Não faz muito tempo, um internauta nos questionou acerca da possibilidade (ou não) de se realizar licitações sigilosas.
A questão girava em torno de um ponto que colocamos em uma de nossas apresentações postadas no Scribd, a saber: “uma licitação, por definição, não pode ser sigilosa, mas detalhes técnicos de seu objeto podem”. E a pergunta de nossa colega era, exatamente, onde estava a sustentação legal para tal afirmação.
Vamos responder objetivamente a essa questão, ainda, mas antes é mister reforçarmos alguns pontos para contextualizarmos nossos pensamentos.
Primeiramente, que fique bem claro: não existe licitação sigilosa! O Art. 3º, § 3º, da Lei nº 8.666/93, é taxativo:
“A licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu procedimento, salvo quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura”.
Por outro lado, temos que lembrar que o processo de aquisição/obtenção de bens e serviços pela Administração Pública pode seguir apenas dois caminhos, em linhas gerais: ou há uma licitação ou não há uma licitação.
No caso de haver licitação, entram as modalidades tradicionais (concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão) previstas no Art. 22, da já citada lei, bem como as mais modernas (pregão presencial, pregão eletrônico, cotação eletrônica, registro de preços, etc.) estabelecidas em outros instrumentos legais. Neste ponto, vale observar que as modalidades modernas são entendidas como tais apenas em sentido amplo, já que a 8.666/93 não as declara explicitamente.
Já na hipótese de não haver licitação, entram os casos previstos nos art. 24 e 25 do Estatudo de Licitações e Contratos, ou seja, Dispensas e Inexigibilidades, respectivamente, que são pontuais (específicos). São as chamadas CONTRATAÇÕES DIRETAS.
O Art. 3º, § 3º, do já citado Estatuto, é taxativo, não há dúvidas. Porém, neste exato momento, apresentam-se alguns aspectos interessantes, entre os quais destacam-se:
A Lei 8.666/93, curiosamente, não define o termo “licitação”, de sorte que não sabemos se esta inclui, por exemplo, o modo de definição da necessidade, o de escolha de participantes (licitantes), do modus operandi administrativo, da contratação em si, da fiscalização, etc, ou se a licitação é um conceito genérico que diz respeito ao ato de buscar fornecedores, feito pela Administração Pública.
O texto do Art. 3º, § 3º, diz que “a licitação não será sigilosa [...]”. Ora, se a licitação não será sigilosa é por que se está falando dos casos em que há licitação, e não dos casos em que não há (contratação direta), já que não se pode falar de sigilo de algo que não existe (a licitação, no caso).
Este entendimento possível, apesar de cínico, só é plausível porque o relator usou a abordagem genérica da palavra “licitação”, referindo-se, provavelmente, ao procedimento de aquisição/obtenção como um todo, certamente considerado desde a definição da necessidade (que tem de ser a de atendimento de um fim público) até a contratação (incluídos, aí, os eventuais Termos Aditivos e Rescisão). Assim entendido, nota-se que, de fato, as licitações (genérico) têm de ser de conhecimento público.
Dito isto, fica claro que, genericamente falando, então, as licitações (entendidas como “a busca de fornecedores para o atendimento de alguma necessidade pública”), têm de ser de conhecimento da Sociedade, não importando se tal busca será por ritos tradicionais (modalidades tradicionais de licitação) ou modernos (“modalidades” no sentido ampliado, como pregão eletrônico, etc.).
Neste ponto, então, vê-se a conexão entre o ato de “dar conhecimento à Sociedade” e o princípio de Publicidade, o qual, por sua vez, é o contraponto óbvio do sigilo. Desse entendimento decorre, então, a obrigatoriedade de publicação em Diário Oficial, jornais de grande circulação, internet, sítios de transparência do TCU e da CGU, etc. Tudo isto no intuito de informar à Sociedade sobre todos os atos e fatos administrativos realizados em seu nome e, claro, em seu benefício. Acompanhamento e controle são as palavas-chave aqui.
Ocorre que o legislador acabou por esquecer de incluir, no corpo da 8.666/93, situações deveras importantes como, por exemplo: gastos da Presidência, da Vice-Presidência, de operações reservadas da Polícia Federal, de ações específicas ligadas ao MRE e, claro, de Defesa Nacional, entre outras. E aqui surgem outras questões: quais informações, exatamente, podem (ou não) ser publicadas? Toda e qualquer pessoa, de qualquer lugar e de qualquer jeito, do Brasil e do mundo, podem ter acesso a tudo de um procedimento licitatório? Parece claro que não.~
A título de exemplo, podemos citar as aquisições de Defesa como aviões de caça, mísseis, submarinos militares, entre outros, cujos detalhes técnicos não são publicados e/ou informados por nenhum governo (brasileiro ou estrangeiro), a despeito, obviamente, de estas aquisições, em linhas gerais, serem de amplo conhecimento mundial. Trata-se, nestes casos específicos, da sobrevivência e da integridade dos próprios Estados.
Juntando tudo isto, não por acaso, normalmente as situações que envolvem algum grau de sigilo acabam incluídas em situações de Dispensa ou Inexigibilidade de licitação, constantes dos já citados Arts. 24 e 25. Sintomaticamente, provavelmente esta é a razão de haver mais de 30 incisos no Art. 24 (dispensa).
Feita esta contextualização, então, finalmente podemos, objetivamente, entrar no mérito do sigilo de objetos licitados e seus detalhes técnicos. O Decreto nº 4.553, de 27 de dezembro de 2002, trata do tema questionado, uma vez que,
“dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração Pública Federal”.
Este decreto, em seu Art. 1º, define sua finalidade, a saber:
“Art. 1º Este Decreto disciplina a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos, bem como das áreas e instalações onde tramitam.”
Veja-se, ainda, o que diz o Art. 2º, do dito decreto, sobre quais dados e informações deverão ser considerados sigilosos e sua condição de acesso:
“ Art. 2º São considerados originariamente sigilosos, e serão como tal classificados, dados ou informações cujo conhecimento irrestrito ou divulgação possa acarretar qualquer risco à segurança da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Parágrafo único. O acesso a dados ou informações sigilosos é restrito e condicionado à necessidade de conhecer.”
Quanto ao Art. 3º, este, por sua vez, trata das “medidas especiais de segurança”, bem como responsabiliza os gestores públicos:
“Art. 3º A produção, manuseio, consulta, transmissão, manutenção e guarda de dados ou informações sigilosos observarão medidas especiais de segurança.
Parágrafo único. Toda autoridade responsável pelo trato de dados ou informações sigilosos providenciará para que o pessoal sob suas ordens conheça integralmente as medidas de segurança estabelecidas, zelando pelo seu fiel cumprimento.”
E, por fim, mas não por último, o Art. 4º, com importantes conceitos e definições, dos quais destacamos os de “credencial de segurança” e de “necessidade de conhecer”:
“ Art. 4º Para os efeitos deste Decreto, são estabelecidos os seguintes conceitos e definições:
[...]
IV - credencial de segurança: certificado, concedido por autoridade competente, que habilita determinada pessoa a ter acesso a dados ou informações em diferentes graus de sigilo;
[...]
XIII - necessidade de conhecer: condição pessoal, inerente ao efetivo exercício de cargo, função, emprego ou atividade, indispensável para que uma pessoa possuidora de credencial de segurança, tenha acesso a dados ou informações sigilosos;”
Assim conclui-se, como se observa, que as autoridades competentes podem e devem aplicar medidas de salvaguarda de informações de caráter sigiloso, o que de forma alguma se contrapõe à necessidade de dar conhecimento à Sociedade sobre o que se está a fazer com o dinheiro público.
*Diógenes Lima Neto é formado em Administração Pública, com ênfase em Ciências da Logística, pela AFA. Possui mestrado em Ciência da Computação pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica - ITA, e MBA em Administração Financeira e Mercado de Capitais pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-DF. Atualmente, está concluindo seu mestrado em Administração Pública pela Universidade do Minho, em Portugal.