Uma comandante de navio que não sabia nadar
Primeira mulher à frente de um petroleiro na Marinha Mercante brasileira só aprendeu a nadar 15 dias antes do teste final - Flavia Salme, iG Rio
Houve um tempo em que mulheres em um navio eram sinal de má sorte, um imã para desastres. Mas, na Marinha Mercante do Brasil, essa superstição já era. A paraense Hildelene Lobato Bahia, 37 anos, não só cruza os mares em navios de bandeira brasileira como, desde 2009, é comandante de frota. No último dia 1º de julho ela foi novamente escolhida para uma missão inovadora: estará no timão do navio-tanque Rômulo Almeida – que apesar de inaugurado ainda está no estaleiro para demandas da Transpetro – tendo como imediato (o segundo na hierarquia) outra mulher, Vanessa Cunha. Será a primeira vez no Brasil que os dois primeiros cargos à frente de um navio da Marinha Mercante terão ocupantes femininas.
Para dimensionar a responsabilidade da moça, basta saber que o Rômulo Almeida mede 183 metros de comprimento (o equivalente a um prédio de 60 andares ou a dois campos de futebol, na medida mínima, mas oficial) e, além de grande, é pesado: 48,3 mil toneladas de porte bruto. O petroleiro será usado para o transporte de derivados claros de petróleo, como gasolina e diesel.
Durante as viagens, que ainda não foram marcadas, a comandante Hildelene – que tem pouco mais de 1,50 metro de altura – dormirá em um camarote com cerca de seis metros quadrados, com cama, armário, box e banheiro. Também dispõe de uma cabine com aproximadamente 18 metros quadrados com mesa de reunião, frigobar, TV e aparelho de DVD, além de espaço para computador, claro. Flamenguista, Hildelene gosta de assistir a partidas de futebol após o fim do expediente. O que não abre mão mesmo é da Bíblia, um kit de manicure e uma boa reserva de CDs e DVDs. Flores são bem-vindas, ela gosta muito.
A comandante Hildelene, 37 anos, seguiu a carreira por acaso – do destino, ao que tudo indica. Ela queria fazer jus ao diploma de ciências contábeis da Universidade Federal do Paraná até seu irmão tentar a carreira de marítimo. Como as vagas do concurso para oficiais do sexo feminino foram abertas naquele ano, 1997, ela se inscreveu para incentivar o caçula. “Para minha surpresa meu irmão foi eliminado e eu, aprovada”, conta. Eram três eliminatórias entre elas, uma prova de natação. “Foi o maior desafio, não sabia nadar. Aprendi em 15 dias”, lembra.
O Rômulo Almeida é o novo desafio da comandante
Embora o processo seletivo não seja um concurso público – a Escola de Formação de Oficiais habilita os alunos para a iniciativa privada – os salários atraem. Segundo a Transpetro, cargos de nível superior “oportunidades de maior demanda hoje entre os marítimos” (comandante, chefe de máquinas e imediato, por exemplo) pagam salários que variam de R$ 7 mil a R$ 20 mil. Os de nível técnico (principalmente eletricistas e mecânicos) entre R$ 6,5 mil a R$ 8,5 mil; nível básico (ensino fundamental), R$ 3,3 mil e R$ 5,5 mil.
Casada com um colega de profissão (ela ainda não tem filhos), a comandante Hildelene diz que já ficou até quatro meses longe do marido. “Trabalhamos em regimes diferentes, mas quando tem a oportunidade ele embarca como passageiro”.
Conheça um pouco mais da comandante Hildelene Bahia.
iG: Como é a vida no mar?
Hildelene: Acho que a maior dificuldade é lidar com a solidão. Tento enfrentá-la com dedicação ao trabalho no dia a dia. A bordo tenho a companhia de todos os tripulantes, conversamos bastante e a integração é muito boa. Aproveito as minhas horas de folga para ler um bom livro ou assistir um filme. Assim que desembarco, programo viagens com a minha família. Tenho a sensação de que me desligo no momento em que deixo o navio, passo a ser mulher, esposa, dona de casa e filha.
iG: A senhora é formada em ciências contábeis. Por que ingressou na Marinha Mercante?
Hildelene: Em 1997 abriram vagas do concurso para oficiais do sexo feminino no Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar (Ciaba), no Pará. Como incentivo ao meu irmão, que tinha o sonho de entrar na Marinha Mercante, fiz a prova. Confesso que achava que tinha sido eliminada na primeira etapa, devido à falta de tempo para os estudos. À noite, cursava o 3° ano de Ciências Contábeis na Universidade Federal do Pará e estagiava pela manhã na Caixa Econômica Federal e, à tarde, na Sudam. Também me preparava para outro concurso (Tribunal Regional do Trabalho de Belém).
Pra minha surpresa, meu irmão foi eliminado e eu, aprovada. O maior desafio foi a prova de natação, pois não sabia nadar. Procurei meu antigo professor de educação física e aprendi em 15 dias. Fui a primeira colocada e depois, na escola, devido ao desempenho, passei a fazer parte do atletismo.
iG: Foi difícil chegar em casa e comunicar aos seus pais que mudaria de profissão?
Hildelene: Venho de uma família muito humilde, estudava e trabalhava o dia todo (eram dois estágios, saía de casa às 6h30 e só chegava depois das 23h) e a remuneração era muito baixa. Expliquei o que é a formação de um oficial mercante e a preocupação dos meus pais era somente o fato de passar vários meses fora de casa, em viagens pelo Brasil e exterior. Até hoje minha mãe fica aos prantos se fico mais de três dias sem ligar. Meu pai se tornou um dos meus maiores incentivadores e meu fã, guarda todas as reportagens sobre a minha carreira.
iG: Como é a formação de marítimo? Alguma disciplina lhe causou medo?
Hildelene: A formação durou três anos, entre 1997 e 2000. A grade curricular é um pouco extensa: português, inglês em vários níveis, matemática, física, básico de navegação, navegação astronômica, instalações de máquinas, primeiros socorros básicos e avançados, contabilidade, administração, recursos humanos etc. A disciplina que causou pânico foi a de sobrevivência pessoal, pois estava me recuperando de uma fratura no pé e tive que saltar de uma plataforma de 12 metros.
iG: Quando a senhora chegou à conclusão de que seguiria na carreira de marítima?
Hildelene: Em 1998, depois de um ano na escola, fiz o meu primeiro embarque para opção de curso no navio Lindóia, da Transpetro. Senti que na Marinha Mercante poderia conquistar todos os meus objetivos pessoais e profissionais. Pesou também o fato de conhecer as dificuldades do mercado de trabalho, de estar próxima de me formar e ter uma remuneração muito baixa, além da concorrência muito grande na área de ciências contábeis.
iG: Qual foi a viagem mais longa que a senhora já fez?
Hildelene: Foi para Cingapura. Foram mais de 42 dias de travessia. A maior dificuldade é a duração do trajeto.
iG: Como se dorme no navio? Há alojamentos diferentes para homens e mulheres?
Hildelene: Não há diferenciação de camarote para homens e mulheres. Todos os oficiais e suboficiais possuem banheiros individuais. Somente alguns tripulantes da guarnição (mesmo sexo) dividem banheiro. O camarote do comandante possui algumas particularidades, como sala de reunião, pois ele é o gerente a bordo e responsável em receber as autoridades marítimas.
iG: A senhora foi até o Bahrein (Golfo Pérsico)? Teve algo de inusitado na viagem?
Hildelene: Foi uma grande surpresa, um país muito quente, cerca de 50 graus, e padrões de vida e costumes totalmente diferentes dos nossos. No início (os muçulmanos) paravam para ver uma mulher “dando ordens” dentro de um navio, mas no final tornou-se normal.
iG: Durante as aulas no Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar (Ciaba) enfrentou preconceito por ser mulher?
Hildelene: Fizeram várias adaptações no Ciaba para entrada do quadro feminino. Inicialmente, ficávamos alojadas no prédio do comando e quatro mulheres dividiam
três camarotes, com um banheiro cada. A rotina era igual a dos meninos, tínhamos as mesmas exigências. Não chegou a haver discriminação, mas pelo fato de fazer parte da primeira turma de mulheres, os holofotes sempre ficavam voltados para nós, devido ao fato histórico que estávamos vivendo. Aquilo provocava certo ciúme em grande parte dos homens da nossa turma. Eles diziam que éramos "cafiadas", termo usado na Marinha para quem possui privilégios.
iG: Como foi o processo que resultou em sua promoção a segundo e primeiro piloto?
Hildelene: Dois anos de experiência no mar (não inclui férias e período de repouso em casa).
iG: Seu marido também é marítimo. Como o romance começou?
Hildelene: Trabalhei com meu marido a bordo por cerca de dois anos. Ele foi praticante e depois oficial de náutica. Fui convidada para ser a madrinha dele na formatura como oficial, mas devido a uma viagem a Cingapura cancelei o compromisso. Quando retornei ao Brasil fui morar na casa de um amigo, em Niterói. Em uma ocasião, meu marido resolveu fazer uma visita, a partir daí, já estamos juntos há sete anos.
iG: Vocês sempre viajam juntos ou passam longos períodos separados?
Hildelene: Trabalhamos em regimes diferentes, mas, quando tem a oportunidade, ele embarca como passageiro. Acho que o maior período que já fiquei sem vê-lo foi cerca de quatro meses.
iG: Tem filhos? Como conciliar maternidade e a vida de comandante?
Hildelene: Não, mas planejamos a maternidade há alguns anos. Talvez no final do ano que vem. Pretendo conciliar os meus embarques com a ajuda da minha sogra.
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