, vale dizer para o mercado”.
O ministro Genro discorda. Para ele, o temor da suposta ameaça à soberania está embasado em mitos. “Há um apoio a uma resistência que se coloca como movimento social, coisas são apresentadas como natural, mas trata-se de ações terroristas de resistência”, considera, em referência à posição dos fazendeiros, já indenizados, de não querer deixar as terras. Segundo o ministro, o que acontece é “a chegada do Estado de Direito a um lugar dominado pelo Estado Oligárquico”. O maior dos mitos, diz Genro, é o de que as terras indígenas são indisponíveis para a União. “Alimentou-se uma mentira. Do ponto de vista jurídico, é falsa a preocupação dos militares. Na verdade, o País perde o controle quando arrozeiros armados impedem a chegada da lei.”
Militares da reserva demonstraram na mídia, nas últimas semanas, a contrariedade com a ação de retirada e o cumprimento da homologação da reserva. Não é uma posição nova a respeito do assunto. Desde que a demarcação começou a ser pleiteada, há 33 anos, as Forças Armadas sempre se opuseram ao projeto. O Exército chegou a ter três bases na área: Uiramutã, Normandia e Pacaraima. Em 1996, os generais pareciam ter vencido a queda-de-braço com a Fundação Nacional do Índio (Funai). À época, o então ministro da Justiça Nelson Jobim, hoje titular da Defesa, determinou, por portaria, que fossem criadas ilhas isoladas de reserva e não uma área contínua, como defendia a Funai.
O sucessor de Jobim, Renan Calheiros, voltou atrás e aprovou a criação de uma reserva em território contínuo. Dezenas de ações do estado de Roraima e de particulares chegaram à Justiça Federal, que suspendeu os efeitos da portaria declaratória da terra e impediu o último trâmite do processo, a homologação definitiva pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Foi durante a gestão de Márcio Thomaz Bastos no Ministério da Justiça que a criação da reserva finalmente saiu do papel. Bastos elaborou uma nova portaria que pôs fim a todas as ações judiciais. A estratégia recebeu o aval do ministro do Supremo Carlos Ayres Britto. No dia seguinte à decisão de Britto, Lula assinou a homologação da terra indígena.
Os temores dos militares deveriam ter sido definitivamente superados nesse momento. Como as terras indígenas pertencem à União, a lei determinou que o Exército disponha de total autonomia para entrar e montar bases em caso de ameaça à soberania. O Decreto nº 4.412, publicado no final do governo FHC, diz que basta as Forças Armadas consultarem a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional caso queiram instalar unidades em reservas. O próprio decreto de homologação assinado por Lula mais tarde assegura, expressamente, a ação militar e da Polícia Federal na região.
Mas nem essas medidas serviram para apaziguar os ânimos. Quando presidiu a Funai, Mércio Pereira Gomes foi convocado diversas vezes pela Escola Superior de Guerra para prestar esclarecimentos sobre o processo, por causa do continuado e irremovível receio dos oficiais. “Eles se preocupavam com a segurança, mas não há dúvidas na legislação de que o Exército tem autonomia para cuidar das fronteiras”, afirma Gomes. “E sobre a soberania, a legislação brasileira e internacional garantem a integridade do território.”
Em um seminário sobre ameaças à soberania brasileira, realizado na quarta-feira 16 no Clube Militar, no Rio de Janeiro, o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, disse que a política indigenista “é lamentável, para não dizer caótica”. Foi aplaudido por cerca de 150 militares da ativa e da reserva. O general Mário Madureira, do Comando Militar do Leste, acrescentou: “O risco da soberania é com áreas que podem ser separadas do território brasileiro”.
No ressurgimento dos fantasmas dos riscos à soberania, passa despercebida uma antiga colaboração dos índios à defesa do território nacional. Segundo o antropólogo Paulo Santilli, fatos históricos comprovam a participação indígena na defesa das fronteiras. “O Joaquim Nabuco, então advogado do Brasil, propôs uma brilhante estratégia de ocupação contínua da colônia, a formação de “muralhas no Sertão”. Essas muralhas seriam formadas por tribos que consideravam brasileiras e cujos integrantes tinham nome português de batismo”, lembra.
Santilli recorda ainda as expedições do marechal Cândido Rondon. Em 1927, Rondon partiu para a Região Norte na Comissão de Inspeção de Fronteiras. “Eram os índios que carregavam os armamentos, os instrumentos, o cimento para fazer o marco, as fardas, os mantimentos, que deram nomes aos rios da divisa. Muitos índios trabalharam nessa comissão”, afirma Santilli. Foi então que Rondon afirmou a importância das “fronteiras vivas”, habitadas pelos indígenas aliados ao governo federal.
Na Amazônia Legal há hoje quase cem terras indígenas situadas dentro da faixa de fronteira. Na Yanomami, há três batalhões, enquanto nas do Alto Rio Negro há cinco. “Muitos soldados, na Cabeça do Cachorro, são indígenas”, afirma o antropólogo Beto Ricardo, secretário-executivo do Instituto Socioambiental, uma ONG bastante ativa na região. Na própria Raposa Serra do Sol resiste o batalhão em Pacaraima.
Para regulamentar o convívio cada vez mais intenso entre as Forças Armadas e os indígenas, foi elaborada a Portaria 983, de 2003, do Ministério da Defesa. Entre os pontos levantados está o de se incluir nos currículos das escolas militares assuntos referentes à política indigenista brasileira, e considerar estudos e medidas necessários para a redução do impacto socioambiental nas comunidades da instalação ou transferência de unidades militares.
Sem um fato concreto que aponte os riscos à soberania, os militares levantam fantasmas a respeito da internacionalização da Amazônia. Segundo essa tese bastante difundida entre os oficiais, os índios poderiam se associar a ONGs estrangeiras e à Organização das Nações Unidas (ONU) para pleitear a independência de reservas. Contribuiu para o argumento nacionalista o fato de o Conselho Indígena de Roraima (CIR) ter recorrido à Organização dos Estados Americanos na tentativa de forçar o governo brasileiro a realizar a retirada dos fazendeiros.
“É uma verdadeira paranóia”, afirma o atual presidente da Funai, Márcio Meira. “Toda ONG, assim como toda empresa que se estabelece no Brasil, é obrigada a seguir as leis brasileiras”, diz. De acordo com ele, a Declaração Universal dos Povos Indígenas, da ONU, foi feita com a participação do governo brasileiro e respeita expressamente a soberania dos países. “A autonomia que se confere aos índios é cultural, na mesma linha da Constituição de 1988”, esclarece.
“Há todo um mito de processos de internacionalização da Amazônia que não é uma história recente”, afirma Nagib Lima, da Casa Civil. “A discussão de fronteiras em nenhum momento afeta a segurança do Estado brasileiro, pois as forças de segurança estão presentes”, diz.
Para o coordenador do CIR, o índio macuxi Dionito José de Souza, o STF posicionou-se a favor de uma ilegalidade. “Não faz o menor sentido dizer que não queremos ser brasileiros. É um argumento para impedir a demarcação das terras indígenas, e o Supremo entendeu que era melhor ser favorável aos bandidos”, diz. E conta: “Os rizicultores fecharam a escola e disseram que ninguém vai poder ir à aula”. Souza lembra que a escola em questão já havia sido incendiada pelos fazendeiros em 2005. O inquérito criminal corre na delegacia federal de Boa Vista.
Convidado a dar uma palestra sobre a soberania da Amazônia no Clube Militar, Jonas Marculino, ex-presidente da Sociedade de Defesa dos Indígenas Unidos do Norte de Roraima (Sodiur), organização que defendia a permanência dos arrozeiros na área até pouco tempo atrás, mas mudou de lado após, segundo ele, perceber as vantagens da demarcação, faz coro aos militares. “A questão da Raposa Serra do Sol é bastante problemática por estar nos olhos da comunidade internacional. Eu vejo muitos olhares, creio eu, mais capitalistas do que humanitários”, diz o índio.
Marculino é considerado um intelectual por seu grupo indígena, que faz oposição ao CIR. A Sodiur chegou a praticar atos violentos contra a homologação, inclusive com o seqüestro de quatro agentes federais em 2005. “A Sodiur não está mais envolvida com a violência. Antes, sim, quando houve alguma influência de pessoas não indígenas, com dinheiro que conseguiram mobilizar lideranças, e houve tragédias”, conta.
O temor no governo e em grupos defensores dos índios é que o Supremo reveja a definição da reserva e estimule uma enxurrada de ações revisionistas com contestações sobre a demarcação de outras terras Brasil afora. “O STF dita e nós obedecemos”, afirma o ministro Genro. “Porém, eles vão ter de compartilhar a responsabilidade sobre o conflito.” No momento, o calor do debate sobe nos gabinetes de Brasília. A Raposa Serra do Sol, em meio à floresta, continua em transe, entre uma solução pacífica e um confronto, cujas proporções continuam indefinidas.
Fonte: Carta Capital - obtido na resenha do CCOMSEx em 23/04/08