Segue o terceiro (décimo terceiro do livro).
Em nossa defesa.
A audiência, antes agitada e ruidosa, agora estava quieta, prestando atenção ao que diria em seguida o juiz número três naquela fase final do julgamento. Estava claro para mim que nossa situação enquanto réus não era nada boa, pois como advogado de defesa eu não havia até aquele momento conseguido apresentar nenhuma evidência sustentável que justificasse nossas ações e esta seria a minha última chance da tentar algum argumento novo antes que o veredicto fosse proferido. Mas primeiro os juízes dois e três iriam apresentar o resumo final das acusações, e este procedimento se iniciava naquele instante. Dirigindo-se diretamente para mim, o terceiro juiz perguntou:
- Na condição de representante do seu povo, você nega que por exploração desenfreada dos recursos naturais, consumo exagerado das fontes de energia não renováveis, modificação irresponsável da cobertura vegetal, liberação descuidada de resíduos tóxicos no ambiente e outras ações correlatas, todas elas consideradas crimes pelas leis da comunidade galáctica, vocês colocaram em risco o equilíbrio ecológico de seu planeta de origem, com prejuízos não só para sua própria raça mas também para as demais espécies que co-habitam o seu mundo?
- Não, senhor juiz, não nego. – Respondi de forma resoluta, pois não queria deixar transparecer que tivesse alguma dúvida ou sentisse qualquer nervosismo. Não neste momento, quando abria mão intencionalmente da última possibilidade de defesa com relação a estas acusações. E com a minha resposta um forte burburinho percorreu o grande salão, apinhado com uma numerosa audiência composta por centenas de indivíduos pertencentes a mais de quarenta diferentes raças inteligentes que habitam a nossa vizinhança estelar. Ao longo das últimas semanas o tribunal já havia explorado em detalhes todas aquelas questões, mostrando exaustivas evidências dos atos extremamente condenáveis executados pelos habitantes do nosso planeta, e como representante de nossa raça eu não havia ainda conseguido apresentar nenhum argumento que desmentisse, explicasse ou justificasse nenhum deles. Portanto, ninguém realmente esperava que àquela altura eu fosse tentar alegar inocência, mas ouvir da minha própria boca que acusações tão sérias eram aceitas sem questionamentos não deixava de ser chocante para todos aqueles membros de raças muito mais antigas, avançadas e responsáveis do que a nossa própria.
É claro que eu tinha consciência de que toda a audiência de alienígenas estava contra mim, mas não podia me dar ao luxo de deixar que isso me incomodasse. Quando a mensagem chegou das estrelas informando que a população de todo o nosso planeta seria julgada por um insuspeitado tribunal interestelar, acusada de uma série de ações que eram consideradas crimes por uma comunidade galáctica que nem se sabia que existia, tinha ficado bem claro que não haveria nenhum tipo de júri popular ou qualquer coisa do gênero. As regras enviadas para nosso conhecimento na condição de acusados, de forma a nos permitir fazer e preparação da defesa, estabeleciam claramente que apenas os três juízes indicados decidiriam a culpabilidade dos réus, bem como a sentença que seria aplicada. E não caberia apelação após proferido o veredicto final. Nós teríamos o direito de indicar um e apenas um representante para apresentar nossa defesa, e também haveria apenas um único promotor de acusação. Este promotor pertenceria a alguma das raças já integradas à comunidade interestelar e os três juízes a outra, esta das mais antigas e sábias daquela organização multi-espécies que administrava a justiça na galáxia. Tanto o representante dos réus quanto o promotor alienígena teriam várias oportunidades para apresentar seus argumentos, e apenas após esgotadas todas as possibilidades de debate os juízes confirmariam quais acusações finais nos seriam imputadas. Nós ainda teríamos uma última chance de questioná-las, e então os juízes dariam o seu veredicto final. Uma audiência de interessados provindos de vários mundos da comunidade galáctica poderia acompanhar os trabalhos, até para garantir que os procedimentos fossem seguidos da forma mais correta possível, mas ela não teria nenhuma influência direta sobre o resultado do julgamento. Estas eram as instruções.
Um ano completo se passou entre o recebimento da intimação, na verdade a primeira mensagem inteligente recebida em toda a nossa história provinda de uma outra civilização no espaço, e o início do julgamento. Os vários governos do mundo tentaram durante algum tempo decidir qual seria o melhor representante para comparecer perante os juízes que iriam decidir o destino de toda a nossa raça, e após analisarem propostas de se enviar diplomatas de carreira, religiosos e até mesmo militares, no final acabaram decidindo enviar um advogado que possuísse ampla experiência em processos criminais. E escolheram um que tinha comprovada competência, garantida por um longo histórico como defensor bem sucedido em alguns dos mais difíceis casos de que se tinha notícia. Eu fui o escolhido.
Nos meses seguintes tive que trabalhar pesadamente para preparara nossa defesa, e por consenso foi decidido que eu basearia minha argumentação nas informações recebidas por historiadores, cientistas e todos aqueles que tivessem alguma contribuição relevante a oferecer, já que sou apenas um advogado e tinha um conhecimento limitado sobre vários assuntos relevantes ao processo. Estudei tudo o que podia ser aprendido sobre nossa história antiga e recente, bem como sobre o funcionamento de nossa tecnologia e a estrutura social e política das várias nações do nosso planeta. E amarrei todas estas informações no que eu achei ser uma sólida argumentação que justificava as ações tanto da nossa população como dos dirigentes de todos os países mais importantes. E para o caso deste argumento não funcionar montei também um arrazoado alternativo, que buscava isentar a geração atual de qualquer responsabilidade lançando a culpa sobre as gerações anteriores e já passadas. Este seria meu “plano B”. A revisão dos argumentos e documentos que eu apresentaria tomou as últimas semanas disponíveis para minha preparação, e no final de um ano exato de recebida a mensagem de intimação uma nave alienígena veio me buscar como havia sido informado, para que o julgamento pudesse ser iniciado. A partir daí eu estava completamente sozinho.
Fui levado até uma enorme nave-tribunal em um sistema estelar distante, e lá fui introduzido no tribunal interestelar e apresentado formalmente aos juízes e ao promotor público. E o julgamento então teve início. Por várias semanas o promotor apresentou detalhadamente perante os juízes e a audiência alienígena as histórias de exploração e devastação de nosso mundo, enquanto eu tentava sem sucesso demonstrar que estas ações, além de não terem sido tão destrutivas quanto alegado, eram também inevitáveis para a garantia do bem estar da crescente população do nosso planeta. Mas desde o início ficou claro para mim que esta era uma causa perdida. O promotor mostrava-se o tempo todo muito hábil não apenas em descrever da forma a mais desagradável possível os atos destrutivos perpetrados por nossa raça, mas também em apresentar ações alternativas que poderiam ter sido tomadas para evitar ou corrigir o mal causado, e que estavam perfeitamente acessíveis a raças com o mesmo nível de desenvolvimento tecnológico que o nosso. Tentei argumentar em nossa defesa que embora possíveis, aquelas formas alternativas de tecnologia e procedimentos não haviam sido desenvolvidas por nosso povo e que, portanto, não as conhecíamos e não podíamos ser imputados de nenhum outro crime além da simples ignorância. Mas esta argumentação foi eficientemente bloqueada pela apresentação por parte do promotor de diversos casos em que nossos cientista e líderes, quando colocados diante de problemas ainda mais complexos ao longo do nosso desenvolvimento, haviam utilizado sua excelente capacidade de idealização para encontrar a solução de diversos outros problemas nos campos da produção de energia, dos transportes, das comunicações, da medicina e até mesmo na área militar. Mas as soluções que permitiriam nosso desenvolvimento sem as agressões concomitantes efetuadas contra a natureza de nosso mundo haviam sempre sido ignoradas, ou mesmo ativamente suprimidas em nome do lucro de uns poucos indivíduos e instituições.
Ficou claro para mim que eu não havia realmente recebido todas as informações de que precisaria, muito tinha sido escondido pelas nossas maiores autoridades. Mas de alguma forma o promotor havia tido acesso a tudo aquilo, o que me deixava em enorme desvantagem. Além disso, ele tinha muitos anos de experiência em causas daquele tipo, tendo participado de vários outros julgamentos similares por toda a galáxia, enquanto para mim tudo aquilo era uma grande novidade. Imagine minha situação: Sozinho, em um salão abarrotado com as criaturas mais bizarras que se pode imaginar, algumas delas verdadeiramente assustadoras, e discutindo com uma das mais bizarras dentre elas sobre questões legais as quais eu jamais poderia imaginar apenas um ano antes. Mesmo que a causa não fosse tão difícil aquilo já seria um verdadeiro pesadelo, e para completar eu havia recebido somente informações parciais sobre algumas das questões mais importantes. E agora não tinha ninguém a quem recorrer!
Em uma tentativa já desesperada de encontrar alguma linha de argumentação que funcionasse eu estudei ainda com mais cuidado minha própria estratégia à luz da linha de raciocínio que percebi ser a escolhida por meu oponente, e constatei que não havia a menor chance de vencer a causa por ali. Se eu mesmo fosse o juiz do caso daria ganho de causa à promotoria contra os réus, e imporia uma pesada pena contra eles. E quando pensei que a situação não poderia piorar, ela se tornou ainda mais complicada. Eu sabia, é claro, que nas últimas décadas haviam sido lançadas de nosso mundo as primeiras equipes de astronautas para outros planetas situados em sistemas estelares mais próximos do nosso e que possuíam ecossistemas vivos, e agora descobria, na verdade sem muita surpresa, que nestes planetas os exploradores repetiram ações predatórias do mesmo tipo que as já descritas ao longo do julgamento com relação ao nosso mundo natal. De fato, mais tarde fui informado que estes eventos haviam sido a causa principal da convocação do tribunal em si, pois a destruição da natureza de seu próprio mundo era considerada um dos mais sérios crimes que uma raça inteligente podia cometer, mas um processo judicial somente podia ser aberto caso os próprios habitantes do planeta afetado solicitassem isso junto ao tribunal interestelar. Porém, causar sérios danos aos ecossistemas de outros mundos era um crime ainda mais grave, e nestes casos o tribunal era obrigado a intervir por sua própria iniciativa pelo bem da comunidade galáctica. E fora exatamente isto que ele fizera. Quando o julgamento já passava da metade o segundo juiz anunciou que em breve se iniciariam as apresentações das acusações relativas exatamente a estes crimes, e a forma como naquele momento o promotor público olhou para mim com seus seis grandes olhos pedunculares deixou bem claro que ele tinha argumentos ainda mais contundentes para exibir com relação a estas novas ações cometidas por nossa civilização. Isto piorava muito a situação, já que a argumentação alternativa que eu havia imaginado certamente não funcionaria neste caso. A exploração interestelar era uma realização justamente da geração atual do nosso povo, e tentar imputar estes últimos crimes às gerações mais antigas seria simplesmente ridículo. Eu não tinha mais alternativas de argumentação.
A situação da nossa causa estava realmente muito ruim, e se eu insistisse na estratégia de defesa convencional que vinha seguindo ela pioraria ainda mais. Caso quisesse evitar o pior, teria que tentar alguma das grandes manobras totalmente não ortodoxas que tinham me tornado famoso nas cortes penais, e que me levaram a ser escolhido para nos defender naquele extraordinário julgamento.
É fato que tenho uma grande experiência em tribunais, e naquele momento ela me dizia que eu precisava parar de tentar elaborar a defesa baseando-me nas informações que havia acumulado e organizado ainda antes de sair de nosso mundo, durante a preparação para o julgamento, e tentar uma abordagem totalmente nova. Assim, nas semanas que faltavam até o encerramento dos trabalhos eu passei a utilizar as facilidades de acesso a informações e notícias de toda a galáxia que estavam à minha disposição na nave tribunal para estudar as características e a história dos próprios juízes escolhidos para o caso, bem como da raça a qual eles pertenciam. E, enquanto o julgamento ainda prosseguia, eu fazia descobertas muito interessantes... .
Como anunciado, o promotor público lançou em alguns dias as principais acusações relativas às ações dos nossos exploradores em outros mundos que não o nosso próprio. Ele descreveu algumas intervenções desastradas em ecossistemas delicados sem que conhecimentos suficientes tivessem sido adquiridos previamente para prevenir eventuais problemas, a introdução de microorganismos, animais e plantas alienígenas que tornaram-se pragas destruidoras em outros mundos, a alteração propositada do meio ambiente de planetas com ecossistemas exóticos para que se adequassem melhor ao conforto dos nossos colonizadores e vários episódios de pouco respeito com relação às formas de vida nativas de mundos de natureza exuberante e intocada, prejudicadas por nossa corrida desenfreada atrás de recursos e riquezas. E em cada caso eu simplesmente aceitei as acusações lançadas por ele, retrucando apenas quando eram cometidos flagrantes exageros que faziam as ações dos nossos astronautas parecerem muito piores do que realmente haviam sido. Eu estava perfeitamente ciente de que a falta de uma defesa ativa contra todas estas graves acusações deixava a nossa situação enquanto réus mais complicada do que nunca, mas de certa forma minha quase inatividade nesta etapa decisiva do julgamento acabou tendo um efeito benéfico. Eu não teria mesmo conseguido apresentar nenhum argumento eficaz em nosso favor, por mais que tentasse, mas o fato de nem mesmo ter permitido o início de qualquer debate evitou as discussões nas quais o promotor esperava poder aprofundar ainda mais sua argumentação, exibindo os detalhes mais escabrosos de que tinha conhecimento, muitos dos quais eram completamente desconhecidos por mim. Ao final de tudo nossa situação era muito ruim, mas não tão ruim quanto poderia ser se os debates tivessem seguido o curso normal esperado pelo promotor. Ele não havia podido apresentar o seu show como havia programado e esperado, e pelo menos esta pequena vitória eu havia conseguido.
E então chegou o dia final do julgamento. Após meses de debates e discussões eu consegui apenas que uma ou outra acusação menor fosse retirada ou modificada, e como comentei anteriormente o terceiro juiz já havia apresentado o último resumo das acusações finais que permaneciam contra nossa raça com relação aos atos cometidos em nosso próprio planeta natal. Agora era a vez do segundo juiz, que tomou a palavra após a audiência se acalmar e o burburinho diminuir:
- Na condição de representante do seu povo, você nega terem invadido outros mundos que ainda sequer lhes haviam sido concedidos por direito, e perpetrado neles diversos atos causadores de grandes prejuízos à fauna, flora e meio ambiente locais, como a introdução de espécies alienígenas que se propagaram fora de controle, a destruição de ecossistemas ainda desconhecidos para a extração de recursos naturais, e a mudança deliberada do equilíbrio biofísico tendo em vista a adaptação do ambiente para seus próprios organismos, com resultados catastróficos para as espécies locais as quais estavam sob sua responsabilidade e deveriam segundo as leis galácticas ter sido protegidas de quaisquer efeitos nefastos de suas ações nestes mundos?
- Não, eu não nego meritíssimo. – Respondi simplesmente, pois não havia nada mais que eu pudesse fazer.
E novamente a audiência do julgamento manifestou com exclamações e cochichos o seu espanto, incredulidade e reprovação pela aceitação sem contestações por minha parte destas gravíssimas acusações que eram feitas contra nós. O burburinho no grande salão do tribunal foi ainda maior que após a apresentação das acusações anteriores e a minha respectiva resposta, porque agora as penas cabíveis podiam também ser muito mais severas. O próprio primeiro juiz, que comandava o julgamento, teve que intervir através do sistema coletivo de som para fazer com que todos se acalmassem, e voltou-se em seguida para mim, parecendo realmente incrédulo e sinceramente preocupado ante minha aceitação passiva de tão terríveis acusações.
-Senhor representante da defesa, tem certeza de que estudou e compreendeu realmente todos os documentos que continham as instruções sobre este julgamento, que foram enviados por mensagens de rádio para o seu planeta com um ano de antecipação? Pergunto isso porque ao aceitar sem contestação as acusações do segundo juiz o senhor deixa pouca escolha a este tribunal senão considerá-los culpados de todas elas, e as penas cabíveis podem ser muito graves!
Por um longo momento eu ponderei sobre as palavras do juiz principal. Eu havia sim estudado com muito cuidado todas as informações recebidas da comunidade galáctica sobre o sistema legal que embasaria o processo, e sabia todos os detalhes sobre as possíveis penas que uma raça considerada culpada poderia receber. Segundo a lei interestelar, os prejuízos causados por um povo ao seu próprio mundo podem implicar em penas de restrição de acesso a determinadas áreas de seu planeta, visando à preservação dos ecossistemas mais representativos, a proibição do uso de determinadas tecnologias que causem excessivo impacto ambiental negativo e até mesmo o pagamento de indenizações para a comunidade galáctica, que teria que utilizar de seus recursos tecnológicos avançados para reverter os danos mais sérios já causados à biosfera, cujos efeitos não pudessem ser revertidos de forma natural. Mas os estragos que uma raça causasse a outros mundos que não o seu implicavam em penalidades muito mais severas, que nos casos mais graves poderiam chegar à absoluta interdição dos vôos interestelares, à proibição total de vôos espaciais tripulados e o isolamento completo da raça em seu próprio planeta, ou até mesmo a completa eliminação de sua civilização, caso o tribunal julgasse que ela representava uma ameaça incorrigível a outras formas de vida inteligente da galáxia.
Eu tinha certeza de que no nosso caso esta última e mais grave penalidade não seria aplicável, pois ela era restrita apenas às raças que seguidamente atacassem outras criaturas dotadas de inteligência, e nenhuma forma de vida inteligente havia sequer sido encontrada pelos nossos exploradores antes do recebimento da mensagem informando sobre o julgamento. Mas outras penas também muito severas poderiam ser aplicadas, sendo a proibição das viagens espaciais e o isolamento total as piores delas. Imagine nosso povo condenado a abdicar da grande aventura espacial que já havíamos iniciado, e ainda por cima sabendo que miríades de outras raças estariam explorando a galáxia que nos seria proibida. E poderiam ainda ser aplicadas em paralelo a interdição de diversas regiões do nosso próprio planeta, e efetuada a cobrança de indenizações para a reparação dos danos. Estes eram riscos muito reais, e como advogado eu precisava ponderar com bastante cuidado até que ponto a nova estratégia que estava adotando após minhas pesquisas sobre os juízes do caso, de aceitar as acusações sem contestação, podia realmente ser a mais correta. Ainda seria possível tentar questionar algumas das acusações ou minimizar seu impacto, embora a argumentação a nosso favor fosse muito fraca. E pensando nisso eu olhei brevemente para o promotor público, percebendo que ele apoiava todas as suas oito pernas em seu assento e mantinha os tentáculos largados displicentemente sobre a mesa, em uma tentativa de aparentar certo ar de distanciamento. Mas estava inclinado para frente com todos músculos do seu cefalotórax retesados, e dois de seus seis olhos virados discretamente na minha direção. Era a posição de um predador de tocaia, à espreita de uma presa que ele sabia estar quase ao seu alcance. Isto me fez tomar minha decisão.
- Senhor juiz, eu confirmo ter estudado toda a documentação enviada e estar ciente de todas as implicações possíveis deste processo contra meu povo. E reafirmo que aceito sem questionamentos todas as últimas acusações apresentadas pelo terceiro e o segundo juízes. – Respondi, decidindo manter a nova estratégia que havia escolhido após perceber o quanto minha argumentação era fraca quando comparada à do promotor, e ter estudado mais a fundo a raça dos próprios seres que haviam sido encarregados de julgar os atos de nossa espécie. Agora não haveria mais como voltar atrás.
Enquanto a audiência mais uma vez enchia o tribunal com murmúrios e exclamações espantadas e indignadas, eu aproveitei para relancear um olhar sobre o promotor, e reparei que ele estava com os tentáculos cruzados em volta do corpo e os olhos baixos, e que balançava lentamente o corpo para ambos os lados. Embora eu não conhecesse o significado dos gestos típicos daquela raça, adivinhei corretamente que meu adversário não estava nada feliz por eu ter-lhe negado sua última chance de argumentação, que o permitiria complicar ainda mais a situação para nosso povo. Engoli em seco, mas conclui que a estratégia que eu havia escolhido era de fato a melhor para nós, ou pelo menos a de menor risco, apesar de saber que uma condenação seria com certeza inevitável. Agora era aguardar a conclusão da preleção final do promotor para fazer a minha própria, da forma como havia imaginado, e esperar que aquilo que eu aprendera sobre os juízes estivesse realmente correto.
Chamado pelo primeiro juiz assim que a audiência se acalmou, o promotor público iniciou a sua preleção. Para mim foi logo ficando claro que grande parte do que ele dizia estava sendo alterado de improviso, já que lhe havia sido negada a chance de expor de forma mais contundente sua versão sobre as ações do nosso povo. A criatura de seis olhos havia elaborado e ensaiado um discurso apaixonado sobre a natureza aviltada de mundos indefesos, violentados pela sanha destruidora daquela raça gananciosa e irresponsável que estava sendo julgada, que com certeza teria impressionado a audiência e os próprios juízes. A maior parte do seu texto com certeza deveria enfatizar fatos e eventos que ele planejava ter apresentado e esclarecido durante suas réplicas à minha argumentação de defesa, mas como eu havia me negado a argumentar ele não pudera levantar os pontos que planejara. E agora não podia mais mencioná-los, sob pena de tornar sua preleção longa demais, confusa, enfadonha e forçada. Eu não consegui suprimir um pequeno sorriso enquanto o promotor encerrava seu discurso, que acabara soando desconexo e pouco convincente.
Mas agora era minha vez. Chegara o momento em que eu teria que jogar minha última cartada, e ver se ela teria realmente o efeito que eu imaginava.
O primeiro juiz solicitou formalmente o silêncio da audiência, o que na verdade era totalmente desnecessário já que todos na grande sala estavam absolutamente quietos e completamente concentrados em ouvir o que eu diria, e indicou que eu deveria fazer minha última preleção ao tribunal:
- Senhor representante da defesa, - Disse ele solenemente. – Quais as suas declarações finais a este tribunal com relação às acusações apresentadas, e a todas as provas relativas a elas que foram aqui mostradas contra a sua raça, desde o início deste julgamento?
- Meritíssimo primeiro juiz, desejo dizer apenas algumas poucas palavras. Aceito sem restrições todas as últimas acusações apresentadas pelos juízes dois e três, mas declaro aqui o seguinte: Aquele que não tiver pecado, que atire a primeira pedra. – E dizendo isso me sentei, encerrando a mais curta preleção já apresentada perante o tribunal interestelar em toda a história da galáxia!
Um profundo silêncio se seguiu às minhas palavras. A audiência ficou quieta, pois estava atônita e não conseguia atinar com o sentido do que eu havia dito. Através do tradutor universal que estava usando eu podia perceber os sussurros de exclamações como: “Que história é esta de atirar pedras?”, e “o que é afinal de contas um pecado”? O promotor público alienígena também estava de boca aberta, sem entender o sentido daquilo. Porque eu não fizera nenhuma tentativa de pedir desculpas ou de apresentar uma última justificativa, e nem mesmo um pedido de clemência? E quem havia falado em atirar pedras afinal, o que significava isso? Pela expressão meio desvairada dos seus seis olhos dava até para adivinhar o que se passava na mente dele: “Será que o advogado de defesa enlouqueceu completamente”?
Mas no meio da agitação os três juízes olhavam fixamente para meu conjunto ótico multifacetado, calados. Eles sim sabiam o que eu queria dizer, e o que a expressão que eu havia utilizado significava.
Ela havia sido proferida há mais de três mil e quinhentos anos por um indivíduo nascido do planeta de origem da espécie deles, que era conhecida como raça humana. E as palavras dele, estas e muitas outras, tinham durante mais de dois mil anos sido ignoradas ou pior, adulteradas para justificar os mais terríveis atos de barbarismo daquele povo contra seus próprios semelhantes, a natureza de seu mundo e mesmo a de outros mundos que os humanos haviam alcançado em suas naves estelares. Apenas cerca de mil anos atrás os homens do planeta Terra tinham finalmente aprendido a controlar seus impulsos e medos, e só então os ensinamentos daquele indivíduo haviam sido compreendidos e aceitos por todos os seres daquela raça, e junto com outras espécies também já evoluídas a humanidade havia ajudado a criar a mesma comunidade galáctica que agora se achava no direito de julgar os atos da raça jovem, inexperiente e afoita à qual nós pertencemos.
Deixando de me encarar os três juízes olharam uns para os outros longamente, e depois novamente para meu complexo multifacetado de olhos, e eu os encarei de volta sem mostrar nenhuma revolta ou hostilidade, mas também sem deixar transparecer nenhum medo ou receio. E eles encerraram os trabalhos do tribunal naquele dia, recolhendo-se para definir o veredicto e a sentença a ser aplicada, que seriam apresentados logo cedo na manhã seguinte.
Nossa raça foi considerada culpada, é claro, não havia como ser diferente. Mas para surpresa da audiência e do promotor público, nós nos safamos com apenas uma pena leve, o equivalente interestelar à prestação de serviços comunitários, além da promessa de que os atos que levaram à realização daquele julgamento não mais se repetiriam.
E como vocês já sabem, esta foi a decisão daquele tribunal, e assim se realizou.
Leandro G. Card