Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

Área para discussão de Assuntos Gerais e off-topics.

Moderador: Conselho de Moderação

Mensagem
Autor
Avatar do usuário
knigh7
Sênior
Sênior
Mensagens: 18125
Registrado em: Ter Nov 06, 2007 12:54 am
Localização: S J do Rio Preto-SP
Agradeceram: 2250 vezes

Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#1 Mensagem por knigh7 » Ter Abr 02, 2019 7:04 pm





Avatar do usuário
knigh7
Sênior
Sênior
Mensagens: 18125
Registrado em: Ter Nov 06, 2007 12:54 am
Localização: S J do Rio Preto-SP
Agradeceram: 2250 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#2 Mensagem por knigh7 » Ter Abr 02, 2019 11:27 pm

Estreou* às 19h. No canal do YouTube já está com quase 400 mil visualizações.

Corrigido




Editado pela última vez por knigh7 em Qua Abr 03, 2019 7:32 pm, em um total de 1 vez.
Avatar do usuário
Frederico Vitor
Sênior
Sênior
Mensagens: 2059
Registrado em: Ter Ago 14, 2007 1:34 pm
Localização: Goiás
Agradeceram: 270 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#3 Mensagem por Frederico Vitor » Qua Abr 03, 2019 11:25 am

LIXO!!!!

[024] [024] [024] [024] [024] [024]

Tentar usar 2019 para ler 1964 e aquela conjuntura é uma insanidade. Esse lixo denominado Brasil Paralelo não passa de um documentário de décima categoria feita por oportunistas desclassificados que não dominam nenhuma técnica salutar do ofício de historiador, não dominam e tampouco sabem teorias da história para se debruçar sobre um fato histórico de suma importância como o 31 de março de 1964. Mais ainda: nem sequer tiveram o cuidado de ter acesso à documentos, especialmente os materiais inéditos que, a meu ver, justificaria um documentário tão pretensioso como este.

Mil vezes lixo!!!




Avatar do usuário
Sterrius
Sênior
Sênior
Mensagens: 5140
Registrado em: Sex Ago 01, 2008 1:28 pm
Agradeceram: 323 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#4 Mensagem por Sterrius » Qua Abr 03, 2019 1:04 pm

Fazer "documentários" hoje em dia é bem fácil.
Difícil é fazer direito.

Brasil paralelo segue a temática de algumas "Estrelas" americanas que fazem documentários propaganda, dando um ar de seriedade ao assunto mas claramente com o conteúdo faltando pq a ideia é levar ao pensamento do autor e não gerar um pensamento critico.




Avatar do usuário
Rurst
Sênior
Sênior
Mensagens: 1140
Registrado em: Dom Ago 21, 2016 10:45 pm
Agradeceram: 177 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#5 Mensagem por Rurst » Qua Abr 03, 2019 1:46 pm














Sterrius escreveu: Qua Abr 03, 2019 1:04 pm Fazer "documentários" hoje em dia é bem fácil.
Difícil é fazer direito.

Brasil paralelo segue a temática de algumas "Estrelas" americanas que fazem documentários propaganda, dando um ar de seriedade ao assunto mas claramente com o conteúdo faltando pq a ideia é levar ao pensamento do autor e não gerar um pensamento critico.
:lol: :lol: :lol: :lol: :lol: :lol: :lol: :lol: :lol: :lol:




Avatar do usuário
Sterrius
Sênior
Sênior
Mensagens: 5140
Registrado em: Sex Ago 01, 2008 1:28 pm
Agradeceram: 323 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#6 Mensagem por Sterrius » Qua Abr 03, 2019 2:00 pm

:roll: . Tu deve ter bastante tempo livre pra assistir tudo isso......

Vou dar um exemplo do que falei. E com um video de 2 minutos ao invés dessa enxurrada que tu jogo porque eu sei que tu tem mais o que fazer da vida.



Brasil paralelo costuma ter uma rota bem +sutil. E nos EUA tem tb videos bem mais sutis que o acima.
Mas admito que da maneira que eu falei devido a pressa não me expressei bem.


Fosse uns 10 anos atrás eu teria visto o documentário e feito contrapontos ponto a ponto usando documentos, outros documentários, livros, especialistas, etc mas sinceramente, cansado pra essas coisas hoje em dia porque levaria bastante tempo e google-fu. Não da mais pra fazer isso com trabalho que tenho hoje.




Avatar do usuário
knigh7
Sênior
Sênior
Mensagens: 18125
Registrado em: Ter Nov 06, 2007 12:54 am
Localização: S J do Rio Preto-SP
Agradeceram: 2250 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#7 Mensagem por knigh7 » Qua Abr 03, 2019 7:37 pm

Vale a pena assistir, Sterrius. Há documentos que são mostrados que fazem a diferença.
Muito bom.




Avatar do usuário
Sterrius
Sênior
Sênior
Mensagens: 5140
Registrado em: Sex Ago 01, 2008 1:28 pm
Agradeceram: 323 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#8 Mensagem por Sterrius » Qua Abr 03, 2019 9:51 pm

knigh7 escreveu: Qua Abr 03, 2019 7:37 pm Vale a pena assistir, Sterrius. Há documentos que são mostrados que fazem a diferença.
Muito bom.
único interesse em documentários que tenho hoje em dia é meu episodio semana de II guerra semana a semana e mensal de Pós WWI. Ando numa vibe +light hoje em dia porque meus tempos de ficar criando walls of texts acabou.

64 virou briguinha ideológica pra validar a ideologia de 2019 que convém a pessoa.

Não a como ver o AI 1 a 5 e dizer que o país continuou uma democracia.
E não a como analisar 64 e a "benevolência" do ato sem olhar o que foi feito nos outros anos.

E nem preciso entrar na discussão de se havia ou não golpe comunista iminente. Isso é irrelevante pra afirmação acima.




Editado pela última vez por Sterrius em Qui Abr 04, 2019 12:33 am, em um total de 1 vez.
Avatar do usuário
vargasem
Intermediário
Intermediário
Mensagens: 158
Registrado em: Sex Set 08, 2006 2:03 pm
Agradeceram: 24 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#9 Mensagem por vargasem » Qua Abr 03, 2019 11:17 pm

Parte do documentário se baseia no livro, "1964, o Elo Perdido", que foi 100% construído em cima dos documentos da STB, sucursal da KGB na antiga Tchecoslováquia.

O autor não fez nenhum julgamento ou tão pouco se dedicou a criar uma narrativa em favor ou contra as ações da STB. Ele simplesmente expôs os documentos de forma organizada com o intuito de deixar aos leitores o papel de julgamento dos fatos. Além do mais, por receio de ser perseguido judicialmente, creio eu que o Mauro Abranches evitou mencionar nomes dos agentes cooptados, mas ele detalhou o papel de cada um dos envolvidos na sociedade, seus cargos ou afiliações. Assim, fica fácil saber quem era quem e evidência que estas ações já ocorriam anos antes de 64, inclusive a preparação da guerrilha armada, que já em 62 estava sendo preparada. O curioso é que boa parte dos que lá estavam recebem hoje benefícios da Lei da Anistia. Pude verificar vários deles no Portal da Transparência.

Este mesmo livro comprova também o que Ladislav Bittman, que foi chefe das ações da STB na América Latina nos anos 60 disse após desertar. Ele escreveu um livro chamado “The KGB and Soviet Disinformation”, publicado no início dos anos 70, onde contou como forjou um relatório e usou de agentes cooptados por sua equipe nos principais meios de comunicação para criar a narrativa de que “O Golpe nasceu em Washington”. Vale muito a pena ler também. O primeiro capitulo todo é dedicado às ações da STB no Brasil.

Sobre o documentário em si, para quem acha que é uma defesa em favor dos militares, está completamente errado. Muito antes pelo contrário, faz duras críticas à passividade deles antes de 31 de março de 64 e demonstra como eles perderam a guerra cultural ao se focarem somente nas guerrilhas.
São fatos históricos baseados em fontes primárias e que vale a pena ser esclarecidos. No entanto, sei que mexer nestes fatos incomoda a muitos. Então deixo aqui a minha contribuição para quem se interessa no assunto e caso queira uma cópia em pdf do livro de Bittman, é só me mandar uma mensagem por DM contendo seu email que enviarem assim que puder.




Avatar do usuário
knigh7
Sênior
Sênior
Mensagens: 18125
Registrado em: Ter Nov 06, 2007 12:54 am
Localização: S J do Rio Preto-SP
Agradeceram: 2250 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#10 Mensagem por knigh7 » Qui Abr 04, 2019 7:16 pm

O documentário já foi visto por 3,2 milhões no canal deles do YT!!




Avatar do usuário
knigh7
Sênior
Sênior
Mensagens: 18125
Registrado em: Ter Nov 06, 2007 12:54 am
Localização: S J do Rio Preto-SP
Agradeceram: 2250 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#11 Mensagem por knigh7 » Qui Abr 04, 2019 8:56 pm





Avatar do usuário
Rurst
Sênior
Sênior
Mensagens: 1140
Registrado em: Dom Ago 21, 2016 10:45 pm
Agradeceram: 177 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#12 Mensagem por Rurst » Seg Abr 08, 2019 3:58 am





Avatar do usuário
Rurst
Sênior
Sênior
Mensagens: 1140
Registrado em: Dom Ago 21, 2016 10:45 pm
Agradeceram: 177 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#13 Mensagem por Rurst » Dom Jun 09, 2019 9:39 pm





Avatar do usuário
FilipeREP
Avançado
Avançado
Mensagens: 438
Registrado em: Qua Nov 13, 2019 2:50 pm
Agradeceram: 52 vezes

Os Processos Políticos nos Partidos Militares do Brasil

#14 Mensagem por FilipeREP » Dom Nov 17, 2019 3:59 pm

(Introdução do livro Os Partidos Militares no Brasil.)

Os Processos Políticos nos Partidos Militares do Brasil: Estratégia de pesquisa e dinâmica institucional, por Alain Rouqué e tradução de Octavio Alvez Velho, 1980.

“Nessa ocasião eu não tinha compreendido bem por que a partida do presidente Castello Branco e a transmissão da presidência ao general Costa e Silva eram encaradas como a chegada ao poder de um partido adverso.”
- General Hugo Abreu, O Outro Lado do Poder.

Na origem desta obra coletiva encontra-se um grupo de trabalho interdisciplinar, formado de especialistas franceses e estrangeiros de diferentes áreas culturais, que se reuniu durante quase dois anos no Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais para refletir acerca do tema das Forças Armadas como forças políticas. Os participantes desse projeto tinham em comum uma profunda insatisfação diante dos métodos mais difundidos de abordagem do poder militar. Da necessidade de renovar a análise das práticas extramilitares dos exércitos decorre a problemática elaborada em comum, que serviu de base a uma mesa-redonda reunida em Paris, em 17 e 18 de maio de 1979, na Fundação Nacional de Ciências Políticas, com a ajuda da Casa das Ciências do Homem. Vários pesquisadores brasileiros, especializados em diferentes disciplinas, haviam participado da discussão de nossa grade de análise. Igualmente o caso do Brasil, exemplo privilegiado de sistema político com predomínio militar, fora bem representado, quando da reunião de maio de 1979, e particularmente discutido. [1]

Pareceu-nos que o interesse suscitado por uma revisão da experiência brasileira merecia ser prolongado [2] e que convinha prosseguir nas pesquisas empreendidas por nosso impulso antes de submeter as primeiras conclusões a um público maior. Tal é a razão deste livro.

[1] Não saberíamos citar todos os que, por sua participação em nosso grupo de trabalho ou na mesa-redonda de maio de 1979, enriqueceram nossa perspectiva e matizaram nossas interpretações. Assinalemos simplesmente, entre outras, a importante contribuição trazida aos relatores daquela reunião e autores deste livro por nosso colega Peter Flynn, eminente “brasilianista” e diretor do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade de Glasgow.
[2] Ver debate organizado pelo seminário Movimento com os autores deste livro “A Crise do Poder Militar”, Movimento, 4 de junho de 1979 e 11 de junho de 1979.

Para uma nova leitura do Poder Militar no Brasil

No início de nossa empresa figuravam uma série de constatações genéricas, todas, porém, aplicáveis particularmente ao “laboratório” brasileiro. Em geral o estudo do papel político dos militares circunscreve-se à busca das causas ou do sentido das intervenções armadas e às realizações específicas ou diferenciais de regimes não-civis em grau variável. Ora, não é evidente que a análise das causas dos golpes de Estado seja significativa em um país onde o Exército, ator permanente da vida pública há quase um século, banalizara sua participação, se bem que não mais do que raramente exercera o poder. Com efeito, se as Forças Armadas no Brasil apoderaram-se do governo em 1964 por um período mais prolongado, trata-se, diversamente de certos países vizinhos, de uma situação excepcional que não se reproduzira desde a derrubada do Império em 1889. Não obstante, o Exército brasileiro que, para certos autores, costuma atribuir-se no sistema político um “poder moderador” análogo ao do soberano no tempo do Império, tem estado presente em todas as reviravoltas da história nacional e apresentado peso determinante nos períodos de crise. Foi o velho Exército de Deodoro da Fonseca e de Floriano Peixoto que instaurou a República em 1889, antes de entregar a direção da coisa pública aos civis. E foi ele também que deu fim à República oligárquica, em 1930. Foi ele igualmente permitiu em 1937 a instauração, pela força da ditadura centralizadora, do Estado Novo de Getúlio Vargas. E o Exército, que sustentou essa experiência autoritária, chegado o momento, em 1945, depôs Vargas e estabeleceu um sistema democrático. Vigilantes, mas aparentemente inconseqüentes, os fiadores “da ordem e do progresso” se opuseram em 1945 e 1961 às autoridades legitimamente eleitas, mas em 1955 voaram em socorro da Constituição. Enfim, em 1964 os militares abandonaram seu papel “moderador” tradicional para assumir a direção do sistema político.

No caso do Brasil, haveria provavelmente algum etnocentrismo em fazer chamar a atenção para a única derrubada de autoridades constitucionais, uma vez que o período representativo pluralista, de 1945 a 1964, afigura-se a muitos historiadores como atípico e excepcional, uma espécie de experiment in democracy [experimento em democracia], para recorrer ao subtítulo da obra clássica de Skidmore. [3] Por outro lado, a busca do conteúdo de espírito de classe das intervenções pareceu-nos pouco fecunda. A interpretação do movimento dos tenentes da década de 20, enquanto representantes da classe média, de que provinha a maioria dos oficiais, quase só contribuiu para desviar o problema sem esclarecê-lo. As concepções instrumentalistas do poder militar, que procuram os motivos da ação dos exércitos na identificação dos interesses sociais imediatamente favorecidos pela intervenção deles, parecem-nos igualmente deixar escapar a dinâmica específica da instituição, assim como a realidade do fenômeno do poder militar, que procuram os motivos da ação dos exércitos na identificação dos interesses sociais imediatamente favorecidos pela intervenção deles, parecem-nos igualmente deixar escapar a dinâmica específica da instituição, assim como a realidade do fenômeno do poder. [4]

[3] Thomas Skidmore, Politics in Brazil (1930-1964). An Experiment in Democracy, Nova York, Oxford University Press, 1967.
[4] Cf. Alain Rouquié, Pouvoir Militaire et Société Politique en République Argentine, Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 1978, Introdução, passim, e, especialmente para o Brasil, Luciano Martins, “Notes sur le rôle et le comportement des militaires au Brésil”, in Anouar Abdel Malek, L’Armée et la Nation, Alger, 1975, pp. 242-243.

“Partidos Militares”

A expressão “partido militar”, que adotamos e pode parecer inutilmente provocadora, não implica de modo algum o desejo de obliterar a especificidade das instituições armadas, tornando conhecido e confundindo o funcionamento político do braço militar do Estado com o modelo partidário. Essa metáfora não tem outro objetivo, em um primeiro momento, senão o de assinalar firmemente a perspectiva escolhida: as Forças Armadas podem ser forças políticas que desempenham, por outros meios, as mesmas funções elementares que os partidos, e sobretudo outra lógica - processos de deliberação, de tomadas de decisão, e até mesmo de união e articulação sociais.
Essa idéia de partido militar possui igualmente a vantagem de pôr em discussão o lugar-comum (propiciado pelos próprios militares) das Forças Armadas como um ator unido, senão monolítico - noção inspirada pela esquematização simplista dos traços organizacionais que caracterizam as instituições militares (disciplina, hierarquia, verticalidade). De maneira bastante flexível, o conceito de partido militar enfatiza as situações em que exército e política se relacionam e as instâncias institucionais de inserção da política no aparelho militar (e vice-versa). Concretamente: os partidos militares podem ser verdadeiros partidos fundados por militares para agirem na sociedade civil ou a cristalização de tendências que lutam pelo poder no âmbito da instituição militar e em estruturas políticas próprias do exército, e inclusive na organização militar como um todo, quando certos chefes se esforçam por transformá-la em organização política unificada.

A maioria desses aspectos do partido militar encontra-se mais ou menos desenvolvida na história brasileira recente. O partido de militares permaneceu apenas esboçado e não surgiu senão quando da Revolução de 1930. O caráter bastante “militar” ou “estatizado” das instituições militares brasileiras (termo que opomos a “societal”, para designar a maior ou menor permeabilidade social da instituição [5]) e sua tradição antipolítica, isto é, antipartidária explicam esse quase alheamento. Entretanto, convém assinalar a criação do Clube 3 de Outubro (referenciando a data da sublevação vitoriosa que levou Vargas à presidência) pelos tenentes, jovens oficiais exaltados, e que se afigura bastante como um embrião de partido revolucionário sui generis. O general Góes Monteiro, chefe militar da sublevação e fundador do Clube disse mais tarde de maneira bem sugestiva: “O objetivo que tive com a fundação desse Club foi impedir que os tenentes levassem questões políticas para os quartéis, ficando estas adstritas ao Club, o que resguardaria a disciplina e daria oportunidade de uma reconciliação entre militares revolucionários e seus antagonistas.”[6] Foram igualmente os jovens e fogosos tenentes que, notadamente em São Paulo e em Minas Gerais, tentaram erguer uma Legião revolucionária (ou Partido nacional revolucionário), segundo o modelo do fascismo italiano, destinada a arregimentar as massas para um movimento de renovação nacional contra as aparências enganosas de um liberalismo dominado pela influência das oligarquias locais e do coronelismo. [7] Os políticos regionais e a burguesia assustada logo se mobilizaram para pôr um fim a essas veleidades paramilitares que, por sinal, tiveram uma existência muito curta.

[5] Cf. a discussão teórica dessas diferenças em Alain Rouquié et al., La Politique de Mars, Introduction à l’Étude des Partis Militaires, Paris, Le Sycomore, 1980, Cap. I: Definições e dinâmicas.
[6] Lourival Coutinho, O General Góes Depõe..., Rio de Janeiro, Livraria Editora Coelho Branco, 1955, p. 157.
[7] A legião revolucionária foi estudada por Peter Flynn, “The Revolutionary Legion and the Brazilian Revolution of 1930”, in R. Carr, editor, Latin American Affairs, Londres, St Antony’s Papers nº 22, pp. 63-105.

As instituições representativo-corporativas das Forças Armadas tornaram-se o local de confronto de tendências, a partir do momento em que suas diretorias começaram a ser eleitas e não designadas pela hierarquia. Em um sistema civil com forte componente militar, como o Brasil de 1930 a 1964, as eleições do Clube Militar eram, como o mostra A. C. Peixoto, quase tão importantes para a sobrevivência dos governos quanto as eleições nacionais. A partir de 1945, a imprensa fez abertamente campanha por uma ou tendência, [8] que se organizavam como verdadeiros partidos. Menos transparente, já que menos público e sobretudo menos vinculado a organizações civis, aparece sob o regime propriamente militar após 1964 (como testemunha o estudo de Eliezer Rizzo de Oliveira) o Alto Comando, onde se enfrentam os clãs segundo uma lógica e meios codificados. Analogamente, vê-se o Superior Tribunal Militar tornar-se instância e tribuna das tendências político-militares opostas sob o governo do general Geisel. Mas tocamos aí em uma das características do sistema de predomínio militar, no qual as “Forças Armadas se politizam enquanto a política se militariza”, [9] lembrando ainda que nenhuma instância militar - sobretudo as que têm contato com a sociedade civil - escapa evidentemente a esse fenômeno.

[8] Ver, notadamente para a direita liberal, os editoriais de O Estado de São Paulo de março de 1952, e, para a esquerda nacionalista, O Seminário (Rio de Janeira), em janeiro-março de 1958 e, em particular, a reportagem "História Secreta da Cruzada Democrática".
[9] Segundo a fórmula de Dankwart Rustow, A World of Nations, Problems of Political Modernization, Washington, the Brooking Institution, 1967, p. 193.

A expressão de uma tendência militar de natureza política pode assumir diversas formas. O ativismo, por exemplo, que ainda não é suficiente para caracterizar um partido militar. As rebeldias esporádicas de jovens tenentes, desde a célebre tomada do forte de Copacabana em 1922 até a revolta de 1930, traduzem uma inquietação que não deu ensejo aos procedimentos organizacionais internos. Daí a dificuldade das interpretações que, por uma audaciosa inferência, deduzem que esses movimentos pouco explícitos eram representativos das aspirações das classes médias [10] ou se esforçam por atribuir uma unidade “geracional durável” a um grupo de personalidades militares de destinos tão brilhantes quanto díspares e amiúde antagônicos. [11] Em contrapartida a publicação de uma revista que defendia uma orientação precisa e coerente no seio do Exército, como A Defesa Nacional, aqui estudada por Manuel Domingos Neto, acabou por dar consistência política e partidária a preocupações de início estritamente profissionais.

[10] Tese formulada por Virginio Santa Rosa pela primeira vez em 1963. Cf. Santa Rosa, Que Foi o Tenentismo?, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, 2ª ed., e retomada notadamente por Nélson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, da mesma forma que por numerosos especialistas do Brasil. Ver Robert M. Levine, The Vargas Regime: The Critical Years: 1934-1938, Nova York, Columbia University Press, 1970, pp. 3-13. Estudos locais e exatos do tenentismo parecem mesmo denunciar como falsa uma assimilação dessas. Cf. José Ibarê Costa Dantas, O Tenentismo em Sergipe, Petrópolis, Vezes, 1974.
[11] É a tese de Ilham Rachum, “From young rebels to brokers of national politics: the tenentes of Brazil (1922-1967)”, Boletín de Estudios Latino-Americanos y del Caribe (Amsterdam), diciembre 1977, pp. 45-57.

O quadro de oficiais em seu conjunto, para não dizer as instituições militares como tais, pôde funcionar como uma espécie de organização política superior, assim que assumiu a hegemonia sobre a sociedade civil, desfrutando desde então de um nível de consenso interno relativamente satisfatório. Com efeito, depois de 1964 cada “eleição” presidencial foi precedida de ampla consulta aos oficiais superiores e de uma votação dos oficiais-generais para designar o candidato militar à presidência. A ruptura, pelo general Geisel, desse procedimento já experimentado foi uma das causas da crise político-militar que Rizzo de Oliveira analisa. O Exército (na acepção de forças armadas) não estava disposto a renunciar à sua condição de partido, ou seja, ao seu direito de controle e veto sobre o Executivo dele emanado e ao qual propiciava sua legitimidade. Geisel não julgara necessário responder à indagação de seus pares: “Quem te fez rei?”
Um das idéias diretrizes dos estudos contidos neste livro é a existência de uma permanente tensão entre o partido militar e os partidos militares, ou, por outras palavras, do conflito recorrente entre as tendências políticas organizadas no seio do Exército e a própria instituição. À vontade de preservar a unidade do Exército como indispensável “poder moderador”, capaz de assegurar a “harmonia entre a autoridade de fato e a de direito”, [12] contrapõem-se as divergências oriundas da sociedade civil, não somente devido à cooptação “legítima” dos militares por todos os atores, [13] mas também como conseqüência da ausência de consenso nacional acerca dos problemas mais importantes do desenvolvimento e do Estado.

[12] Segundo a interpretação do “Poder Moderador” do Imperador, por Charles Morazé, Les Trois Âges du Brésil, ensaio de política, Paris, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1954, p. 81.
[13] Ver, a este respeito, alfred Stepan, The Military in Politics. Changing Patterns in Brazil, Princeton, Princeton University Press, 1971, pp. 62-64.

Ninguém melhor do que o “condestável” Góes Monteiro, oficial antitenentista na década de 20, chefe dos rebeldes em 1930 e fundador do Estado Novo, para expressar a concepção institucional da ação política do Exército. Para ele, “o Exército é um órgão intrinsecamente político nacional, de que dependem até certo ponto a doutrina e o potencial militares... [Assim] só o Exército e a Marinha são instituições nacionais. São as únicas forças que possuem esse caráter [no Brasil], e é exclusivamente sob sua égide... que as outras forças nacionais poderão se organizar. Daí, a palavra de ordem permanente dos defensores do papel político e manifesto do Exército: ‘É mister fazer a política do Exército e não a política no Exército.’”[14]

Imagem
General Góes Monteiro.

[14] Góes Monteiro, A Revolução de 30 e a Finalidade Política do Exército (esboço histórico), Rio de Janeiro, Aderson (s/d, 1934), pp. 133, 156, 163.

O profissionalismo dos “jovens turcos” e de seus sucessores não é um legalismo de “grande mudo”, mas a vontade de definir uma função política dos aparelhos militares, sem se deixar arrastar para o turbilhão da política civil no qual sucumbiram as rebeliões românticas do tenentismo. Como nota com justeza José Murilo de Carvalho: ao soldado-cidadão do velho Exército e do tenentismo sucede uma concepção corporativa da “intervenção moderadora”. [15] O editorial do primeiro número de A Defesa Nacional, em 1913, designa claramente o conteúdo das responsabilidades da “classe militar”: “O Exército precisa preparar-se para sua função conservadora e estabilizadora dos elementos sociais em andamento. Ele deve estar pronto para corrigir perturbações internas, tão freqüentes na vida tumultuada das sociedades em formação.” [16] Como se vê, a doutrina de segurança nacional, que destaca a função de defesa interna do Exército, não data de ontem no Brasil e nada fica a dever aos teóricos do Pentágono.

[15] José Murilo de Carvalho, “As Forças Armadas na Primeira República. O Poder Desestabilizador”, Cadernos do Departamento de Ciência Política, Belo Horizonte, nº 1, março de 1974, p. 159.
[16] A Defesa Nacional, 1 (1), 1913, citada em José Murilo de Carvalho, artigo citado, p. 159.

Cisões e características específicas militares

Se o Exército brasileiro mantém elevado nível de coesão institucional, nem por isso é menos disputado nas lutas civis e, como tal, penetrado e politicamente fracionado pelos interesses em jogo. Segundo a lógica de uma pretorian polity, [17] todos os grupos esforçam-se por obter o apoio dos militares para aumentar o próprio poder. Embora esta observação genérica tenda a limitar a soberania e autonomia dos militares, isso não significa que o Exército seja um instrumento passivo, reagindo mecanicamente a impulsos exteriores. É verdade que os partidos batem às portas dos quartéis e que o favor obtido pelo adversário não arrefece o ardor “militarista” dos perdedores. [18] Sabe-se que antes de 1964 o primeiro cuidado de um presidente eleito era montar seu “dispositivo militar”, sem o qual seus dias estariam contados. Além disso os partidos estendiam sua ação no Exército de maneira quase institucionalizada. Assim, a UDN (União Democrática Nacional) identificava-se com a linha militar representada pela Cruzada Democrática, às vezes apelidada “UDN militar”. Aliás, esse partido desempenhou papel de primeira plana no golpe de Estado de 1964 e povoou os ministérios civis do primeiro presidente “revolucionário”, o general Castello Branco.

[17] Samuel Huntington, Political Order in Changing Societies, New Haven, Yale University Press, 1968, p. 80.
[18] Como o testemunham, em duas épocas diferentes, o infeliz adversário de Vargas em 1937 e, trinta anos mais tarde, o historiador militar e marxista Werneck Sodré. Salles Oliveira, candidato liberal à presidência, no exílio, apelou para os militares no início do Estado Novo, no sentido de que fosse restabelecida a democracia e, longe de atacar o Exército que acabava de instaurar a ditadura, declarou: “Fora do Exército, não há solução para a crise brasileira” (citado por T. Skidmore, op. cit., p. 58). Werneck Sodré, por sua parte, expõe em sua História Militar do Brasil, op. cit., sua tocante e cega fé na fibra democrática e popular do Exército e refuta os que denunciam a cumplicidade dos militares com os interesses da “reação social” ou do capital estrangeiro.

É importante assinalar igualmente, na mesma ordem de idéias, a criação na década de 60 de organismos de propaganda contra o regime presidido por Goulart, financiados por empresas privadas nacionais ou estrangeiras e cujo terreno de ação privilegiado era constituído pelo meio militar. O IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) [19] mostram, por sua atividade tão rapidamente coroada de sucesso, a importância do que se achava em jogo.

[19] Ver especialmente Moniz Bandeira, O Governo João Goulart, as Lutas Sociais no Brasil, 1961-1964, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, pp. 66-67.

Imagem
Marechal Teixeira Lott.

É evidente que em troca os líderes das Forças Armadas constituem para si clientelas ou alianças civis e que é contínua a passagem da ordem militar para o campo político. Quando das eleições presidenciais de 1945, dois generais ostentavam as cores dos dois campos: a UDN com o brigadeiro Eduardo Gomes, e os getulistas com o general Dutra pelo Partido Social Democrático. Gomes foi novamente candidato em 1950, tendo sido derrotado por Vargas; em 1955 ele veio a ser substituído como candidato da UDN pelo ex-tenente Juarez Távora. Em 1960, o general Teixeira Lott foi o candidato das forças anti-UDN. Na direção de partidos e no congresso, os militares ou ex-militares eram igualmente numerosos. Deixemos de lado o Cavaleiro da Esperança, o ex-tenente Luiz Carlos Prestes, que se tornou civil muito cedo e depois secretário-geral do Partido Comunista, e lembremos que o general Góes Monteiro, “profissionalista” tão intimamente ligado à vida política nacional da era getulista, foi um dos fundadores do PSD, um dos dois partidos herdeiros do Estado Novo, sob cuja legenda aliás veio a tornar-se senador.

Mas se o Exército brasileiro está bem longe de ser uma ilha e se as tendências políticas em seu seio freqüentemente representam alianças civis-militares, nem sempre foi assim. Alguns dos mais destacados chefes militares são difíceis de classificar, segundo uma correspondência civil. O general Lott, antes de tornar-se líder dos setores nacionalistas, não pertencia a qualquer clã; [20] e onde situar o general Albuquerque Lima, tão popular nas casernas por volta de 1968 e porta-voz dos “ultras” autoritários e nacionalistas? [21]

[20] Segundo Maria Victoria de Mesquita Benavides, O Governo Kubitschek. Desenvolvimento Econômico e Estabilidade Política, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, cap. IV e Milton Senna, Como Não se Faz um Presidente, Rio de Janeiro, Gernasa, 1968, p. 27.
[21] Ver Peter Flynn, Brazil: A Political Analysis, Londres, Benn West-view, 1978, pp. 425-429.

Não só as Forças Armadas possuíam seus próprios “rachas” internos - que podiam coincidir com correntes da opinião civil -, como também os processos, segundo os quais se formavam as tendências e se tomavam as decisões extramilitares, eram de natureza, em grande parte institucional. A formação de um consenso sobre questões políticas geralmente tinha origem corporativa e se apresentava conforme o código normativo da instituição. Em 1889, o Exército derrubou o Império e provocou a mudança de regime desejada pelos propagandistas republicanos. Mas o detonador do golpe foi a “questão militar” e a vontade do Estado-Maior em defender a honra do Exército contra um ministro da Guerra inepto e figuras notáveis suspeitas. A primeira revolta dos tenentes, em 1922, foi um assunto familiar que teve a ver com o prestigiado clã militar dos Fonseca e pôs novamente em jogo a honra militar. [22] A participação do Exército na Revolução de 1930 e a instauração do Estado Novo tiveram por finalidade precípua reforçar o Estado central e dar ao Exército o monopólio efetivo da violência legal contra as “forças públicas” estaduais controladas pelas oligarquias locais. Em 1964, o infeliz apoio de Goulart à revolta dos sargentos, em violação à hierarquia disciplinar, contribuiu para fazer com que os oficiais legalistas passassem irreversivelmente para o campo dos facciosos. [23]

[22] Cf. José Murilo de Carvalho, artigo citado, pp. 170-171.
[23] Como testemunha a veemência (costumeira) do general Mourão Filho a este propósito, em suas Memórias... A Verdade de um Revolucionário, Porto Alegre, LPM Editores, 1978, pp. 252-257.

O Exército brasileiro não é somente o que está em jogo e o campo de luta dos conflitos civis; ele é também um espelho das tensões da sociedade, mas um espelho deformador. O que nos interessa aqui é exatamente a maneira com que são refratados, pelo prisma institucional militar, os problemas nacionais. As linhas de cisão interna procedem de mecanismos complexos que de modo algum podem se reduzir ao simples jogo de cooptação ou de aliança com setores econômicos ou políticos civis. Os militares naturalmente se dividem em função dos grandes problemas nacionais, mas segundo procedimentos próprios e com conseqüências singulares ligadas às diversas pressões a que são submetidos e aos múltiplos papéis que desempenham. Tanto os valores quanto os interesses próprios da corporação acarretam uma reformulação em termos militares de questões centrais da vida nacional que não fica devendo muito à coerência intelectual das ideologias civis. Como o mostra A. C. Peixoto, os debates entre nacionalistas e liberais, partidários do setor público e defensores da empresa privada, respectivamente, dividiam civis e militares, particularmente em torno da questão do petróleo, mas o braço militar do Estado não podia ter a mesma relação face ao Estado que os dirigentes de empresas ou os políticos civis. Não é de espantar, pois, a constatação de que os militares no poder, após haverem abraçado desde 1964 o credo liberal, contribuíssem singularmente para o fortalecimento das responsabilidades econômicas do Estado, a ponto de inquietar seus aliados civis. [24]

[24] Ver nosso artigo: "État et Pouvoir Militaire en Amérique Latine: le Modèle Brésilien”, Mélanges de la Casa de Velásquez, t. XIV, 1978, pp. 625-639.

A oposição entre legalistas e intervencionistas nos anos 50 e 60, fortemente polarizada em torno do “movimento militar constitucionalista” do general Lott ou “grupo do 11 de novembro” - data do golpe preventivo do ministro da Guerra Lott, a fim de permitir a ascensão ao poder do presidente eleito em 1955, Juscelino Kubitschek - e do “movimento do 24 de agosto” - data do desaparecimento de Vargas -, dividiu o quadro de oficiais segundo eixos à primeira vista partidários. Com efeito, a esquerda e os dois partidos populistas (trabalhistas e PSD) encontram-se por trás do “11 de novembro”, enquanto a UDN alinha-se com o “24 de agosto”.

Coincidência conjuntural que no entanto não abrange todo o espectro político-militar. Por trás do general Lott colocaram-se militares que queriam para o Exército um papel apolítico, a fim de salvaguardar a instituição e de superar as cisões provocadas pelo intervencionismo. E aos partidários do “24 de agosto” juntaram-se os oficiais antipolíticos, hostis aos partidos e ao sistema representativo, isto é, a tudo o que a UDN defendia.

Como ressalta A. C. Peixoto, os oficiais brasileiros estão condicionados politicamente pelas pressões civis, as divisões propriamente organizacionais (Armas e Serviços, postos e graduações, serviço, experiência, idade...) e seus papéis institucionais. No período pós-64, analisado por Rizzo de Oliveira, a expansão desses papéis acarretou novas tensões de natureza endógena, mas que por força dos acontecimentos tiveram repercussão na sociedade civil. Enquanto o Exército permanece como uma organização de defesa interna e externa do país, devendo assumir nas melhores condições esse papel que condiciona e legitima todos os demais, os militares possuíam responsabilidades na gestão de setores econômicos importantes, assumiam o poder executivo em sua seqüência e comportavam-se como um partido de onde emanava a autoridade do governo. Papéis naturalmente conflitantes e difíceis de harmonizar. Estamos evidentemente longe das explicações singulares e das tranqüilizadoras interpretações reducionistas.

Momentos e mecanismos

Este livro não é uma análise das intervenções militares nem uma história política do Exército no Brasil. Seu objetivo é duplo e modesto. Trata-se da tentativa de aplicação de uma abordagem que revela sua fecundidade. Não estuda, pois, nem as causas nem as conseqüências do poder militar, mas o seu funcionamento e os seus mecanismos através de momentos privilegiados. Os três estudos que se vão ler, em seguida a uma apresentação crítica dos principais modelos de interpretação, não visam à explicação exaustiva do fenômeno dos partidos militares; constituem antes sondagens a momentos-chave de máxima transparência dos processos políticos internos: profissionalização e influências européias, confrontos durante a “experiência democrática”, através do barômetro político em que se constituiu o Clube Militar, crise, enfim, do partido militar no poder.

O estudo de Manuel Domingos Neto, sobre “as influências estrangeiras e a formação dos grupos e tendências no seio do Exército brasileiro” antes de 1930, mostra como uma pesquisa centrada na instituição militar permite, antes de tudo, restabelecer as perspectivas no Exército, na época de sua modernização, faz aparecer configurações há muito negligenciadas e confirma a necessidade, já sentida por outros autores, de repor o tenentismo em seu verdadeiro lugar, [25] separando o mito da história. Com efeito, atribuíram-se às revoltas “heróicas” dos jovens oficiais descontentes uma amplitude e uma homogeneidade que nada pode provar. [26] Enfunado por Vargas, em 1930, para atender às necessidades de sua causa, [27] deformado pela lenda dourada tecida pelo Partido Comunista em torno da longa marcha de Prestes, embelezado pela nostalgia de líderes político-militares tão diferentes entre si quanto Juarez Távora, Eduardo Gomes, Juracy Magalhães, Canrobert Pereira da Costa, Estillac Leal..., o tenentismo não aparece, para quem pesquisa as grandes articulações políticas da organização militar, como uma arrebentação, e sim como uma série de pequenas ondas e temporais sucessivos, porém breves. A sacralização do tenentismo provém, certamente, conforme observou Luciano Martins, da função de catar-se que a expressão do descontentamento armado de alguns jovens oficiais desempenhou na década de 20: projetaram-se neles todas as aspirações vagas de mudança. [28]

[25] Como José Murilo de Carvalho, art. cit. e P. Flynn, op. cit., p. 44.
[26] Ver I. Rachum, art. cit. Para uma recente desmitificação do tenentismo, ver a entrevista de Oswaldo Cordeiro de Farias em O Estado de São Paulo, 3 de julho de 1979, “O tenentismo é mais fantasia do que realidade”.
[27] T. Skidmore, op. cit., pp. 19-20.
[28] Luciano Martins, Pouvoir et Dévelopment Économique: Formation et Évolution des Structures Politiques au Brésil, Paris, Anthropos, 1976, p. 94.

O estudo da irresistível ascensão de uma tendência reformista e modernizadora no seio do Exército brasileiro, a dos “jovens turcos” agrupados em torno da revista A Defesa Nacional, explicita, melhor do que as trajetórias de políticos fardados, a passagem de um profissionalismo intransigente para a intervenção política do Exército. A hostilidade dos “jovens turcos” à participação política dos militares e a vontade destes em incrementar a coesão e o enraizamento nacional do Exército acabam por dar a este, com efeito, os recursos indispensáveis para dominar o sistema político. Contra os partidos militares, os “profissionalistas” de A Defesa Nacional construíram o partido militar que interveio pela primeira vez em 1930, data do encontro dos elementos tenentistas com os “jovens turcos” sob a direção do antitenentista Góes Monteiro, antigo diretor de A Defesa Nacional.

O estudo levado a efeito pelo historiador Manuel Domingos sobre as influências militares estrangeiras e a Missão Militar Francesa do general Gamelin não teve como único interesse sublinhar o caráter dependente das instituições militares das sociedades ditas periféricas. A corrente mais favorável à modernização do Exército brasileiro segundo o modelo europeu, a mais extrovertida, portanto, era também politicamente a mais centralizadora. Os “missionistas” formados na Alemanha ou desejosos de ingressar na escola do Exército francês eram os “jovens turcos” estatizantes e resolutamente antiliberais. Enfim, a quase “subversão da hierarquia”, acarretada pelo impacto dos estágios e da “Missão”, mostra como interesses profissionais e cisões políticas se superpunham. A formação do Exército brasileiro moderno resultou com efeito na criação de um “partido militar” que não admitia rivais.

A vida política interna do Clube Militar durante o parêntese democrático, que se estende do fim da ditadura do Estado Novo até a instalação do regime burocrático-militar em 1964, reveste-se de um interesse todo especial na perspectiva que inspira esta obra. Desde sua criação em 1887 o Clube Militar tem sido um local de debates e de confronto entre tendências militares opostas. Paradoxalmente ele conheceu uma vida política “normal” quando o Estado Novo impôs o silêncio à sociedade civil. No período estudado por A.C. Peixoto, suas eleições permitiram não só tomar o pulso à sociedade militar, mas também apreender o que se achava em jogo em suas lutas internas e sobretudo analisar in vivo o funcionamento dos “partidos militares”. A importância das eleições no Clube Militar para o poder civil, o caráter público de suas campanhas permitem compreender por que as questões debatidas são os grandes problemas da vida nacional, considerados sob a ótica dos militares.

Mas a contribuição mais decisiva desse capítulo é sem dúvida a análise das relações entre o Exército-instituição e as tendências político-militares organizadas. Através do confronto entre a opinião dominante no quadro de oficiais, tal como ressaltam claramente das eleições periódicas dos partidos militares. Diversamente do que ocorre nos partidos políticos, ali a decisão majoritária não é garantia de triunfo. Em 1955, pelo menos (e até certo ponto em 1961), a hierarquia parece ter-se imposto à opinião interna dominante: a diretoria da instituição, em um momento de grande polarização e, por isso mesmo de equilíbrio instável, opôs-se com sucesso ao partido militar mais numeroso, embora não inteiramente homogêneo. Mas isso não nos deve levar a acreditar em uma perfeita verticalidade nas decisões, nem na onipotência das cadeias de comando em matéria política. Como o provam as intervenções do Exército em 1945, 1954 e 1964, qualquer que tivesse sido a lealdade do “dispositivo militar” armado pelo Executivo, o alto Comando reagiu de acordo com a opinião majoritária; houve freqüentemente coincidência entre a tendência dominante e a orientação dos chefes institucionais. Compreende-se assim a importância do campo militar para a propaganda dos partidos e dos setores de opinião da sociedade civil. A cooptação dos militares não é feita, como às vezes se acredita, pela exclusiva “captura” política dos chefes do Exército: dá-se também graças à impregnação ideológica de seus cidadãos ativos, os comandantes de tropa. Não que os generais se contentassem em seguir os capitães, e sim porque uma das regras menos discutíveis dos partidos militares é a de que não se comanda a indisciplina.

De certo modo, são mecanismos inversos e complementares os que Eliezer Rizzo de Oliveira analisa através do processo de decisão sob o governo Geisel. Trata-se da utilização de procedimentos militares com fins políticos. A crise do predomínio militar sob essa presidência transpõe o quadro institucional, onde quase haviam conseguido encerrá-lo. Os confrontos dos partidos militares a partir de 1964 permaneciam confinados de fato em situações não-políticas. Ou, por outras palavras, mantinham-se à parte da vida pública nacional. Com a multiplicação das cédulas e dos redutos oposicionistas no seio do Exército, a ausência de consenso interno transborda do quadro militar para desembocar na candidatura oposicionista do general Euler Bentes, ou seja, numa aliança entre tendências militares constestatórias e o partido de oposição tolerado, o MDB. Diante da inquietação do Exército, o Executivo esforçou-se, com mais vigor do que anteriormente, para “desmilitarizar” o poder, recorrendo para isso a todos os meios próprios ao funcionamento da organização.

Geisel não foi o primeiro presidente militar na América Latina que resolveu não mais prestar contas ao Exército, de quem entretanto continuou a exigir obediência [29], mas a situação, nova no Brasil, acarretou os mesmos resultados que em outros lugares, ou seja, o agravamento dos “rachas” internos e a multiplicação das contracorrentes hierárquicas sob o olhar da opinião civil. A pedra de toque dessa “desinstitucionalização” do regime militar foi obviamente o problema da sucessão presidencial. Em vez de reunir o “senadinho” dos generais, o “grupo do Planalto” impôs um delfim sem o aval dos grandes eleitores fardados. Pode-se constatar, através do estudo de Rizzo de Oliveira, todo o interesse para o poder pelas pequenas reformas técnicas referentes ao regulamento de promoções e ao quadro de acesso. A composição do Alto Comando e a do Superior Tribunal Militar eram favores nevrálgicos para os desígnios do “grupo do Palácio”, como se via denominado em Brasília o círculo do general Geisel. Uma importante distinção apresentada pelo autor esclarece essas manobras tão discretas quanto eficazes: a que separa os responsáveis institucionais e os líderes militares (chefia versus liderança). [30] O governo Geisel parece ter conseguido impor uma hegemonia burocrática sobre as Forças Armadas e, sobretudo, impedir - por uma certa aceleração da mobilidade na carreira - o surgimento de líderes político-militares dotados de alguma espécie de legitimidade própria, independentemente de seus cargos. A época de Góes Monteiro, Dutra, Lott ou Albuquerque Lima parece encerrada. Teriam os partidos militares doravante mais dificuldade para se formarem? O futuro o dirá. Se a instituição pôde assim ganhar em homogeneidade, certamente perde em peso político, e o regime com ela. O Exército, não obstante, permaneceu no poder, e é muito provável que os partidos militares venham a sobreviver ou a reconstituir-se. As reformas desmobilizadoras de Geisel tocaram mais nas conseqüências do que nas causas das divisões internas, que, antes de tudo, estão vinculadas a uma ascendência militar ainda intangível.

[29] É o processo que evoca, em seu livro de memórias, o antigo Comandante do Exército argentino, Lanusse, para explicar por que e como ele derrubou, em 1970, o general Onganía e depois o general Livingston, presidentes sucessivos do regime militar instaurado em 1966: Alejandro A. Lanusse, Mi Testimonio, Buenos aires, Lasserre, 1977.
[30] Distinção que estabelece, aliás, Rizzo de Oliveira em seu livro As Forças Armadas: Política e Ideologia no Brasil (1964-1969), Petrópolis, Vozes, 1976, pp. 10-101.

- Alain Rouquié, Os Processos Políticos nos Partidos Militares do Brasil: Estratégia de pesquisa e dinâmica institucional, Os Partidos Militares no Brasil, pg. 9-26, 1980.

Título original Les Partis Militaires au Brésil, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, Paris.

Imagem




Avatar do usuário
FilipeREP
Avançado
Avançado
Mensagens: 438
Registrado em: Qua Nov 13, 2019 2:50 pm
Agradeceram: 52 vezes

Re: Documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros"

#15 Mensagem por FilipeREP » Sáb Dez 07, 2019 9:12 pm

Por Alexandre Oltramari, Revista Veja, setembro de 2013.

O ex-tenente gostava "muito" de dar choque nos dedos e aprendeu a torturar "vendo".

Imagem
O ex-tenente Marcelo Paixão de Araújo: herdeiro de uma das grandes fortunas mineiras Foto: Moreira Mariz.

Marcelo Paixão de Araújo debruçou-se sobre uma mesa de vidro, na sala de seu amplo apartamento, em Belo Horizonte, pediu à empregada para trazer biscoitos, água mineral e café — e prestou a VEJA um histórico depoimento de quase duas horas. Com ele, tornou-se o primeiro agente da repressão a admitir em público que torturava presos políticos durante a ditadura militar. Hoje, passados trinta anos, sua vida é tranquila. Herdeiro dos fundadores do sólido Banco Mercantil, Marcelo Paixão de Araújo formou-se em direito e trabalha como corretor de seguros, em Betim, a 30 quilômetros de Belo Horizonte, para onde vai dirigindo seu Toyota do ano. Casado, duas filhas, acaba de mudar-se para um apartamento de 300 metros quadrados, na região da Savassi, um dos bairros mais chiques da capital mineira. Apesar dos 15 quilos acima do peso ideal, ele maneja seu barco no lago de Furnas, onde tem uma casa para os fins de semana. De manhã, lá por uma hora, antes de sair para o trabalho. Em casa, tem uma biblioteca de 2.500 volumes, onde se podem encontrar desde clássicos da literatura brasileira até manuais de tortura. Ele gosta de livros de política e de História e, nos últimos tempos, tem-se dedicado à leitura de biografias. Leu A Lanterna na Popa, do ex-ministro Roberto Campos, e Chatô, o Rei do Brasil, do jornalista Fernando Morais.

"A tortura causa um desgaste muito grande. Nunca me neguei a torturar alguém, mas só fazia quando havia necessidade. Mas a brincadeirinha não tem a menor graça, viu?" (risos)

Em 1968, Marcelo Paixão de Araújo servia como tenente no 12º Regimento de Infantaria do Exército em Belo Horizonte, um dos três centros mais conhecidos de tortura da capital mineira durante a ditadura militar. Ali, permaneceu até 1971. "Fiquei porque achava que a única forma de consertar o país era por meio das Forças Armadas", diz. Ao deixar a caserna, foi trabalhar na empresa do pai, a Minas Brasil, braço de seguros do Banco Mercantil, onde ocupava o cargo de superintendente técnico. Raríssimas vezes usava terno e gravata. Preferia trabalhar de calça jeans. "Ele era diferente do pai e dos irmãos. Era um moleque, uma pessoa muito alegre, que vivia contando piada", diz uma ex-funcionária da empresa. "Descobri que eu não havia nascido para ser executivo", conta Marcelo. Ali, trabalhou seis anos, mas teve tantos problemas que saiu da empresa para o divã do analista. Fez sete anos de análise. Ele garante que não recorreu ao divã em função da passagem pelo porão e diz que vive em paz com seu passado. Na entrevista a VEJA, o ex-tenente alternou estados de humor, indo da descontração à rispidez em segundos. Aqui, ele conta como e por que torturou três dezenas de presos políticos, de 1968 a 1971:

Imagem
O engenheiro Leovi Carísio, hoje com 52 anos, foi uma das vítimas de tortura do ex-tenente. Era militante do grupo Colina/VAR-Palmares, ficou mais de três anos preso e passou pelo pau-de-arara, "esticamento" e tomou choque. Ele explica: "Marcelo me obrigava a deitar de costas numa mesa. Aí, ele amarrava meus punhos e tornozelos aos pés da mesa e puxava de um lado ao outro até envergar meu tronco. Era horrível".
Foto: Moreira Mariz.


Veja — Durante a ditadura, em depoimentos na Justiça Militar, 22 presos políticos acusam o senhor de tortura. É verdade?
Araújo — Quem lhe disse isso?

Veja — Vi nos processos na Justiça Militar. E, pela quantidade de presos que o citaram, o senhor é o agente da repressão que mais praticou torturas. É verdade?
Araújo —[/b] Sim. Todos os depoimentos de presos que me acusam de tortura são verdadeiros.

Veja — O senhor fez isso cumprindo ordens ou achava que deveria fazê-lo?
Araújo —
Eu poderia alegar questões de consciência e não participar. Fiz porque achava que era necessário. É evidente que eu cumpria ordens. Mas aceitei as ordens. Não quero passar a idéia de que era um bitolado. Recebi ordens, diretrizes, mas eu estava pronto para aceitá-las e cumpri-las. Não pense que eu fui forçado ou envolvido. Nada disso. Se deixássemos VPR, Polop (organizações terroristas) ou o que fosse tomar o poder ou entregá-lo a alguém, quem se aproveitaria disso seriam os comunistas. Não queríamos que o Brasil virasse o Chile de Salvador Allende. Nessa época, eu tinha 21 anos, mas não era nenhum menino ingênuo (risos). O pau comia mesmo. Quem falar que não havia tortura é um idiota.

Imagem
Ex-militante do PCB, três anos de cadeia, o hoje professor de História Ápio Costa Rosa, 57 anos, carrega marcas físicas da tortura. "Marcelo apagava cigarro no meu corpo, mas a pior coisa que ele fez foi me deitar no chão, colocar um cabo de vassoura no meu pescoço e subir em cima. Aí, quando eu ia respirar, ele derramava óleo no meu rosto. Estou pagando por isso tudo até hoje", diz.

Veja — Como o senhor aprendeu a torturar?
Araújo — Vendo.

Veja — O que o senhor fazia?
Araújo — A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala, tirar a roupa dele e começar a gritar para ele entregar o ponto (lugar marcado para encontros), os militantes do grupo. Era o primeiro estágio. Se ele resistisse, tinha um segundo estágio, que era, vamos dizer assim, mais porrada. Um dava tapa na cara. Outro, soco na boca do estômago. Um terceiro, soco no rim. Tudo para ver se ele falava. Se não falava, tinha dois caminhos. Dependia muito de quem aplicava a tortura. Eu gostava muito de aplicar a palmatória. É muito doloroso, mas faz o sujeito falar. Eu era muito bom na palmatória.

Veja — Como funciona a palmatória?
Araújo —
Você manda o sujeito abrir a mão. O pior é que, de tão desmoralizado, ele abre. Aí se aplicam dez, quinze bolos na mão dele com força. A mão fica roxa. Ele fala. A etapa seguinte era o famoso telefone das Forças Armadas. Tinha gente que dizia que no telefone vinha inscrito US Army (indicando que era produto das Forças Armadas americanas). Balela. Era 100% brasileiro. O método foi muito usado nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas o nosso equipamento era brasileiro.

Veja — E o que é o telefone?
Araújo —
É uma corrente de baixa amperagem e alta voltagem.

Veja — De quanto?
Araújo —
Posso pegar o manual para informar com certeza. Mas não tem perigo de fazer mal. Eu gostava muito de ligar nas duas pontas dos dedos. Pode ligar numa mão e na orelha, mas sempre do mesmo lado do corpo. O sujeito fica arrasado. O que não se pode fazer é deixar a corrente passar pelo coração. Aí mata.

Veja — Qual era o estágio seguinte quando o preso não falava?
Araújo —
O último estágio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque. Isso era para o queixo-duro, o cara que não abria nas etapas anteriores. Mas pau-de-arara é um negócio meio complicado. No Rio e em São Paulo gostavam mais de usar o pau-de-arara do que em Minas Gerais. Mas a gente usava, sim. O pau-de-arara não é vantagem. Primeiro, porque deixa marca. Depois, porque é trabalhoso. Tem de montar a estrutura. Em terceiro, é necessário tomar conta do indivíduo porque ele pode passar mal. Também tinha o afogamento. Você mete o preso dentro da água e tira. Quando ele vai respirar, coloca dentro de novo, e vai por aí afora. É como um caldo, como se faz na piscina. Era eficiente. Mas eu não gostava. Achava que o risco era muito alto. Afogamento não era a minha praia (risos). A geladeira, uma câmara fria em que se coloca o preso, não funcionava em Belo Horizonte. Era muito caro. O que tinha era o trivial caseiro. O menu mineiro.

Imagem
Aos 53 anos, o engenheiro mecânico José Antônio Gonçalves Duarte, ex-militante do Partido Operário Comunista, POC, lembra com clareza seu suplício: "Esse pulha do Marcelo me torturou durante 98 dias. Era choque nos dedos, ouvidos e órgãos genitais, e afogamento. Há seis anos, eu o vi em São Paulo. Pensei: 'Como é fácil matar esse cara'. Minha mulher me puxou pelo braço e fomos embora". Fotos: Egberto Nogueira.

Veja — O que mais tinha no menu mineiro?
Araújo —
A dança da lata eu praticava muito.

Veja — Como era?
Araújo —
Eu pegava duas latinhas de ervilha e abria. Depois, colocava o cara de pé, em cima.

Veja — Sangrava?
Araújo —
Não. Ele falava antes disso (gargalhadas). Mas quem era mais leve agüentava mais tempo.

Veja — E quem não tinha o que dizer?
Araújo —
Ia para a lata igual. Mas é muito fácil identificar quem tinha e quem não tinha o que falar.

Veja — Como?
Araújo —
Militante é diferente. Jornalista é diferente de militar, que é diferente de empresário, que é diferente de militante. Ele se deixa trair por uma série de coisas. O linguajar, para começar, é diferente. Então, inocente só era torturado quando o agente era muito cru, sem conhecimento algum da práxis marxista, ou quando era um sádico. É muito fácil identificar uma pessoa que não é de esquerda. Vou dar um exemplo. Há algum tempo fui comprar dólares no Banespa, no câmbio turismo. Como até hoje tenho minha carteira militar, apresentei-a no lugar da identidade. O atendente viu a carteira, olhou para mim e perguntou:
— O senhor serviu no colégio militar?
— Tive uma época lá. Por quê? Você foi aluno lá?
— Não.
— Você foi soldado?
— Não.
— Escuta, eu te prendi?
— Não foi bem assim. Fui preso e o senhor foi o único que acreditou em mim. Apanhei com palmatória antes de o senhor chegar e me liberar.
— Sorte, hein? Já pensou se fosse o contrário? (risos).

Veja — O senhor já reencontrou alguma pessoa que torturou?
Araújo —
Sim. Eventualmente, eu encontro ex-presos meus, inclusive os que apanharam. E o relacionamento não é muito ruim, não. Não é aquele negócio de dar beijinhos e abraços. Mas é um relacionamento de respeito. Há pouco tempo, aqui em Belo Horizonte, encontrei o Lamartine Sacramento Filho, que é professor em uma faculdade local. Segurei ele no ombro e disse: 'Você não me conhece, não?' Ele levou um susto. Aí eu disse: 'Você tá bom?' Ele disse que sim e não quis mais conversa. Mas também não passa batido, não (risos). Não deixo passar batido (sério).

Veja — Por quê?
Araújo —
É o meu esquema. Não deixo passar batido. Não vai passar batido. Não passa batido. Vou lá, coloco a mão no ombro dele e digo: Não me esqueci de você, não. Você lembra de mim? Estamos aí. A vida continua.

Veja — Quantas pessoas o senhor já torturou?
Araújo —
Não tenho idéia. Não sou igual a matador que faz talho na coronha do revólver para cada um que mata. Mas você quer um número aproximado?

Veja — Sim.
Araújo —
Uns trinta.

Veja — O senhor matou alguém em sessões de tortura?
Araújo —
Não. Já atirei, mas não matei.

Veja — Mas morreu gente onde o senhor servia.
Araújo —
Pouca gente. O João Lucas Alves, que era um ex-sargento da FAB, foi um deles. Ele morreu na tortura.

Veja — O senhor participou?
Araújo —
Não. Isso foi alguns dias antes de eu ser convocado. Depois que eu saí, se morreu alguém eu não sei.

Veja — O que é besteira e o que é verdade no que já se escreveu sobre tortura no Brasil?
Araújo —
Há algumas pequenas inverdades. Mas a maioria dos fatos é correta. Há pouca besteira e muita verdade. As pessoas que participaram desse período até hoje não falaram abertamente. As altas autoridades do país foram as primeiras a tirar o seu da reta. Morri de rir ao ler o livro sobre o Geisel (refere-se ao livro que reúne as memórias do ex-presidente Ernesto Geisel, publicado no ano passado pela Fundação Getúlio Vargas). Segundo o depoimento de Geisel, ele não sabia de nada, mandava apurar tudo, era um inocente. É uma gracinha isso tudo. Todos os agentes do governo que escreveram sobre a época do regime militar foram muito comedidos. Farisaicos, até. Não sabiam de nada, eram santos, achavam a tortura um absurdo. Quem assinou o AI-5? Não fui eu. Ao suspender garantias constitucionais, permitiu-se tudo o que aconteceu nos porões. É claro que havia diversas pessoas envolvidas nisso. Mas eu não vou citar o nome de ninguém. Falo apenas de mim.

Imagem
José Adão Pinto, que pertencia à Corrente Revolucionária, um braço mineiro da ALN, hoje é dono de uma livraria em São Paulo, tem 51 anos, casado, sem filhos: ele ficou estéril devido às intermináveis sessões de choque nos órgãos genitais e sofre de hemorróidas, pois lhe introduziam um cabo de vassoura no ânus. "Todo mundo me torturava, e não apenas o Marcelo, pois eu era o único negro".

Veja — Por que o senhor deixou o Exército?
Araújo —
Estava numa encruzilhada. Ou eu ia para a academia ou tomava outro rumo na vida. Preferi terminar o meu curso de direito.

Veja — A tortura não é uma coisa desumana?
Araújo —
(Silêncio)

Veja — Quem tortura age como um monstro?
Araújo —
Monstro? (em tom indignado). Não. As pessoas que transitam em determinado meio tendem a se relacionar com seus pares. Então, militar andava com militar, policial andava com policial. Essas práticas eram normais entre nós. Quem eu achava que era monstro eram os sádicos. Eu mesmo afastei dois sargentos. Não queria sádicos trabalhando comigo.

Veja — O senhor tem medo de alguma vingança?
Araújo —
Não. Andei armado de 1973 até 1980. Tinha um Smith & Wesson, calibre 38, de cinco tiros. Hoje não uso mais arma. Minha preocupação era a violência. Achava que tinha obrigação de reagir à violência. Aí descobri que ia armar bandido. Se for para andar armado, vou atirar pelo menos duas vezes por semana, não vou andar no volante, enfim, há uma série de precauções que precisam ser tomadas.

Veja — O senhor não tem medo de que aconteça algo para suas filhas?
Araújo —
Uma das minhas meninas estuda direito na PUC. Há um ano, um débil mental falou para toda a sala que o pai dela tinha sido do Doi-Codi, que torturava gente, esse tipo de coisa.

Veja — Ela já sabia do seu passado?
Araújo —
Sim. Quando uma tinha 13 anos e a outra 14, contei tudo. Foi na época em que saiu o livro Brasil: Nunca Mais. O meu nome está lá, na segunda página, para todo mundo ver (risos). É engraçado. Todo mundo tem o livro, mas pouquíssima gente leu.

Veja — Foi difícil essa conversa?
Araújo —
Não foi muito difícil, não. Sou um bom pai. Minhas filhas foram bem criadas. Conhecem o pai que têm. Eu nunca escondi as coisas. Nunca disse a elas que fui um santinho. Disse a elas que não pensassem que eu não bati em alguém. Bati, sim. Elas ficaram um pouco chocadas e disseram: 'Pai, já sabemos, mas agora pára'. Não queriam detalhes. Eu segui a minha vida. Não adianta esconder esse tipo de coisa. A verdade uma hora vem à tona.

Veja — O senhor sofreu algum tipo de crise de consciência em função da tortura?
Araújo —
Isso sempre deixa dramas na gente. É uma coisa pesada. Não é bom tratar um semelhante dessa forma. Você não quer aproveitar e comer um biscoitinho? (Ele come um biscoito.) Depois de deixar o Exército, tive uma grande crise de depressão. Fiz análise durante sete anos. Mas não foi por isso. Tinha problemas existenciais que não podem ser relacionados com a minha atividade no porão. Tinha problemas na empresa. Queria fazer coisas e o pessoal não queria. Foi problema profissional. Tinha um salário muito bom e ele piorou demais. E dinheiro é uma desgraça. É bom quando não faz falta.

Veja — O senhor se arrepende de ter torturado?
Araújo —
Não me arrependo. Mas se você me perguntar se eu faria de novo, é outra conversa. É como você me perguntar se eu gostaria de voltar a ter 21 anos hoje. Com a experiência e o dinheiro que tenho atualmente, quero (risos). Mas não me arrependo de nada do que fiz.

Veja — O senhor faria tudo outra vez?
Araújo —
Se achasse que não havia outro caminho para livrar o país do comunismo, sim. Mas, em princípio, não. Porque a tortura ou, eufemisticamente, o interrogatório por meios violentos, que não precisa necessariamente ser a porrada, causa um desgaste muito grande. Nunca me neguei a torturar alguém, porém só fazia quando havia necessidade. Mas a brincadeirinha não tem a menor graça, viu (risos).

Veja — Por que o senhor fazia isso, então?
Araújo —
O índice de aproveitamento é de mais de 90%. A primeira vez que vi um interrogatório, como assistente, fiquei chocado. E olha que não tinha agressão. Foi só interrogatório policial duro.

Veja — O que o deixou chocado?
Araújo —
A forma como o interrogado desmontou sem apanhar. Não adianta fazer interrogatório sem saber quem é o sujeito, de onde veio e o que faz. Era bobagem pegar um sujeito que foi flagrado com um folheto que se imaginava ser da ala vermelha do PCBR ou do PC do B. Isso não levava a lugar algum. Sabe o que funcionava demais? Um tapa com força na mesa. O cara levava um susto. E falava. Quando vi esse interrogatório, fiquei com pena do sujeito. Eram cinco pessoas em volta dele, gritando, ameaçando, chamando-o de mentiroso. Achava que o cara era inocente. Perdi a pena quando ele abriu o bico. Aí eu disse: "Ah, seu sem-vergonha, quer dizer que isso funciona". Com o tempo, vi outros interrogatórios mais duros. Em seguida, passei a atuar como agente.

Veja — Por que o senhor participou disso tudo?
Araújo —
Eu achava que havia a necessidade de destruir as organizações de esquerda do país. Era uma convicção íntima. Nunca gostei do marxismo. Sempre fui visceralmente antimarxista. Isso é uma questão de formação. Meu pai sempre foi antimarxista. A coisa complicou quando descobri que o método (a tortura) era rápido. Bastava levar para o porão e pronto. Mas raríssimas vezes deixei de começar um interrogatório conversando com o indivíduo. Não vou dizer que no calor da prisão o cara não tenha ido direto para o porão. Já aconteceu, sim. Mas foram poucas vezes. Por que sabem o meu nome completo? Porque eu nunca escondi o meu nome. Tinha convicção quanto ao que estava fazendo. Eu não tinha codinome, como quase todo mundo. Portanto, não sou o maior torturador do país, mas sim um dos poucos que agiram de cara limpa.

Veja — Hoje, quase três décadas depois, o senhor não faz nenhuma ressalva ao passado?
Araújo —
É preciso admitir que os resultados foram pífios. Atacamos muito a subversão e pouco a corrupção. A única coisa que o Geisel falou em seu livro que eu lhe dou razão é que não se pode fazer um movimento apenas contra. Tem de ser a favor de algo. Faltava isso no movimento. Houve outros equívocos. Para acabar com as lideranças de esquerda, acabaram com as de direita também. Cercearam o movimento estudantil, a política partidária. Foi uma pena. A gente podia ter aproveitado para fazer uma grande remodelação do país. Recentemente, lendo as memórias do Oswaldo Aranha, vi que ele diz o mesmo da Revolução de 1930. Tinha-se de aproveitar aquele período discricionário rapidamente, para impor com agilidade as reformas necessárias. Eu concordo inteiramente com ele.

Veja — Por que o senhor só resolveu dar esse depoimento agora?
Araújo —
Porque ninguém me havia perguntado sobre isso antes.




Responder