Memória e defesa
Jornal do Brasil
Sérgio Paulo Muniz Costa
Quando, por volta da uma hora da tarde do dia 20 de fevereiro de 1827, o Marquês de Barbacena, comandante brasileiro do Exército do Sul, rompeu contato com o inimigo mais numeroso que combatia desde o amanhecer, foi selado o destino da guerra mais perigosa para a integridade territorial do Brasil. Se tivesse passado à história como Guerra do Prata, e não como Guerra da Cisplatina, talvez o conflito fosse melhor compreendido. A façanha do Brasil em garantir no alvorecer de sua existência soberana as fronteiras sulinas e desmontar o sonho buenairense de reconstituir seu Vice-Reinado acabou menosprezada. Uma infinita paciência diplomática com egos vizinhos (e não há opção) e a preservação da memória da Batalha de Passo do Rosário pela Arma de Cavalaria, superada numericamente na jornada que foi salva pela infantaria e a circunstância de terem sido em boa parte baianos e pernambucanos que impediram o desastre que resultaria na perda do Rio Grande do Sul, não contribuíram para a memória desse feito de armas. Foi mais cômodo esquecê-lo.
Mas outros não esqueceram e, diante de nosso “esquecimento”, apressaram-se em nos subestimar, o que contribuiu para conflitos armados no século 19 e tensões até poucas décadas atrás, hoje felizmente esvaziadas.
Não seria a única vez que rivalidades, ideologias ou política distorceriam nossa História. Entretanto, o olhar crítico sobre o primeiro conflito externo do Brasil ilumina a relação entre história e dissuasão. No final do Primeiro Reinado, a interpretação negativa da guerra no quadro da deterioração política interna encolheu geopoliticamente o Brasil. Somente 25 anos depois, com a participação brasileira na Batalha de Monte Caseros (3 de fevereiro de 1852) - decisiva para a deposição do ditador Juan Manoel Rosas e a primeira constituição da futura Argentina – a memória de Passo do Rosário seria resgatada pela obra de Ladislau dos Santos Titara – Memórias do grande exército aliado libertador do Sul da América.
Lamentável é que, desde então, somente uma personalidade de destaque no cenário nacional tenha se empenhado no resgate da memória dos feitos militares brasileiros. Partícipe da única e verdadeira reforma militar realizada no país (Reforma Hermes), o Barão do Rio Branco sabia que era vital para a diplomacia brasileira naquele início de século 20 um aparato militar crível sustentado não somente pela proficiência bélica mas também por uma correspondente tradição de vitórias, honra e serviço incondicional à pátria. Ele sabia que não há defesa sem memória.
Mas é consternador verificar que, passado um século, tendo atingido sofisticada condição político-administrativa, o Estado brasileiro não consiga aumentar a capacidade operacional das Forças Armadas, a qual, pelo contrário, deteriora-se ano após ano. A criação do Ministério da Defesa e a alardeada reestruturação do setor produziram até agora mais crises do que resultados, particularmente nos dois últimos mandatos presidenciais em que a picuinha foi substituída pela obsessão de enquadrar os militares e anulá-los nas suas prerrogativas constitucionais e institucionais, no ritmo de notória partidarização política da pasta.
Porém, é simplesmente incrível que o Ministério da Defesa se associe - como reiterou através de nota oficial – à iniciativa de julgar de forma discricionária e unilateral a ação das Forças Armadas no combate à guerrilha treinada, financiada e orientada por potências estrangeiras no contexto de um conflito global, outro “esquecimento” de verdades cruas de mais um campo de batalha onde se defendeu a soberania brasileira.
Diante da perda da Memória pela Defesa, só resta aos militares restabelecer pelo conhecimento a verdade sobre a guerra que devem vencer de novo pela História do Brasil. Não há mais estadistas.
*Sérgio Paulo Muniz Costa, historiador, foi delegado do Brasil na Junta Interamericana de Defesa, órgão de assessoria da OEA para assuntos de segurança hemisférica.
http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/n ... -e-defesa/
Jornal do Brasil
Sérgio Paulo Muniz Costa
Quando, por volta da uma hora da tarde do dia 20 de fevereiro de 1827, o Marquês de Barbacena, comandante brasileiro do Exército do Sul, rompeu contato com o inimigo mais numeroso que combatia desde o amanhecer, foi selado o destino da guerra mais perigosa para a integridade territorial do Brasil. Se tivesse passado à história como Guerra do Prata, e não como Guerra da Cisplatina, talvez o conflito fosse melhor compreendido. A façanha do Brasil em garantir no alvorecer de sua existência soberana as fronteiras sulinas e desmontar o sonho buenairense de reconstituir seu Vice-Reinado acabou menosprezada. Uma infinita paciência diplomática com egos vizinhos (e não há opção) e a preservação da memória da Batalha de Passo do Rosário pela Arma de Cavalaria, superada numericamente na jornada que foi salva pela infantaria e a circunstância de terem sido em boa parte baianos e pernambucanos que impediram o desastre que resultaria na perda do Rio Grande do Sul, não contribuíram para a memória desse feito de armas. Foi mais cômodo esquecê-lo.
Mas outros não esqueceram e, diante de nosso “esquecimento”, apressaram-se em nos subestimar, o que contribuiu para conflitos armados no século 19 e tensões até poucas décadas atrás, hoje felizmente esvaziadas.
Não seria a única vez que rivalidades, ideologias ou política distorceriam nossa História. Entretanto, o olhar crítico sobre o primeiro conflito externo do Brasil ilumina a relação entre história e dissuasão. No final do Primeiro Reinado, a interpretação negativa da guerra no quadro da deterioração política interna encolheu geopoliticamente o Brasil. Somente 25 anos depois, com a participação brasileira na Batalha de Monte Caseros (3 de fevereiro de 1852) - decisiva para a deposição do ditador Juan Manoel Rosas e a primeira constituição da futura Argentina – a memória de Passo do Rosário seria resgatada pela obra de Ladislau dos Santos Titara – Memórias do grande exército aliado libertador do Sul da América.
Lamentável é que, desde então, somente uma personalidade de destaque no cenário nacional tenha se empenhado no resgate da memória dos feitos militares brasileiros. Partícipe da única e verdadeira reforma militar realizada no país (Reforma Hermes), o Barão do Rio Branco sabia que era vital para a diplomacia brasileira naquele início de século 20 um aparato militar crível sustentado não somente pela proficiência bélica mas também por uma correspondente tradição de vitórias, honra e serviço incondicional à pátria. Ele sabia que não há defesa sem memória.
Mas é consternador verificar que, passado um século, tendo atingido sofisticada condição político-administrativa, o Estado brasileiro não consiga aumentar a capacidade operacional das Forças Armadas, a qual, pelo contrário, deteriora-se ano após ano. A criação do Ministério da Defesa e a alardeada reestruturação do setor produziram até agora mais crises do que resultados, particularmente nos dois últimos mandatos presidenciais em que a picuinha foi substituída pela obsessão de enquadrar os militares e anulá-los nas suas prerrogativas constitucionais e institucionais, no ritmo de notória partidarização política da pasta.
Porém, é simplesmente incrível que o Ministério da Defesa se associe - como reiterou através de nota oficial – à iniciativa de julgar de forma discricionária e unilateral a ação das Forças Armadas no combate à guerrilha treinada, financiada e orientada por potências estrangeiras no contexto de um conflito global, outro “esquecimento” de verdades cruas de mais um campo de batalha onde se defendeu a soberania brasileira.
Diante da perda da Memória pela Defesa, só resta aos militares restabelecer pelo conhecimento a verdade sobre a guerra que devem vencer de novo pela História do Brasil. Não há mais estadistas.
*Sérgio Paulo Muniz Costa, historiador, foi delegado do Brasil na Junta Interamericana de Defesa, órgão de assessoria da OEA para assuntos de segurança hemisférica.
http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/n ... -e-defesa/