Cena do filme "Iluminados por el fuego", do diretor Tristán Bauer
DivulgaçãoA Guerra das Malvinas sai do esquecimento na Argentina por conta do filme “Iluminados por el fuego”, no Brasil em 2006
Em meio ao horror e ao delírio da guerra, uma lufada de amizade, juventude e inocência. Não se trata de “O resgate do soldado Ryan”, mas de uma recuperação muito mais próxima das latitudes sul-americanas: “Iluminados por el fuego”, resgate fílmico da história dos 655 mortos, 1.100 feridos e 11.313 prisoneiros que combateram sob a bandeira argentina na Guerra das Malvinas, em 1982. O longa venceu o Prêmio Especial do Júri no Festival de San Sebastián neste ano e tem previsão de estréia no Brasil no primeiro semestre do ano que vem.
Dirigido por Tristán Bauer (do documentário “Evita, o túmulo sem paz”, exibido em 1998 na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo), a produção é uma ficção com registros documentais que devolve rosto e voz a personagens apagados da memória argentina depois do fracasso do país no conflito com o Reino Unido. O tema ainda é tabu numa sociedade que aprendeu a “desmalvinizar” (isso é, não tocar mais do assunto, ordem expressa dos mandatários do país aos soldados a caminho de casa) assim que o embate chegou, sem honra nem glória, ao fim.
“Tratar das Malvinas é difícil. Esse é ainda um tema abafado pelo cinema. Depois de 23 anos, e num período em que mais de mil ficções foram filmadas na Argentina, pouquíssimas tratam da guerra”, diz Bauer, de 46 anos.
“Há uma contradição na maneira como se vê tudo isso, o sentimento de recuperação de um território, entendido como nacional, com uma guerra no meio, e que se tornou um crime executado pelos generais da ditadura. Mas que teve também a população, no momento de anúncio do conflito, apoiando a decisão, como se estivéssemos entrando num campeonato de futebol. Aí veio a derrota e, depois, já não se fala mais disso”, analisa Bauer. “Sabíamos que se tratava de um tema complicado, mas assumimos o desafio.”
Entre eles, conseguir patrocínio para a produção, obter auxílio do Exército e, especialmente, vencer a desconfiança dos habitantes das Malvinas. A ajuda do Exército, para serem reproduzidas cenas de batalha, nunca se concretizou, apesar do apoio público às filmagens por parte do presidente argentino Néstor Kirchner. O diretor teve que recorrer aos serviços de uma companhia de dublês e efeitos especiais).
“Quando começamos a buscar apoios, as produtoras falavam: ´Esquece isso, das Malvinas as pessoas não querem nem ouvir falar`”, conta Bauer. E, uma vez desembarcados nesse território aparentemente destinado ao esquecimento, não encontraram uma população exatamente receptiva. “Filmar nas ilhas foi muito complexo. Chegamos depois de ´Fuckland`, filme que gerou muito antipatia por lá. A relação com os habitantes era de suspeita. Acabamos estabelecendo um relacionamento mais próximo com os jovens e uma convivência mais limitada com quem era mais velho. Mas foi, sempre, uma relação de respeito.”
Realizado em 2000 por José Luis Marques, “Fuckland” mostrava, com o propósito de emprestar algum humor e tom documental à situação, o desenvolvimento do plano de um jovem argentino: entrar clandestinamente nas Malvinas, engravidar uma mulher que fosse descendente de britânicos e, assim, ir reconquistando o território, através de um novo “povoamento”.
“Iluminados por el fuego” também coloca todas as suas fichas na valorização do sentido humano por trás da questão territorial e igualmente se ocupa de respingar cores da realidade em meio às liberdades garantidas pela ficção, mas o faz de modo muito diverso.
O longa-metragem é baseado em livro homônimo escrito por Edgardo Esteban, 43, hoje jornalista e presidente da Associação de Correspondentes Estrangeiros da Argentina. Aos 19 anos e faltando apenas uma semana para deixar o serviço militar, Esteban recebeu a convoção para lutar pela Argentina nas dez semanas em que perdurou o conflito.
Sua narrativa, realizada em parceria com Gustavo Romero Borri, descreve alguns desses 70 dias que abalaram definitivamente seu mundo, quando presenciou fome, frio, castigos, arbitrariedades e mortes. Por uma troca na escala de guarda dos soldados, Esteban não estava no seu posto quando uma bomba matou um colega de luta, Eduardo Vallejo -recruta que lhe substituía excepcionalmente naquele dia (leia trecho do livro abaixo).
Edgardo Esteban voltou às Malvinas em 1999 e depois em 2002 e 2003, para colaborar na produção do filme, experiência que lhe “fechou feridas”, segundo descreve. “Tenho minhas próprias Malvinas dentro de mim, e voltar ali foi poder tocar esse passado e dizer: ´Chega`. Fazer o que sempre digo: tratar de me comprometer com a vida.”
Ao longo dos dias e das baixas, os soldados perdem companheiros, perdem contato com a família, perdem a noção do tempo, já não compreendem por que e como estão lutando, perdem a vontade de viver. Em “Iluminados por el fuego”, a experiência é revivida sob o protagonismo de outro Edgardo, Leguizamón, nome do personagem encarnado por Gastón Pauls (o malandro jovem de “Nove Rainhas”). “Gastón tem uma generosidade e um compromisso como ator que lhe permitiram manter-se no projeto por quatro anos. Levei-o às Malvinas e uma vez lhe disse que, se ele conseguisse, nem que fosse por 15 segundos, transmitir o momento por que passa um menino de 18 anos a quem não se pode pedir que pense na morte, já seria suficiente”, diz Esteban. “Gastón conseguiu isso de maneira fantástica.”
Ao custo de US$ 1,2 milhão, o longa levou cinco anos para ser concluído, depois de obter recursos argentinos e espanhóis. Em cartaz na Argentina há dez semanas, já foi visto por mais de 350 mil espectadores, sinal para Bauer de que “hoje, finalmente, há interesse real nesse assunto”.
Ao lado da trajetória fictícia de Leguizamón, “Iluminados por el fuego” apresenta imagens de arquivo argentinas e britânicas e conteúdo resultante de entrevistas feitas com vários ex-combatentes. “Adotamos um trabalho de investigação como se estivéssemos tratando de preparar um documentário”, explica o diretor. “Escrevemos um roteiro que, se não chega a respeitar completamente o livro, mantém seu foco no olhar humano. Antes de fazer esse filme, não sabia da quantidade de suicídios que aconteceram por conta da guerra.”
“A sociedade se calou sobre as Malvinas porque também foi cúmplice de Leopoldo Galtieri (1926-2003, então presidente do país). A ´desmalvinização` derivou em mortes. Não houve psicólogos, nenhuma política de Estado que desse suporte aos soldados depois que voltaram. Isso fez com que o número de suicídios entre eles fosse maior do que as mortes em combate terrestre. Há 309 suicídios oficialmente registrados -mas fala-se em até 400-, contra 267 soldados que morreram em confrontos nos campos das Malvinas”, contabiliza Esteban.
O roteiro tem autoria de Bauer, Esteban, Borri e Miguel Bonasso, e procura não perder de vista a perspectiva humana sobre uma circunstância causada por objetivos eminentemente políticos. “A primeira coisa que havia em mãos era o livro de um ex-combatente. Que não faz análises políticas, geomilitares, ideológicas. Que traz, sim, o olhar de um jovem levado a enfrentar um dos Exércitos mais poderosos do mundo”, pondera o cineasta sobre o livro do jornalista.
O filme é também resultado de uma busca por sanar anseios internos dos dois autores. Dono de uma carreira marcada por produções em que o centro está sempre situado em figuras emblemáticas de seu país -Eva Perón, Cortázar, Borges-, Bauer encontrou nas Malvinas mais uma oportunidade de tratar de seu tema favorito: personagens e fatos históricos argentinos. “Isso é algo que resulta de uma questão muito interior, sou muito marcado pela história, é algo bastante arraigado em mim, um círculo em que a mente se mantém presa”, afirma. “Como se fosse uma maldição interna”, define, rindo. O diretor se divide agora entre as alternativas de começar a produzir uma ficção ambientada nos anos iniciais da ditadura ou priorizar um documentário sobre Che Guevara.
“Quando você tem 18, 19 anos, com todas possibilidades de vida pela frente, não pensa em morrer”, afirma Esteban. “Esse tema da morte, que tanto me atormentava, foi levado ao livro, sob a forma de como a sentia, como me afetava. Estou satisfeito que essa história agora pertença a outras pessoas e que os soldados possam se sentir refletidos no filme.”
Hoje, ainda às voltas com assuntos internacionais, mas a partir do terreno mais seguro do relato jornalístico, Esteban vê os conflitos contemporâneos como “aberrações”. “Sou antibélico”, diz o jornalista em entrevista a Trópico, concedida durante uma pausa sua na cobertura que realiza da Cúpula das Américas, em Mar del Plata, onde se reúnem presidentes de todo o continente. “Sou totalmente contra isso, ´os que mais podem` contra ´os que menos podem`, contra essa maneira de lutar e olhar a vida apenas através de interesses comerciais. Acredito que a palavra, e não as armas, é o que pode mudar o mundo.”
Leia um trecho do livro “Iluminados por el fuego”,
de Edgardo Esteban e Gustavo Romero Borri
“E entre a grande quantidade de projéteis que passavam por cima houve um que caiu mais perto de mim. Quando olhei, da minha posição fetal para a entrada, vi umas luzes, e a força instantânea de algo como uma rajada de vento me levantou. Quando caí, fiquei como tonto, cego pelo impacto. O que havia acontecido? Estava adormecido, me ardia o pescoço; quando me toquei, senti que me queimavam os dedos e sangrava. Aparentemente, uma lasca havia passado de raspão pelo pescoço. (...) Apalpei todo o meu corpo; estava inteiro, a salvo, mas entregue outra vez ao medo. Do lado de fora, escutei gritos de confusão:
- Escondam-se, merdas, que vão derrubar vocês!
E, entre essas vozes, alguém gritou: - Socorro, há um ferido! Ajuda! -e então, bruscamente, reagi saindo em direção de onde partiam os gritos.
Sabia que Vallejos1 estava em apuros, porque enquanto me aproximava o chamavam e gritavam: - Está ferido! Chamem o enfermeiro!
(...) Havia outros soldados rodeando o buraco. (...) Burgos não reagia, estava mudo, como fora de si, sem compreender nada; Vallejos jazia dentro da vala, com todo o peito aberto. Uma massa de roupa e sangue.
Quando me aproximei, me olhou nos olhos, como querendo falar. Tentei agarrá-lo, e fechou os olhos. Enquanto isso o fogo continuava nos acossando e os assobios dos projéteis atravessavam o ar em todas as direções.
(...) Alguém disse que nesse cemitério haviam enterrado o soldado Vallejos, morto na noite anterior. Então fomos para lá. Ao entrar no cemitério, a primeira coisa que vimos foram cruzes brancas; um monte de cruzes brancas distribuídas em fileiras simétricas. Cada um avançou por um dos pequenos caminhos, observando túmulo por túmulo, até que Burgos parou, quieto, em um lugar. Automaticamente e sem nos falarmos fomos até onde Burgos se deteve. À diferença de outros túmulos, o dele estava coberto por terra fofa; indubitavelmente havia sido o último argentino enterrado aí. Ainda que, ao lado do túmulo de Vallejos haviam enterrado o soldado Pizarro, preferi ficar com Vallejos, porque o havia visto morrer no lugar e na hora em que eu deveria ter estado; me impressionava essa morte, me impressionava tanto como o fato de eu estar com vida, visitando-lhe em seu descanso definitivo.
Estávamos ao redor desse túmulo onde tudo era silêncio. Um silêncio inusitado, absoluto.
(...) A noite em que Vallejos havia caído mortalmente ferido foi a pior noite da minha permanência nas Malvinas e a pior da minha vida. Foi a noite em que a morte esteve rondando mais perto, enquanto eu esperava com raiva e medo. (...) Enquanto caminhávamos, falamos do destino e dele; havia morrido justamente na penúltima noite da guerra.
- Podia ter esperado um pouco mais esse mané, e agora estaria conosco -disse Bizgarra.
Mas ninguém riu com a brincadeira. Então lhes disse que Vallejos estava de guarda no meu lugar, e Burgos disse que sim, que ele já sabia, porque Vallejos estava bravo comigo por isso.
Parecia que o destino do meu companheiro havia sido ficar nas ilhas. Mas dessas coisas nunca se sabe...”