LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

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LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#1 Mensagem por Túlio » Dom Set 16, 2012 10:45 pm

Começo com uma de Portugal que eu só conhecia parcialmente:

O Cavaleiro Negro

Na sala onde D. Sebastião costumava trabalhar, deu entrada D. Pedro de Alcáçova. Inclinou-se perante o jovem rei português e, depois de o saudar, declarou com deferência:
— Senhor! Dizei-me o que de mim precisais, que algo importante tenho também a declarar-vos.
Sem alterar o semblante, o rei informou:
— D. Pedro! Todos estão contra o meu desejo de fazer guerra, como se outro fosse o desígnio de um cavaleiro. Quero ir lutar em África, e pediram-me um socorro que estou empenhado em conceder. Mas a empresa parece-me pesada, todavia, para a intentar sozinho, e penso interessar nela meu tio D. Filipe II. Para isso necessito de um embaixador que vá a Espanha falar com o rei meu tio. E só a vós encontro para essa missão, Pedro de Alcáçova.
Numa reverência, D. Pedro mostrou-se conforme ao desejo do rei.
— Irei a Espanha, Senhor, e honrado me sinto com o favor da vossa escolha. Quando devo partir?
— Logo que a Primavera chegue.
— Pouco falta, Senhor. Estamos em meados de Fevereiro.
— Pois preparai-vos. Morre-se de tédio neste Inverno cinzento e duro de Lisboa!
Sorriu D. Pedro, maliciosamente.
— Por vezes, surgem acontecimentos estranhos, a quebrar a monotonia...
— E onde estão eles?
— Bem perto.
— Sede claro, Pedro de Alcáçova!
— Senhor... Há dias que ronda o vosso palácio um estranho e jovem cavaleiro, todo vestido de negro e expressão sofredora. Pede para falar-vos mas não apresenta credenciais.
O semblante do rei animou-se.
— E donde diz que vem?
— Da nossa Beira. Mas, se me permitirdes duvidar, Real Senhor, direi que o cavaleiro mente.
— É novo, dissestes?
— Sim, meu Senhor.
— Vestido de negro? E que armas possui?
— Nada de conhecido. Mas traz patente uma miniatura do vosso escudo.
— Estranho! Onde costumais encontrá-lo?
— Agora está na sala aqui ao lado. Achei por bem perguntar-vos se desejáveis recebê-lo.
— Claro que sim!
— Devo dizer-vos ainda, Senhor, que o meu gesto foi censurado e decerto vão divulgá-lo à rainha vossa augusta avó...
Sorriu D. Sebastião.
— Serei por vós, D. Pedro! Não vos amofineis e mandai que entre esse estranho cavaleiro.
— Sem demora o farei, Senhor! Devo retirar-me?
Hesitou o rei, mas decidiu-se.
— Creio ser melhor.
E como D. Pedro mostrasse certo receio, o rei acalmou-o:
— Nada deveis temer. Além de rei, sou homem e gosto de afrontar o perigo. Esperai na sala ao lado e fazei que entre o tal cavaleiro negro.

Num passo pouco firme, o jovem cavaleiro entrou na sala. Por momentos olhou o rei, com olhos vivos, brilhantes, plenos de admiração e respeito. Depois dobrou o joelho e saudou timidamente o rei português. D. Sebastião tentou ver melhor o rosto do seu visitante.
— Quem sois e dondes vindes?
Ele falou:
— Venho de terras beirãs, onde vivo há cinco anos.
— Como vos chamais?
— Já vos direi o meu nome, Senhor, mas antes deixai que vos informe a que vim.
— Falai! Mas, já agora, dizei-me antes: que idade tendes?
— Dezoito anos.
— Possuís o corpo franzino, o rosto belo demais para um homem, a voz fina e imprópria de um cavaleiro... Todavia, pareceis-me agradável. Que me quereis?
Fitando os seus olhos escuros de olhar ardente no rosto atraente do rei, o cavaleiro declarou:
— Senhor! Perdi meus pais muito jovem e fui educado por uma serva que me levou para Fez. De lá saímos há cinco anos e refugiámo-nos nas serras da Beira. Tenho seguido dia a dia as vossas deslocações e ordens. Conheço vossos desejos e sei do cansaço que oprime o vosso coração.
Interrompeu-o o rei.
— Como o sabeis?
— A mulher que me criou aprendeu algo em Fez que fala do passado, presente e futuro...
De novo D. Sebastião o interrompeu.
— Não vindes decerto aqui para me esclarecerdes sobre bruxarias...
— Oh, não, meu Senhor!
— Então?
— Meu rei muito amado! A vossa vida corre perigo e em perigo ficará o vosso reino, se continuardes com o desejo de guerras!
Sorriu o rei.
— Compreendo! Foi alguém de Fez que vos enviou?
— Não, meu Senhor, fui eu! Eu que necessito salvar o meu rei!
— Tanto vos preocupa a minha vida? Ou é o destino da vossa pátria?
— Senhor! Mais a vossa vida que a minha pátria é a razão de toda a minha ansiedade!
Sorriu o rei.
— Explicai-vos melhor, que vos não entendo.
— Pois ides entender-me. Este trajo de cavaleiro não me pertence. Nasci mulher, e desde que vos vi dei-vos o meu coração e a minha vontade!
Atónito, o rei mal cria no que acabava de ouvir.
— Sois realmente... uma mulher?
— Sim, meu Senhor.
— Assim vestida?
— Perdoai-me a ousadia, mas de outro modo não conseguiria despertar a vossa atenção. Sei que odiais a maior parte das mulheres...
— E que me quereis?
As lágrimas chegaram aos olhos da jovem desconhecida.
— Senhor! Se continuardes com a ideia de guerras fora do Reino, desaparecereis como fumo, e anos seguidos vos chorará o vosso povo!
O rei levantou-se. Moviam-se os músculos do seu rosto e cerrava os dentes, tentando conter a cólera.
— Voltai para junto de quem vos mandou e dizei-lhe que o laço armado é pobre e sem interesse para que um rei possa cair nele! A África espera por mim, e nela encontrarei a glória, lutando por um grato ideal!
As lágrimas inundaram os olhos da jovem. Aproximou-se, sem guardar as distâncias convenientes.
— Amo-vos, embora não tenha despertado a vossa atenção! Porque vos quero, darei a vida para evitar que a vossa se perca!
Irritou-se mais o rei.
— Que comédia é esta? Quem vos disse que a perderia?
— Digo-vos eu, Senhor! Eu que sei ao que vos ides expor, se teimardes em partir!
Tremendo de indignação, o rei ordenou severamente:
— Retirai-vos, se não quereis sofrer um dissabor! Na minha vontade mando eu e não os partidários dos infiéis!
A jovem mordeu os lábios e arriscou, com altivez até então não usada:
— Senhor! Tendes demasiada confiança em vós! Já não peço que olheis para os encantos que os outros homens em mim encontram. Mas para vós e para aqueles que dizeis amar e que ireis perder convosco!
Gritou o rei, encolerizado:
— Retirai-vos, já vos disse! E não quero tornar a ver-vos!
Olhou-o profundamente, a jovem. Depois, numa voz estranha onde amor e ódio se misturavam, sentenciou:
— Haveis de ver-me mais vezes! E assim, tal como estou vestida. Mas então, sabei que a minha presença não vos trará mensagens de amor, mas presságios de morte!
— Ameaçais-me? Que pena serdes uma simples mulher!
— Porquê?
— Porque dar-vos-ia a honra de morrerdes no fio da minha espada!
— Rei insensato, a quem só faz vibrar o ódio aos infiéis e a proximidade do perigo! Breve cairão sobre a cidade três presságios da morte da sua independência! E agora, que disse quanto tinha para dizer-vos, vou retirar-me!
E sem esboçar qualquer cumprimento, a jovem vestida como um cavaleiro voltou as costas ao rei e saiu apressada, num passo que mais parecia do outro mundo do que deste!

Ainda D. Sebastião não estava refeito do desespero causado pela visita de tão estranha mulher, quando D. Pedro voltou a pedir permissão para entrar. El-rei gritou-lhe:
— Sabeis quem é este cavaleiro?
— Não, meu Senhor.
— Uma vulgar mulher que os de Fez nos mandaram, para me dissuadirem de ir combater em África!
Os olhos do fidalgo abriram-se num espanto.
— Uma mulher? De facto... aquele rosto... aquela voz... aquele corpo…
Um grito do rei cortou-lhe o pensamento.
— Basta! Não quero mais ouvir falar dela! E agora chamai D. Cristovão de Távora. Preciso de ficar só com ele. Quanto a vós, bem sabeis o que tendes a fazer.
Conhecendo bem a maneira de ser do seu soberano, apressou-se D. Pedro a chamar o valido D. Cristovão, o único, nesse momento, capaz de apaziguar a cólera do rei.
Entretanto, fora do palácio, sumia-se numa esquina da rua o vulto airoso de um elegante cavaleiro todo vestido de negro…

O último dia desse ano de 1575 estava a chegar ao fim. Na sala de diversões, D. Pedro de Alcáçova, D. Cristóvão de Távora e D. Nuno de Mascarenhas conversavam animadamente sobre esse ano que ia findar sem deixar saudades, pois a 18 de Fevereiro ateara-se um pavoroso incêndio na Rua do Príncipe, devastando toda a parte fronteira ao mar e fazendo numerosas vítimas. E ainda não estavam refeitos da desolação em que o sinistro deixara o povo de Lisboa, quando a 3 de Outubro começou a chover tão barbaramente, que a abundância das águas formou um lago que cobriu todo o centro da cidade. E as chuvas, caindo sem descanso, só haviam terminado nessa mesma tarde do último dia de Dezembro. Três meses consecutivos, Lisboa sofrera os rigores de um Inverno inclemente!
Estavam os fidalgos falando do assunto, quando alguém anunciou:
— É chegado o nosso Rei e Senhor D. Sebastião!
Todos se perfilaram. O rei entrou. E o valido D. Cristóvão, servindo-se da liberdade que lhe dava a preferência do rei, adiantou-se, sorrindo. D. Sebastião olhou os outros dois e indagou:
— Que discutíeis com tanto calor?
Foi D. Cristóvão quem respondeu:
— Os rigores de um impiedoso Inverno, Senhor. O povo já fala de presságios...
Sorriu de um modo estranho, o rei, e disse:
— Ainda teremos de sofrer um novo pesadelo...
Olharam o rei os três fidalgos, como a tentarem descobrir a verdadeira intenção dessas palavras. Mas D. Cristóvão, sempre mais atrevido, ousou perguntar:
— A que pesadelo vos referis, Senhor?
Deu de ombros o rei e fechou o assunto com voz solene:
— Um novo ano entra. Tudo mudará. Precisamos falar de assuntos mais sérios do que esses com que o povo se entretém. A jornada de África será o pensamento principal daqueles que me estimam!
E sem mais acrescentar, el-rei saiu em direcção ao seu gabinete, seguido por D. Cristóvão de Távora e D. Pedro de Alcáçova.
Saiu o Inverno e entrou a Primavera. Secaram os campos que haviam estado inundados, e da lama surgiram os destroços que a inundação escondera. Então, outra calamidade caiu sobre Lisboa: a peste! Não havia já alojamentos para tantos enfermos! No cais, edificou-se à pressa um hospital de madeira, para alojar os doentes. A terceira praga caía sobre a cidade! Mas D. Sebastião continuou sorrindo e tendo em mente um único desejo: passar à África e combater os infiéis!

Ano de 1578. Sol ardente, queimando como ferro em brasa. Ar irrespirável, pesado, atabafante. Ausência de vento. Muito pó, subindo e descendo como repuxo de água. Mas a água ali era pouca: Agosto em Alcácer Quibir!
O dia 4 amanheceu gritando a sua claridade. E logo el-rei D. Sebastião acordou, pedindo para almoçar. Serviram-no na sua tenda. Vestiu-se e conversou. De súbito, a tenda foi abalada violentamente, como se um gigante a quisesse amachucar nas suas mãos. Correram, el-rei e os três fidalgos que lhe faziam companhia, para ver de que se tratava. E depararam com um estranho espectáculo! À beira deles estava um cavaleiro todo vestido de negro. Montava um cavalo branco. Desbocado, o animal embaraçara-se nas cordas que sustentavam a tenda, e de tal modo, que caíra para logo se levantar, tornando depois a cair, até conseguir finalmente libertar-se. Quanto ao cavaleiro de negro, dir-se-ia enroscado na sela! Mal o seu cavalo se libertou, desapareceu na direcção de Alcácer, sob as nuvens de pó que as patas da sua montada levantavam do chão...
D. Luís de Távora, irmão do valido D. Cristóvão, olhou perplexo o rei e perguntou:
— Senhor! Este cavaleiro será dos nossos ou do inimigo? Nem veste como nós, nem como eles!
Sorriu o rei e olhou D. Cristóvão. Este mostrou-se subitamente abatido. D. Sebastião irritou-se.
— Então? Que pensamentos estarão passando pelo vosso cérebro?
Suspirou D. Cristóvão:
— Senhor! Estou a recordar uma conversa que Vossa Majestade teve a bondade de ter comigo em Lisboa, numa certa manhã.
— Que conversa?
— A que tivemos sobre a estranha visita de um certo cavaleiro vestido de negro.
— E depois?
— Depois... ele vos disse que voltaria a aparecer-vos para vos trazer um presságio...
— Calai-vos!
A voz irada do rei fez suspender a frase ao seu valido. Inclinou-se este, mais por submissão do que por vontade, e ficou-se a olhar a vastidão imensa dos campos ressequidos pelo sol da véspera. E D. Cristóvão sabia que nesse nervosismo com que o rei o mandara calar ficara suspenso um tanto da ansiedade que ele lutava por recalcar.
A voz imperiosa do rei voltou a ouvir-se:
— Vamos! É tempo de agir! Quanto mais cedo começar a luta, mais breve virá a vitória!
Saíram da tenda, aonde haviam voltado. Lá fora, porém, estavam perfilados alguns fidalgos portugueses. Vinham pedir ao rei que modificasse o plano de batalha e a adiasse, para que o exército fosse reabastecido. Mas o rei indignou-se. A cólera voltou a pôr-lhe cores no rosto, normalmente pálido.
— Que vos aconteceu, senhores? Porventura não sois os mesmos que me facilitáveis esta empresa, a mesma que estais agora a dificultar?
Não responderam os fidalgos. El-rei voltou a altear a voz.
— Então? Não tendes que dizer-me?
Um dos mais velhos adiantou-se.
— Senhor, não somos cobardes, bem o sabeis! Mas quando pensámos na luta, jamais havíamos presumido que as coisas tomassem rumo tão incerto!
— E que desejais? Retirar?
— Não, meu Senhor! Mas esperar que o Sol não vos apanhe em seu pleno vigor e descoberto!
— Esperar! Esperar! Há quantos anos espero este momento! Senhores, sou rei e nada temo! Que me sigam aqueles que acharem por bem seguir-me!

E o exército português recebeu ordem de formar para a batalha.
Seguiram o rei os cavaleiros portugueses. D. Cristóvão não mais largou de vista aquele de cuja mão tantas dádivas recebera e a cujo coração tantas provas de amizade ficara a dever. A batalha feriu-se com fúria. Aos poucos, a nossa melhor cavalaria lá ia ficando no anonimato dos cadáveres do caminho. O sangue tingia as espadas e as adagas. Infantaria e cavalaria começaram a confundir-se na desordem de uma vitória incerta. Mas D. Sebastião dir-se-ia o génio da luta, sempre altivo e animoso.
No meio da refrega, encontrou el-rei a D. Jorge de Albuquerque, ferido com quatro cutiladas no peito. Vendo D. Sebastião, teve forças para gritar-lhe:
— Senhor! O vosso cavalo está incapaz de ser montado e eu estou incapaz de montar! Tomai o meu e salvai-vos!
O rei não queria aceitar. Mas outros fidalgos instaram para que soberano português mudasse de montada. E por fim D. Sebastião acedeu, dizendo a D. Jorge:
— Quanto me pesa ver-vos dessa maneira!
Ele respondeu:
— Morro contente, Senhor, em serviço de Deus e vosso!
A luta continuou, num mar de tempestade e de infortúnio para nobreza de Portugal. Vendo el-rei perseguido por todos os lados, D. Cristóvão, com lágrimas na voz, pediu:
— Senhor! Rendei-vos! Nada mais há a fazer!
De expressão dura, D. Sebastião tomou:
— Há, sim! Há ainda o morrer... mas devagar!
Entretanto novas arremetidas surgiram, que o ímpeto de D. Sebastião soube sustentar. Mas, de súbito, o rei parou. D. Cristóvão olhou o ponto que D. Sebastião fitava, alheio quase à luta nesse pequeno segundo. E viu então um cavaleiro vestido de negro, que breve se embrenhou entre os infiéis. O rei, alucinado, seguiu o cavaleiro. E nessa corrida arrebatada perdeu-se para sempre dos olhares dos seus amigos e companheiros de luta!
Também Portugal não mais viu o seu rei, poeticamente esperando seu regresso.

Mas o rei jamais voltou. Conhecido pelo cognome "O Desejado", D. Sebastião, simbolicamente, é ainda hoje esperado pelo povo português que crê que este voltará a bordo de um navio (parece que daí veio o ditado "ficar a ver navios") numa manhã de nevoeiro para salvá-los de uma grande desgraça.


Fuente: MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 325-332




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#2 Mensagem por Túlio » Dom Set 16, 2012 11:20 pm

Esta é Espanhola e é das feias:



Das terras altas da Galícia vem a lenda do Cão da Morte. Mesmo em pleno século XX os cães foram utilizados como arma de guerra, e anteriormente tiveram uma utilização mais vasta. Raças como os Mastins, Galgos e Alanos espanhóis foram utilizados na conquista da América em práticas que foram repetidas no Novo Mundo mas aprendidas no Velho Mundo. A arma de guerra ou de contenção foi transportada para lendas, como a que contamos a seguir. É uma lenda trágica, de sede de vingança, que mostra um jovem que busca pagar na mesma moeda uma perda sofrida.

A LENDA DO CÃO DA MORTE



Nas Terras Altas da Galícia, havia um conde que mantinha seus patrícios temerosos, com um cão treinado para matar. Era um cão daqueles que são chamados de Cães de Guerra ou Cães da Morte, usados em guerras para combates. Este cão era chamado de Demo (demônio em galego). Era um grande animal, mas não tanto como os que guardavam e protegiam os rebanhos dos povoados contra os lobos. Mas este cão foi treinado para matar pessoas na guerra. Dizia-se que ele matou muitos inimigos nas batalhas, mas agora o Conde utilizava-o para amedrontar e submeter seus vassalos.

Um dia, apareceu o Conde em um dos povoados das Terras Altas, e convocou seus habitantes no ponto de reunião do Concelho. Ameaçou-os, exigindo que pagassem mais impostos, mas como os moradores negaram-se, mandou preparar o cão. As pessoas fugiram em pânico e esconderam-se em suas casas. O Conde escolheu uma casa e ordenou a seus soldados que arrombassem a porta, mandando soltar o cão para que entrasse. O feroz animal matou a todos que encontrou dentro da casa, inclusive as crianças. Aterrorizados com tamanha brutalidade, todos os demais apressaram-se em cumprir os desejos do infame Conde.

Entre os mortos estava uma bela jovem, prometida em casamento a um primo que vivia no mesmo lugarejo. Este rapaz estava tão desolado que recolheu todos os cães que guardavam os rebanhos, por serem os maiores. Mas o que fez foi por impulso, não pensou muito no que iria fazer e nem nas conseqüências. Treinou os cães como bem entendeu para que se defendessem uns aos outros e matassem a Demo. Foi em vão, Demo matou a todos. Os moradores locais voltaram-se contra o jovem porque deixou todos os rebanhos sem cães que os defendessem dos lobos.

O Conde ao saber do ocorrido mandou prendê-lo, mas o jovem conseguiu fugir a tempo por Verin até terras de Portugal, onde inclusive esteve lutando contra os mouros. Durante este tempo, aprendeu com um judeu as artes para adestrar os cães usados na guerra, e com este saber regressou às Terras Altas com sede de vingança. Não avisou a ninguém de sua chegada, exceto sua mãe. Graças a sua mãe encontrou uma cadela grande no cio, e com ela foi até a fortaleza do Conde.

Em uma noite escura, o rapaz preparou uma emboscada, amarrando a cadela no cio de forma a que o vento levasse o odor até onde estava Demo. Quando Demo sentiu o odor da cadela no cio, ficou enlouquecido. O criado do Conde que cuidava do cão, tirou-o de seu canil, e saiu com ele para ver o que lhe causava tanta perturbação. Quando chegou próximo à cadela percebeu o que estava acontecendo e soltou-o. Demo foi de encontro à cadela e, neste momento, o rapaz aproveitou-se e matou o criado que conduzira Demo até ali. Demo estava entretido, atendendo ao chamado da Natureza, e o rapaz preparou-se. Já tinha previamente lavado-se minuciosamente, e untou o corpo com um óleo que dera-lhe o judeu para disfarçar seu próprio odor. Vestiu-se com as surradas roupas do criado assassinado, assim o cão não o reconheceria nem pela vista e principalmente pelo olfato. Antes que Demo terminasse com a cadela, atou-o novamente.

Voltou o rapaz com Demo para o canil. Colocou-lhe a armadura de couro com placas de ferro, que se colocava aos cães de guerra antes de entrarem em combate, que também servia de proteção contra as flechas e espadas inimigas. Esperou até que todos na fortaleza adormecessem e, depois de passar pelos guardas sem problemas, foi até a torre onde o Conde e sua família dormiam. Quando encontrou-se na torre atiçou e soltou a Demo (que pelo olfato o reconhecia como seu antigo tratador). Imediatamente ouviu-se os gritos de pavor do Conde pedindo ajuda a seus guardas. Mas o rapaz havia trancado a sólida porta por dentro, para que ninguém pudesse entrar. Todos os membros da família do Conde morreram, inclusive um dos filhos que se jogou de uma janela para não ser devorado pela fera. Enquanto o cão completava sua incrível e cruel chacina, o rapaz ateava fogo à torre. Quando enfim os soldados do Conde conseguiram arrombar a sólida porta e entrar nos aposentos, o cão de novo atiçado pelo rapaz atacou-os também, e o rapaz aproveitou a confusão para escapulir em meio ao banho de sangue gerado pela fera, até que conseguiram matar a Demo.

Sob a luz do incêndio da torre conseguiu o rapaz escapar, e a partir de uma montanha próxima pos-se a dar brados de vitória aos quatro ventos.

Tradução livre da lenda El Perro de la Muerte, encontrada em Coba Leyendas.




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#3 Mensagem por Túlio » Sáb Set 22, 2012 7:17 pm

Évora


Giraldo Giraldes descendia de uma nobre familia, de appellido Pestana, e era natural da Beira.
Parece que era da villa de Ferreiros de Tendaes, ou suas immediações. (Vide Ferreiros de Tendaes.)
Depois de combater heroicamente ao lado de D. Affonso I (foi este monarcha que lhe pôz a antonomasia de Sem-Pavor, em razão da sua bravura) teve certas questões com outro fidalgo, grande privado do rei, e o matou em desafio.
Receando a colera do rei, fugiu, hindo abrigar-se na serra de Monte-Muro, onde construiu um castello, cujas ruinas ainda existem. D’alli sahia com outros muitos foragidos, que se lhe reuniram, a roubar mouros e christãos, sendo o terror dos povos da provincia.
A fama das grandes presas que fazia, attrahiu tantos bandidos á sua bandeira, que chegou a ter 526 soldados de cavallaria e grande numero de peões, de maneira que fazia a guerra como conquistador e não como salteador.
Quem queria estar ao abrigo de suas rapinas, lhe pagava annualmente um tributo estipulado.
Mas Giraldo Giraldes era um nobre cavalleiro, não lhe soffria o animo viver sempre esta vida de rapinas e depredações e queria a todo o custo obter o perdão do rei.
Deixou os seus camaradas no seu castello e foi só com cinco á cidade d’Evora, e ahi, fallando com o alcaide mouro, lhe disse muito mal de D. Affonso I e prometteu ajudar os mouros a derrotal-o. Ficou o alcaide muito contente e o tratou muito bem, tendo-o comsigo dois dias, que Giraldo approveitou para examinar minuciosamente a fortaleza.
Tornando ao seu castello, proclamou aos seus soldados, incitando-os a uma grande façanha, em serviço de Deus, do rei e da patria (sem lhes dizer qual.) Prometteu-lhes o perdão do rei e ainda honras e terras. Todos annuiram e elle os mandou armar e prover de mantimentos para dois dias.
Assim que anouteceu, sahiram do castello, e andando toda a noute, se esconderam apenas amanheceu, continuando a marcha na noute immediata., chegando a 2 kilometros a O. da cidade (onde hoje é o convento das freiras bentas) mandou nos seus cortarem trancas, em quanto esperavam por elle, descobrindo-lhe então o seu intento.
Recomendando-lhe o maior silencio, se foi só para Evora, chegando á torre da Atalaya, que hoje se vê no outeiro de S. Bento, onde estava por sentinella um mouro e uma sua filha. Giraldo hia coberto de ramos verdes, para não ser visto, mas não era preciso esta prevenção, porque as sentinellas dormiam a somno solto.
Não tinha a torre communicação alguma com as outras obras de defeza, nem porta d’entrada, e apenas tinha uma janella, para onde se subia por uma escada de mão, que se recolhia logo depois de ser preciza: Giraldo, largando a rama e espetando ferros de lança nas juntas das pedras, subiu até á janella onde estava a moura e precipitou esta abaixo da torre, cahindo sobre uns penedos, onde logo morreu. Entrando na torre, degolou o mouro, que ainda dormia, levando as cabeças dos dois vigias aos seus, em signal de bom annuncio.
Separou d’entre os seus, 120 de cavalo mandando-os pela parte onde hoje está o convento do Espinheiro, com ordem d’esperarem alli até que ouvissem rumor e gritos na cidade; e elle com os restantes se foi direito á torre de Atataya, e subindo a ella, accendeu o fogo que indicava ser este sitio atacado por christãos.
Os da cidade se reuniram á pressa e o alcaide com a maior força sabiu da cidade em direcção á torre, sem mesmo julgar necessario fechar as portas. Giraldo, que estava á espreita, entrou facilmente na cidade, protegido pela escuridão da noute, matando quanto se lhe punha diante, e cerrando as portas com as trancas que os seus haviam feito.
Os gritos de mouros e christãos e os lamentos das mulheres e creanças eram horriveis. Acudiu o alcaide com os seus, mas Giraldo lhe defendeu a porta como um leão.
N’isto, os 120 cavalleiros deram nos mouros pela rectaguarda, pondo-os em precipitada fuga; pois julgaram que o proprio D. Afonso I estava dentro da cidade.
Não cuidou Giraldo em os seguir, mas em fortificar melhor alguns pontos da cidade. No outro dia mandou pôr fóra d’ella aos mouros que tinham ficado, só com o que tivessem vestido; menos aos que quizeram estar sob o poder dos christãos, que aqui ficaram vivendo e seus descendentes, convertendo-se muitos ao christianismo e os outros aqui viveram até ao reinado de D. Manuel, que os expulsou do reino e mais aos judeus.
A cidade foi saqueada, tirando-se o quinto para o rei (como era a praxe d’aquelles tempos) e Giraldo mandou-o, a D. Afonso I com a noticia d’esta façanha e o pedido de perdão para elle e os seus, pedindo-lhe tambem que mandasse tomar conta da cidade e lhe posesse guarnição.
D. Affonso I ficou contentissimo com esta inesperada conquista: perdoou logo a Giraldo e aos seus, nomeando-o alcaide-mór d’Evora, e fazendo-lhe outras muitas mercês.
A Pedralves Cogominho, que foi o que levou a noticia e o presente, fez doação de muitas herdades e outras muitas mercês. Alem d’isso mandou muita gente a Giraldo, para reforçar a guarnição da cidade, e com ella os cavaleiros da nova ordem (Aviz) a quem se deu a parte da cidade a que ainda hoje se chama Freiria. (Vide Aviz.)
Assim foi arrancada para sempre do poder serraceno a nobre e veneranda cidade d’Evora.
Os phantasiadores e os poetas contam este feito de Geraldo Giraldes com algumas variantes, mettendo-lhe a historia de um fingido namoro que elle teve com a moura da torre da Atalaya; mas a versão mais seguida, por mais verosimil é a que fica escripta.


Fuente: PINHO LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de Portugal Antigo e Moderno Lisboa, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 2006




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#4 Mensagem por Túlio » Sáb Set 22, 2012 7:37 pm

A Lenda de Macunaíma

A Lenda de Macunaíma, o índio guerreiro que nasceu do amor entre o Sol e da Lua.

Em Roraima havia uma montanha muito alta onde um lago cristalino era expectador do triste amor entre o Sol e a Lua. Por motivos óbvios, nunca os dois apaixonados conseguiam se encontrar para vivenciar aquele amor. Quando o Sol subia no horizonte, a lua já descia para se pôr. E vice-versa. Por milhões e milhões de anos foi assim. Até que um dia, a natureza preparou um eclipse para que os dois se encontrassem finalmente. O plano deu certo. A Lua e o Sol se cruzaram no céu. As franjas de luz do sol ao redor da lua se espelharam nas águas do lago cristalino da montanha e fecundaram suas águas fazendo nascer Macunaíma, o alegre curumim do Monte Roraima.

Com o passar do tempo, Macunaíma cresceu e se transformou num guerreiro entre os índios Macuxi. Bem próximo do Monte Roraima havia uma árvore chamada de "Árvore de Todos os Frutos" porque dela brotavam ao mesmo tempo bananas, abacaxis, tucumãs, açaís e todas as outras deliciosas frutas que existem. Apenas Macunaíma tinha autoridade para colher as frutas e dividi-las entre os seus de forma igualitária.

Mas nem tudo poderia ser tão perfeito. Passadas algumas luas, a ambição e a inveja tomariam conta de alguns corações na tribo. Alguns índios mais afoitos subiram na árvore, derrubaram-lhe todos os frutos e quebraram vários galhos para plantar e fazer nascer mais árvores iguais àquela.
A grande "Árvore de Todos os Frutos" morreu e Macunaíma teve de castigar os culpados. O herói lançou fogo sobre toda a floresta e fez com que as árvores virassem pedra. A tribo entrou em caos e seus habitantes tiveram que fugir. Conta-se que, até hoje, o espírito de Macunaíma vive no Monte Roraima a chorar pela morte da "Árvore de todos os frutos".


(Postei a VERDADEIRA lenda de Macunaíma porque quase todos nós sabemos tão pouco sobre nossa terra e nossa gente que achamos que o dito cujo não passa de um pobre idiota, retrato criado por um filme ainda mais idiota).




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#5 Mensagem por Guerra » Sáb Set 22, 2012 11:43 pm

Kanaimé Lenda ou Realidade?

O canaimé é ser muito temido dentro das comunidades indígenas de Roraima, as pessoas de outras culturas acreditam que o canaimé é apenas uma lenda que os índios inventaram para amedrontar fazendeiros e outros brancos que moravam perto das malocas. E alguns deles contam que canaimé era um índio vestido com pele de algum animal, geralmente pele de onça que atacava as fazendas para roubar gado. No entanto nós indígenas o descrevemos de outra maneira, contam os antigos da comunidade Canauanim (minha avó,meus tios Lourival e Zé neve) que o Canaimé é um ser sobre natural que é capaz de se transformar em várias formas diferentes de animais (porco, cachorro, tamanduá, cutia, veado,macaco e etc..) minha avó me contou que um antigo pajé chamado Joaquim bonitim (essa era a pronuncia usada), lhe contou que o canaimé sempre existiu, é um ser milenar, eles são os espíritos dos antigos pajés mal que morreram e ficaram vagando sem rumo, e foram morar nas serras e seus espíritos adormecem em uma planta que tem o nome de TAJÁ, e essas plantas foram encontradas um dia por um feiticeiro Ingaricó que usou para fazer sua magia e perseguir seus inimigos. O Tajá precisa ser alimentado com sangue e carne putreficada de humanos e quando o dono não cuida dele direito, ele come o próprio dono, quem adquiri essa planta adquiri poderes sobre naturais e é capaz de se tornar invisível, só pajé é capaz de vê-lo. Joaquim bonitim também disse a minha avó que existe uma serra chamada Kuando Kuando que lá existiu uma tribo grande de Kanaimé que se reproduziu e eles foram usados pelos Macuxis numa guerra tribal contra os Wapichanas, que quase foram dizimados, se não tivesem fugido para o norte (atualmente a serra da lua).
O Canaimé ainda existe atualmente dentro das comunidades indígenas da serra da lua, só que em números reduzidos, eles matam crianças, velhos, homens e mulheres. Pajé contou que para matar um canaimé é preciso fazer uma defumação com pêlo do macaco Cuatá e fazer bala de cera da abelha Jandaíra, mas quem conseguiu fazer isso foi perseguido pelo resto da vida por outros canaimés. Eles costumam atacar pessoas que andam sempre sozinha(caçadores e pescadores) crianças indefesas, pessoas doentes e etc. Seu ataque é fatal, primeiro ele espanta as pessoas e elas desacordam, o canaimé então corta a língua , corta o pulso, quebra o pescoço e ainda coloca folha no ânus de sua vitíma e depois de tudo isso a pessoa torna em si, mas já está praticamente morta, pois matam o espírito primeiro, depois a vitíma fica com muita febre, não come, não bebe água e também não fala mais e o canaimé passa a noite rodeando a casa para terminar de matar definitivamente.
O Canaimé é um ser misterioso que ainda vive em nosso meio praticando a maldade, no dia 15/08/2009 morreu em nossa comunidade dona Isabel vitíma de Canaimé, seu corpo estava roxo e quem foi vê-la sentia uma queimação tipo pimenta, essa é a característica de pessoas que morrem pela ação do canaimé, nossa comunidade está sofrendo ataque por esses demônios, mas acreditamos que Maruay vai se manifestar e vai queimá-los todos. Kaimem.....


Autor. Ivônio Sólon (a história de nossos velhos)




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#6 Mensagem por Túlio » Dom Set 23, 2012 12:10 am

UMA LENDA DE ALJUBARROTA



Lenda da Bilha de São Jorge


Foi nos primeiros dias de Agosto de 1385. O Sol dardejava o seu sopro de fogo sobre as terras de Portugal e Espanha. Corpos aquecidos e espíritos ardendo em febre! Ânimos mais exaltados ainda pelo calor da discórdia!
O rei de Castela levara até à Beira a sua invasão em território muito nosso. E o jovem rei de Portugal — rei havia apenas questão de meses — correu para a cidade do Porto para reunir tropas, descendo depois sobre Abrantes, onde iria encontrar-se com o condestável do reino. Este correra antes a Estremoz. Aí, aliciara gente. E fortalecido pela fé de vencer, chegou à cidade de Abrantes, onde iria reunir-se conselho.
O ar, demasiado abafado, quase não girava. No salão, os guerreiros acolhiam com desagrado a ideia de uma grande batalha. Sabiam que o rei de Castela tinha em campo mais de vinte mil homens, enquanto eles, se fossem sete mil, já se poderiam dar por felizes. Votavam, portanto, contra a batalha.
Apesar da pequena estatura, a figura direita e altiva do Condestável impressionava sempre quem o via, até entre os próprios inimigos. Fez-se silêncio quando D. Nuno Álvares Pereira se levantou para falar.
A sua voz soou firme e compassada.
— Senhores! O meu voto é contrário ao vosso e dir-vos-ei por quê. Se ficarmos inactivos — como é vosso parecer — será certa a ruína. Se aqui ficamos, o inimigo, sempre em maior número, nos buscará. Se nos alojarmos num sítio forte, fugindo dele, os Castelhanos correrão a sitiar Lisboa, que sentirá a nossa falta e a falta de mantimentos. Sem víveres, sem armada, sem soldados, com a infidelidade de alguns dos seus naturais, que será da nossa Lisboa? E, caindo Lisboa, cairão por terra todas as nossas esperanças! Não ignoro que seria prudente aguardar socorros de Inglaterra. Mas que poderá restaurar a perda de Lisboa, se ficarmos de braços cruzados, esperando um auxílio demorado? E depois, que faremos nós? Debandaremos então em correria, acção que designo de infamante?...
Alguém contrapôs:
— E se formos para a batalha e a perdermos?
— Ganharemos pelo menos em honra! No entanto, se a ganharmos, como é minha fé, pela necessidade que temos de pelejar, a vitória saberá aligeirar tudo quanto nos possa ter acontecido!...
Depois, voltando-se para D. João I, que parecia abalado com as opiniões em massa contra a ideia de uma batalha imediata:
— E vós, Senhor, que aceitastes a coroa para defender o reino, perdereis toda a reputação que haveis adquirido se recusardes a peleja! Vede que a maior parte dos soldados contrários são visonhos ou andam atemorizados com as perdas passadas. Se os vossos gloriosos progenitores temessem estas desigualdades de opiniões, decerto não teriam ganho tão insignes vitórias. Senhor! Se outra for a vossa resolução, que não a minha, sabei que eu, só com os que me acompanham, pelejarei com o inimigo, pois julgo mais insofrida uma vida infame que uma morte gloriosa!
D. Nuno terminou a sua alocução. Sabia já ter dito o suficiente para saberem o que poderiam esperar dele. Todavia, os protestos levantaram-se calorosos. Achavam audaciosas, quase loucas, as ideias do Condestável. O conselho ficou adiado. Mas no dia seguinte D. Nuno Álvares Pereira passou com os homens que aliciara à cidade de Tomar, por onde o rei de Castela forçosamente passaria.
Ao ter-se conhecimento desta decisão, muitos fidalgos e chefes guerreiros propuseram a D. João I que castigasse o Condestável por tão audaciosa proeza. Mas qual não foi o espanto desses homens, quando o rei de Portugal decidiu:
— Senhores! Declaro-me também pela batalha! Quero ser rei de Portugal e não de Avis, como alguns para aí me apelidaram!
Houve certo burburinho, abafado pelo natural respeito ao Rei. E D. João I foi juntar-se ao Condestável, saindo de Abrantes depois de orar na Igreja de S. João. E chegaram a Aljubarrota a 14 de Agosto desse mesmo ano de 1385.
O mesmo sol continuava abrasando os campos, secando os regatos, sedentando as bocas. Cantavam as cigarras, que os pés dos soldados iam pisando nesse campo que D. Nuno escolhera para esperar o rei castelhano e todo o seu grande exército.
Pouco depois do meio-dia, os dois exércitos estavam frente a frente. Mas o rei castelhano não se dispôs logo a dar combate, receoso da sua posição estratégica.
Do alto, a luz solar caía a jorros, inundando o plaino de Aljubarrota e queimando as energias nessa enervante espera. Era fogo, o ar que respiravam. E da própria terra que as patas dos cavalos batiam saíam nuvens de pó que mais pareciam fumo. Começavam as bocas a sentirem-se sequiosas, os lábios a gretarem-se, as vontades a enfraquecerem. Então, D. Nuno procurou o valente Antão Vasques.
— Sabeis do que tenho temor? Não é do inimigo, é do sol! Os homens queixam-se de sede... e essa tortura será capaz de os derrotar, antes da luta!
Antão Vasques olhou o Condestável com ansiedade.
— E que fazer, senhor?
Olhando fixamente um ponto vago, D. Nuno meneou a cabeça.
— Perguntais bem, Antão Vasques! Mas creio que só há um caminho: encontrar água para os nossos soldados.
Perfilando-se, Antão Vasques pediu:
— Senhor! Se não vos opuserdes, tomarei eu conta de tal missão. Deixai que procure a água!
— Estais certo de a encontrar?
— Conto com a ajuda de Deus e de S. Jorge! Nem que tenha de arrancar água à própria terra, hei-de encontrá-la... e a vitória será nossa!
D. Nuno olhou-o com simpatia.
—Pois ide... e que S. Jorge vos proteja!
Sem mais ouvir, Antão Vasques correu imediatamente em busca dessa água bendita que poderia salvar as hostes de Portugal. Mas em vão parecia fazê-lo. Sob o sol abrasador, nem uma gota de água surgia nesses campos desertos! O desespero começou a apoderar-se do guerreiro. Mas conta a lenda que a certa altura da sua busca infrutífera, Antão Vasques desceu do cavalo e ajoelhou na terra escaldante. Dos seus lábios ressequidos subiu uma oração:
— Senhor meu Deus! Dizem que cada um de nós tem um Anjo da Guarda! Por tudo vos peço que me envieis o meu Anjo com um pouco de água!
E nesse mesmo instante, como uma miragem, Antão Vasques viu surgir, avançando para ele, uma graciosa camponesa com uma bilha de água na mão.
Murmurou, receoso de enganar-se:
— Será possível tamanho milagre?
Parecendo tê-lo ouvido, a jovem camponesa sorriu. Depois, chegando junto do cavaleiro:
— Senhor... creio que tendes sede. Tomai esta cantarinha e bebei. Tem água fresca e boa!
Antão Vasques nem chegou a responder. Aceitou a cantarinha e levou-a logo à boca, bebendo sofregamente. Só depois agradeceu à jovem:
— Graças! Esta água mata a sede... Mas é tão pouca... e nós somos tantos...
Voltou a camponesa a sorrir.
— Bebei à vontade, cavaleiro! A água não acabará assim tão depressa!
E com um gesto gracioso indicou a bilha que Antão Vasques conservava ainda nas mãos.
— Levai-a convosco e dai de beber aos vossos companheiros!
Antão Vasques olhou perplexo a jovem camponesa. Mas já ela lhe dizia, com certa autoridade na voz:
— Senhor Cavaleiro, não demoreis!... Os vossos companheiros também têm sede...
Sem mais acrescentar, afastou-se em direcção oposta à da batalha que ia travar-se. Duplamente contente, o cavaleiro gritou-lhe então:
— Adeus e obrigado por todos!
E aconchegando a bilha à sua armadura de guerra, Antão Vasques dirigiu-se quase correndo ao campo português, para contar ao Condestável o maravilhoso prodígio.

Entretanto, o rei de Castela, que hesitara em dar luta aos portugueses, preparava-se para atacar. E a água que a misteriosa donzela levara a Antão Vasques chegou no momento oportuno.
Corria de mão em mão, de boca em boca, a bilha pequena, cuja água parecia nascer dentro dela, não se sabe devido a que estranho milagre. Era um oásis de frescura e vigor! Renovamento das forças corporais e do espírito! Os ânimos fortaleceram-se. Havia desejo de lutar e vencer. Todo um exército renovado por ter bebido alguns golos de água de uma infusa de vulgar aparência!
Finalmente, os castelhanos resolveram atacar. A tarde já ia avançada. Supunha o inimigo que os portugueses já estariam exaustos da expectativa, quebrados, pela demora e pela sede. Iriam aproveitar-se dessa moleza em que julgaram envolvidas as nossas hostes. E o grito de guerra soou, como trovão medonho, abalando a terra de Aljubarrota!
Por montes e vales iluminados pela luz brilhante do Sol, subiu o clamor das trombetas, misturado com o ruído das armas e dos homens avançando em tumulto, à conquista de uma vitória esmagadora e decisiva. Mas, por milagre de Deus e esforço dos homens — contra o que os outros esperavam — os sete mil portugueses aguentaram a pé firme, estoicamente, aquela avalancha furiosa de trinta mil! O pó levantado do chão bailava no ar uma dança fantástica. Logo depois do primeiro embate, a surpresa do rei de Castela foi grande, e maior se tornou ainda quando os portugueses, manobrando com inteligência, envolveram o inimigo numa verdadeira tenaz de ferro e fogo! Era o princípio da maior vitóra militar de sempre!
De súbito, Antão Vasques entrou correndo na tenda de D. João I. Entrou chorando e rindo, simultaneamente:
— Senhor! Senhor meu rei! Deixai-me rir e chorar! Rio e choro de alegria! Os castelhanos fogem em debandada! E eu venho entregar-vos esta bandeira que pertenceu ao maior inimigo que tínheis no Mundo!

Caía a noite. Uma noite quente de Verão em que a Lua, qual grande círio, vinha pratear os campos cobertos de cadáveres, como se lhes quisesse prestar uma derradeira homenagem. A morte é sempre a morte, mesmo quando é dada ao inimigo e por uma causa justa.
Por entre as sombras da noite, fugia em debandada o exército castelhano, perseguido agora pelos aldeões. O próprio rei teve de disfarçar-se, mas foi reconhecido. E se passou a fronteira, deve esse gesto à generosidade do rei de Portugal. Entre os castelhanos que tombaram, alguns portugueses perderam também a vida, pela causa de Castela. Alguns portugueses que não souberam ter fé.
Noite de Verão e noite nas almas desse punhado de traidores! Entre eles, triste é dizê-lo, contava-se D. Diogo Álvares Pereira, irmão do Condestável. Todos possuem a sua cruz, e essa não foi pouco pesada a D. Nuno Álvares Pereira. Mas a batalha estava ganha com honra e glória! E embora o Condestável tivesse acreditado sempre no valor dos que tinha a seu lado, não deixava de crer também nesse valor extraordinário que permitira o feliz seguimento da luta — essa água milagrosa descoberta por Antão Vasques. Assim, no sítio onde a camponesa surgira com a cantarinha, D. Nuno Álvares Pereira mandou erguer a capela de S. Jorge.
E ainda hoje, em memória do extraordinário acontecimento, lá está sempre uma bilha de água, para dar de beber a quem passe e tenha sede.




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#7 Mensagem por Túlio » Dom Set 23, 2012 12:14 am

GUERRA, e o GUANDIRÔ? Cheguei a escrever um conto sobre ele mas praticamente nada se sabe a respeito, tanto que inventei tudo...




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#8 Mensagem por Guerra » Dom Set 23, 2012 6:48 pm

Túlio escreveu:GUERRA, e o GUANDIRÔ? Cheguei a escrever um conto sobre ele mas praticamente nada se sabe a respeito, tanto que inventei tudo...
Não tenho nada, Tulio. Notou como é dificil estudar mitologia indigena?




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#9 Mensagem por Rodrigoiano » Dom Set 23, 2012 7:31 pm

Na net só se acha que o tal guandirô é um espírito da noite que bebe o sangue das pessoas perdidas na floresta.

Não sei se fala sobre o caso, mas uma rica coleção sobre a cultura indígena brasileira, é a Suma Etnológica Brasileira.




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#10 Mensagem por Túlio » Seg Set 24, 2012 8:24 am

O mais longe que consegui chegar - e com muita pesquisa - é que GUANDIRÔ seria um demônio muito poderoso e bebedor de sangue, tendo sido expulso por Tupã para um lugar recôndito da floresta, onde quem penetra acabad sem nada nas veias. Me parece haver aí algo de catolicismo no meio (Deus mandando o diabo morar no inferno e pegar os pecadores, ou seja, aqueles que vão além do permitido), assim, a lenda pode ter sido criada ou mesmo modificada por índios já sob influência de missionários...

O interessante é que não há nenhuma descrição FÍSICA, por isso pude inventar-lhe a forma sem problemas mas hoje, relendo o conto, me parece uma versão tupiniquim de O Predador... :mrgreen: :mrgreen: :mrgreen: :mrgreen:




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#11 Mensagem por cabeça de martelo » Ter Out 02, 2012 10:50 am

LENDA DA TERRA DO ANJO
Antes, muito antes, tudo aquilo era um imenso areal. E só pescadores ali viviam em cabanas toscas que faziam frente ao rio. Um deles, já velho e cansado, sofria fundo desgosto. Desgosto que o matava lentamente. Desgosto que era toda a sua obsessão: o desgosto de não ter um filho... E nas noites longas de insónia, quando se encontrava em terra, na paz da sua humilde cabana, triste e silenciosa, o pobre velho pescador elevava as suas preces fervorosas à Mãe do Céu:
- Minha Nossa Senhora, por tudo vos peço que eu possa vir a ter um filho!... Fazei, Senhora, que eu encontre uma companheira e que essa companheira me dê um filho!... Ou fazei, ao menos, Virgem Santíssima, que eu encontre um menino sem família e que para fazer desse menino o meu filho...
Fazei, Senhora, o que vos peço, e eu vos darei em troca tudo o que me pedirdes!
Mas o tempo ia passando, e nada acontecia. Os amores passageiros do velho pescador resultavam inúteis para o seu sonho. Triste, cada vez mais desiludido, ele abria-se em confidências com o rio seu amigo:
- Ah, meu irmão rio... Creio que a Mãe do Céu não quer escutar, de modo algum, os meus rogos... Tu, sim, tu é que me compreendes, rio amigo e bom... As tuas águas são iguais às minhas lágrimas. Não secam, ficam sempre à mercê da vontade de Deus. E Deus não nos ouve. E Nossa Senhora não quer saber de nós...
Mas enganava-se. Certa manhã, ainda muito cedo, mal o Sol aparecera a dar os bons-dias à Terra, quando o velho pescador se preparava, como de costume, para descer o rio no seu barquito, tão velho e tão gasto como ele, descobriu qualquer coisa à superfície das águas que o deixou verdadeiramente atónito. Quase sem fala. Quase sem movimento.
E só daí a momentos conseguiu expandir o tumulto de alegria que lhe encharcava a alma.
- Valha-me Nossa Senhora!... Mas que estou eu a ver? Oh, meu Deus!...
Pois não é mesmo uma criança... um menino recém-nascido... a boiar sobre as águas... tal e qual como dizem que apareceu Moisés?... E erguendo as mãos ao céu gritou, excitado:
- Milagre! Milagre dos Céus! Este é com certeza o filho que sempre tenho pedido a Nossa Senhora... Obrigado, Virgem Santíssima, mil vezes obrigado!
Apressou-se a retirar das águas o recém-nascido, que o olhava, sorrindo.
O velho pescador abraçou-se a ele, a chorar. A chorar de alegria.
- Meu lindo menino!... Meu adorado menino Jesus!... E desde então, conforme se tem contado e recontado pelos tempos dos tempos, o velho pescador viu realizado o mais belo sonho da sua vida: tinha um filho!
Um filho que foi crescendo, que se fez rapaz, que um dia começou também a pescar nas águas do rio Vouga...
- Ah, meu filho, quando te vejo crescido, forte e saudável como és, lembro-me sempre da manhã em que te encontrei, a boiar aqui mesmo no rio...
O rapaz olhava-o admirado. Admirado e duvidoso.
- Mas eu apareci assim sem mais nem menos, meu pai?
O velho nem lhe respondia. Levantava os olhos ao céu e repetia o mesmo agradecimento de sempre:
- Foi um milagre! Um verdadeiro milagre de Nossa Senhora!
Mas um dia, o rapaz, hesita que hesita, resolveu pôr abertamente o problema que lhe torturava o cérebro.
- Se o pai não se aborrece, eu gostava... enfim, eu queria saber... quem foi minha mãe... como se chamava ela... onde vivia?...
O velho pescador baixou a cabeça. Apertou as mãos com força. Os seus olhos humedeceram-se.
- Olha, meu filho... tenho perguntado isso a mim próprio, muitas vezes...
e nunca encontrei resposta!
Calaram-se. Depois, vagamente, soturnamente, o velho repetiu num eco!
- Nunca encontrei resposta!
Olhou o filho. Viu-o triste, abatido, distante. Teve medo. Medo de que ele se afastasse, que fugisse. Aflito, buscou uma ideia. Como quem busca uma bóia de salvação.
- Talvez o senhor prior6 da cidade nos saiba dizer alguma coisa... Vamos lá hoje... Queres?
O rapaz voltou-se para ele. Parecia outro. Decidido e satisfeito, respondeu:
- Quero, sim, meu pai. Quero saber a verdade!
E nesse mesmo dia, depois de arrumados os apetrechos da pesca, lá foram de longada até à cidade, à procura do senhor prior, que tinha fama de saber muitas coisas que os outros homens não sabiam.
Mas, diante do estranho problema posto pelo velho pescador e por seu filho, o senhor prior limitou-se a sacudir a cabeça e a dizer:
- São desígnios do Altíssimo, meus filhos!... Que valemos nós, míseros humanos, para querermos descobrir os segredos de Deus?
Levou-os até à porta, de mansinho, e despediu-os com um sorriso de bondade.
- Segui a vossa vida e não penseis mais nisso. Deus e Sua Santa Mãe lá' sabem porque resolveram assim...
E o velho pescador e o seu filho voltaram à cabana tosca do areal. Agora ainda mais tristes, mais pensativos. Sem coragem para voltar a falar no assunto...
... Até que uma terrível epidemia caiu sobre todas as terras daquela região.
O próprio rio transformou-se por completo, revolvendo-se em fúrias insuspeitadas e invadindo os campos, numa ânsia brutal de destruição.
Parecia um castigo ou uma praga. A tranquilidade desapareceu, engolida pelo vapor. E a epidemia foi alastrando cada vez mais cruel. Cada vez mais mortífera.
A cabana tosca do velho pescador não escapou. O rapaz, que fizera prodígios para acudir aos que necessitavam, foi tocado também pela marca sinistra. Por tentar salvar a vida dos outros, a sua vida ficou em perigo.
Desesperado, o pobre velho gemia, à beira da enxerga onde o rapaz delirava com febre:
- Filho! Meu filho... porque não seguiste os meus conselhos... porque não te afastaste dos outros que já estavam contaminados?..
Com voz débil, arfando pesadamente, o rapaz somente podia dizer:
- Pai... era necessário salvá-los... Eu tinha de os salvar, meu pai!
Mas o velho pescador maI o ouvia. Ele gastava-se em preces e em interrogações. Interrogações que lhe doíam como se fossem chagas abertas.
- E agora que vou eu fazer?.. Agora que tu caíste também, que posso eu fazer?... Que devo eu fazer, meu Deus...
Passou por ali o senhor prior, na sua visita de conforto e alento aos que sofriam.
- Há que ter resignação, meus filhos!... Deus assim o quer... Lá tem as suas razões!
O velho pescador, porém, martelava insistentemente as mesmas palavras:
- Que devo eu fazer, senhor prior? Que posso eu fazer?
O sacerdote olhou-o fixamente. Colocou-lhe as mãos sobre os ombros, a acalmá-lo.
- Tem fé, homem!... Confia em Nossa Senhora, a quem tu pediste tanto para ter um filho...
E assim fez o pobre pescador. Logo que o padre saiu, continuando a sua viagem de cal vário, ele caiu de joelhos junto da enxerga, onde o filho parecia cada vez pior. De mãos apertadas com quanta força tinha, o velho pai gritou:
- Minha Nossa Senhora, vaIei-me!... Dai-me um sinal da Vossa presença!
E diz-se que, nesse mesmo instante, a porta da cabana tosca se abriu de par em par, e surgiu uma estranha figura de mulher envolta em neve.
Deixando um rasto de luz, ela avançou devagar e disse apenas:
- Aqui estou.
O pobre velho pescador escancarou os olhos cheios de espanto.
- Mas... Senhora... quem sois vós?
E ela respondeu com uma pergunta:
- Não chamaste por mim?
O velho estremeceu.
- Chamei, sim... chamei... Mas... mas não esperava... que Vós aparecêsseis assim... toda coberta de neve...
Ela sorriu. E quando sorriu a claridade tornou-se maior.
- É a neve da natureza, meu bom devoto!
O velho gaguejou nova pergunta:
- E... que vindes fazer, Senhora?
- Venho buscar o teu filho.
Calma, segura, doce mas imperativa, a resposta fê-lo desequilibrar-se e ficar prostrado aos pés de Nossa Senhora. Mesmo assim gritou, num acesso de revolta.
Como ? … Que dizeis .?
Com um simples gesto, ela ergueu-o suavemente. E suavemente lhe falou:
- Sim, venho buscar o teu filho... Não te lembras já da tua promessa?..
Pediste-me para eu te dar o filho que querias... E tu me darias depois o que eu quisesse... Recordas-te?
O velho pescador fez que sim com a cabeça.
- Pois eu venho buscar o teu filho... Ele vai para a Corte dos Céus, onde será um dos meus anjos. - O meu filho, Senhora?
Ela sorriu de novo. E de novo a luz se tomou mais forte.
- Sim, o teu filho, bom velho pescador... Ele ficará a ser o Anjo da Guarda desta terra! O olhar do pobre homem balançou entre a figura da Senhora e a enxerga onde mal distinguia a figura do filho, também a desfazer-se em luz.
Compreendeu então que já não lhe pertencia. E disse, num tom de resignação que mais parecia chorado que falado:
- Pois levai-o, Senhora... já que o quereis... Vós mo destes, vós mo tirais...
Anjo seja para todo o sempre! Anjo seja!
Rapidamente a notícia se propagou por todas as terras em redor. A epidemia começou a debelar-se, também com espantosa rapidez. E tal facto atribuiu-se desde logo à intervenção do filho do pescador, agora e para sempre anjo da guarda daquele lugar, junto de Nossa Senhora. Aliás, o pobre pai não se cansava de repetir.
- Acreditai, meus amigos... Foi Nossa Senhora das Neves que o veio buscar...ll Nossa Senhora das Neves! E ele agora está no Céu... Anjo seja o meu filho... o meu querido filho!... Anjo seja!
E, aos poucos, a mesma ideia foi-se enraizando no espírito das gentes que começaram a correr àquele local, como terra abençoada por Nossa Senhora. Assim nasceu uma povoação bonita e progressiva, onde fora apenas um areal imenso. E desde logo a nova terra ficou a chamar-se a Terra do Anjo Seja, até que se transformou na actual Angeja, a Terra do Anjo, ali, na margem direita do rio Vouga, apenas a nove quilómetros da estação de Aveiro.

In Lendas dos Nomes das Terras (parte II)
Gentil Marques e Bruno Santos




"Lá nos confins da Península Ibérica, existe um povo que não governa nem se deixa governar ”, Caio Júlio César, líder Militar Romano".

Portugal está morto e enterrado!!!

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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#12 Mensagem por Túlio » Ter Out 02, 2012 4:51 pm

BELÍSSIMA, HAMMERHEAD!!! :D :D :D :D


(((E mesmo sendo da terra de meu Avô, não a conhecia...)))




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#13 Mensagem por Wingate » Sáb Out 06, 2012 10:11 pm

Túlio escreveu:O mais longe que consegui chegar - e com muita pesquisa - é que GUANDIRÔ seria um demônio muito poderoso e bebedor de sangue, tendo sido expulso por Tupã para um lugar recôndito da floresta, onde quem penetra acabad sem nada nas veias. Me parece haver aí algo de catolicismo no meio (Deus mandando o diabo morar no inferno e pegar os pecadores, ou seja, aqueles que vão além do permitido), assim, a lenda pode ter sido criada ou mesmo modificada por índios já sob influência de missionários...

O interessante é que não há nenhuma descrição FÍSICA, por isso pude inventar-lhe a forma sem problemas mas hoje, relendo o conto, me parece uma versão tupiniquim de O Predador... :mrgreen: :mrgreen: :mrgreen: :mrgreen:
Túlio, e as lendas do Rio Grande do Sul (Salamanca do Jarau, São Sepé, Negrinho do Pastoreio...) :wink: ?

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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#14 Mensagem por Túlio » Sáb Out 06, 2012 10:29 pm

Todo mundo conhece, eu queria algo tipo Guerra do Paraguai, cupincha...)




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Re: LENDAS DO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

#15 Mensagem por prp » Dom Out 07, 2012 2:33 am

Todo mundo é muita gente.
O Brasil nao se resume ao Rio Grande do Sul não, viu túlio. :twisted:

Nunca ouvi falar em nenhuma dessas lendas ai.




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