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Na escola Acre, modelo de aprovação por conceito global na rede municipal carioca, professores e alunos espelham os limites das políticas públicas nacionais
por Raquel Freire ZangrandiTamanho da letra: A -A +A +/-
O sino toca às 7h10 na escola Acre no dia 11 de agosto de 2010. Quem está no pátio nem se mexe. Passados cinco minutos, os primeiros alunos entram na escola. Mais um pouco e sobem a escada para o 2º andar, onde fica a sala. A maioria das meninas veste calça justa, colada ao corpo. Muitas usam acessórios em tons de rosa e lilás nas mochilas, nos cadarços de tênis e no esmalte das unhas. Umas têm os cabelos presos com enfeites coloridos e brincos enormes. Outras estão maquiadas com batom rosa-claro, gloss, blush e sombra. Os meninos calçam tênis espalhafatosos, capricham no gel para sustentar na cabeça os tufos arrepiados do corte moicano e, eventualmente, espetam vários brincos de strass na mesma orelha.
Eles se vestem como manda o figurino da Secretaria Municipal de Educação. Na escola Acre, como em toda a rede pública da cidade do Rio de Janeiro, o uniforme, de uso obrigatório, é calça jeans, camiseta oficial e tênis. Se fosse seguir as normas ao pé da letra, o aluno que aparecesse fora da linha teria que se apresentar com “justificativa fundamentada” e vestuário adequado, “dentro do esperado em estabelecimento escolar”. Mas ali, por cima das peças básicas, cada um usa o que quer. É mais ou menos como diz o aviso na sala da diretora: “Aki até a tristeza pula de alegria.” A escola Acre esbanja informalidade até na fachada do prédio: é rosa-choque. O pátio, verde. As paredes internas das salas, amarelas.
Reina na escola ampla liberdade de escolha sob o manto oficial da padronização. E não é por falta de ordens superiores. Desde que assumiu a Secretaria de Educação dois anos atrás, a economista Claudia Costin, doutora em administração pública, faz o que pode para entrar de cabeça no corpo docente. Mantém no ar, desde 2009, um blog regularmente atualizado com notícias de sua gestão. Tornou-se assídua no Twitter,onde tem mais de 11 mil seguidores. Em nome desses diálogos virtuais, acorda às seis e meia da manhã. Dá e recebe incontáveis “Bom-dia!!!”.Em média, dispara do gabinete dez e-mails diários, esmiuçando a política educacional vigente na Prefeitura. Sugere livros. Tira dúvidas. Corrige erros essenciais, como: “Explique, por favor, para o seu pai que ele escreveu para a secretária municipal e não estadual de Educação.” No início de 2010, o prefeito Eduardo Paes assinou com Claudia Costin uma carta, cumprimentando as famílias pela escolha da Acre. “É com muito orgulho e satisfação que nos dirigimos a você. Seu filho estuda em uma das 25 melhores escolas da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro”, anunciava o texto. Apesar da carta, dos e-mails, das mensagens e das diretrizes formais, a secretária reconhece que a rotina das escolas tem vida própria.
Nisso, a Acre é exemplar. Na sala da turma 1801, que corresponde ao 8º ano, dois cartazes mostram que, lá dentro, as normas viram sugestões. “Não custa nada trazer seu material de estudante”, diz um. “Não custa nada vestir a camisa da escola”, diz outro. Com luz fria e três ventiladores no teto, a sala é comprida, estreita e quente durante boa parte do ano. A turma tem 41 alunos, número que contempla a norma de lotação máxima: um aluno por metro quadrado. Compõe uma amostra da sociedade brasileira, pequena mas capaz de comportar quatro Matheus com “th”, além de Rayane, Dayane, Thayanne e Thayná.
As paredes da 1801 estão encardidas e rabiscadas a lápis: “Vai tomar no cu”, “Fodace”, “cv” (a sigla do Comando Vermelho), “Boiolão”, “Viado” ou “Valeu, Mano!” Há mancha de ovo no teto e marcas de bola na parede. Desde cedo, vindo da cozinha, um cheiro forte de comida frequenta a sala. Sente-se no ar que, naquela manhã de agosto, a merenda servida na hora marcada, às 9h40, será arroz, feijão e picadinho de carne. Em contrapartida, o material escolar foi servido com seis meses de atraso.
Se há uma coisa que não falta na rede pública é kit. Existe kit para quase tudo. Kit de saúde, kit esportivo, kit de apostilas com exercícios de português, matemática e ciências. No ano letivo de 2010, o kit escolar básico do município continha três cadernos pautados, um de desenho, três lápis, duas canetas, uma dúzia de lápis de cor, borracha, régua, tesoura, cola e apontador. Em agosto, quando chegou à escola Acre, o primeiro semestre já tinha terminado. Cada livro distribuído pela prefeitura pertence à escola, e não ao aluno. Na contracapa, o estudante registra seu nome e a data. No ano seguinte o livro será usado por outro aluno da mesma série. E assim por três anos consecutivos, desde que o exemplar sobreviva a essa corrida de bastões. Em geral, funciona.
Às sete e meia da manhã, vinte minutos depois do horário marcado, começa a aula de português. No quadro-negro que hoje em dia é branco, uma aluna passa exercícios sobre classificação de predicados. O quadro tem um buraco de 30 centímetros de diâmetro bem no meio de sua superfície de fórmica. Está assim há algumas semanas, desde que um aluno o alvejou com um tubo de corretivo líquido. Durante a aula, uma professora de apoio entra na sala e chama treze alunos que precisam de reforço em matemática. Eles saem da classe atrás dela, e a aula prossegue com a professora titular, Maria da Conceição Vaz. Antes de tocar o sino, a coordenadora da sala de leitura, Elisa da Costa, aparece para anunciar que os alunos Thaís Souza, Lincoln Pedro e Renata Gomes foram selecionados para a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas. A prova seria dali a um mês.
A escola Acre fica em Todos os Santos, bairro da Zona Norte carioca. É um colégio de médio porte, com 580 alunos e dezoito turmas do 1º ao 9º ano, divididas entre o turno da manhã e o da tarde. Seu prédio de dois andares foi inaugurado nos anos 40, durante a ditadura de Getulio Vargas. Herdada do Estado Novo e considerada até hoje uma escola pública de elite na cidade, a instituição tem boa pontuação nas provas do município. Ela figura entre as 25 melhores escolas das 1 063 unidades municipais do Rio de Janeiro. Lá dentro, as professoras atribuem esses predicados às virtudes da “clientela”. A maioria dos alunos vem dos bairros vizinhos, e não das favelas Santos Titara, Joaquim Méier e Curupaiti, que se espalham na vizinhança. Muitos alunos têm carro e “boa situação” em casa. Os funcionários incluem entre os trunfos da Acre sua diretora, que consideram aberta às novidades e com disposição fora do comum para o trabalho.
Não conheço nenhuma forma infalível de administrar, mas conheço a forma infalível de fracassar: tentar agradar a todos.” A frase do presidente norte-americano John Kennedy figura como lema no mural que a diretora Elisabete Lima – ou simplesmente Bete, como é tratada por todos – exibe no gabinete. Na parede da sala há ainda um pequeno quadro da Santa Ceia, com um terço em volta. O espaço, pequeno e despojado, acomoda também a diretora-adjunta, Ana Lucia Rocca. À primeira vista, não se distingue a hierarquia entre elas porque ocupam mesas do mesmo tamanho.
Bete chega à escola a pé, mas se veste para o trabalho como se fosse a uma festa: vestido longo e colorido, sandália de salto, batom, colar, brinco de pingente e pulseiras. Tem 43 anos de idade e 24 de magistério. Não aparenta nem uma coisa nem outra, tal é o entusiasmo com que encara o dia a dia. Já chega dando abraço nos alunos e chamando todos pelo nome. Cumprimenta o faxineiro com dois beijinhos. Emociona-se com o Hino Nacional que, uma vez por semana, os alunos se enfileiram para entoar, e tem bom trânsito com professores e funcionários. “Eu nasci pra isso”, Bete afirma. “Se me oferecessem 10 mil reais pra trabalhar em outro lugar, eu não iria, e se eu tivesse 18 anos, faria tudo de novo.” É formada em pedagogia com especialização em administração escolar e deu aulas na rede pública por treze anos antes de se tornar coordenadora pedagógica da Acre. Candidatou-se a diretora em 2001 e está há dez anos no cargo, com salário de 5 mil reais. E lhe sobra entusiasmo para, casada, com dois filhos, não perder um show do cantor Ney Matogrosso. Nessas ocasiões, leva com ela a diretora-adjunta Ana Lucia. “Eu passo mal quando o Ney desce do palco e vem em direção à plateia. Uma vez eu botei a mão no suor dele”, diz Bete.
A primeira quinzena de agosto avança. Maria Lúcia Martins, professora de matemática da 1801, entra na sala como se tomasse uma trincheira: “Amanhã tem teste!” Em seguida despacha três alunas para a sala da diretora porque chegaram atrasadas. E avisa que só poderão entrar com autorização da secretaria. A turma é barulhenta e desatenta, e a professora tem que gritar para se fazer ouvir. Mas ninguém fica indiferente a uma aula sua. Ela provoca os alunos, comenta o futebol de domingo, procura falar a língua deles e usar a roupa que, sem o uniforme, eles provavelmente usariam. Combina a camisa vermelha com o relógio de plástico e capricha nos acessórios – xale de crochê com franjas, pulseiras prateadas, longo pingente na orelha e calça de cintura baixa. No segundo semestre de 2010 ela nunca repetiu roupa.
Cada aula dura cinquenta minutos e o turno da manhã tem cinco aulas. Mas convém descontar desse tempo as distrações lideradas pelos meninos, que são maioria na classe. Quem se senta à frente é silencioso e atento, embora raramente se manifeste quando a professora faz alguma pergunta. No meio de campo fica a massa de manobra, que ora segue o professor, ora adere à bagunça da turma do fundo – onde estão as maquiagens mais carregadas, os fones de ouvido ligados e os celulares sintonizados com o resto do mundo. E é lá que os polinômios, produtos notáveis e equações algébricas não chegam. Um dos quatro Matheus, o de piercing na sobrancelha, joga uma cobra de madeira nas meninas e gritos agudos respondem instantaneamente. Bolinhas de papel e tampas de caneta cortam o ar. Para não prejudicar sua concentração, os livros de matemática ficam fechados durante a meia hora de aula.
Mais adiante, ao ensinar figuras geométricas, a professora tenta trazer o assunto para um plano mais concreto: “Existe um aparelhinho, não sei se alguém tem, chamado transferidor, que é pra calcular o ângulo.” Lá do fundo, uma aluna pergunta: “Maria Lúcia, como é que faz esse aqui?” A professa responde: “Faz com lápis” – e sai da sala por alguns minutos. Alunos e professores se tratam por “você” e se chamam pelo nome.
Matheus aproveita para desfilar entre as carteiras com uma embalagem de preservativo na mão. Quando a professora volta, traz um copinho de café e a bronca na ponta da língua: “O que é isso? Quem rabiscou a parede?” Vira-se para o Baía: “Tua batata tá assando, hein?” Luiz Eduardo Baía é o primeiro nome que se aprende na 1801. Integra a ala dos alunos com brinco de strass e tem mechas douradas no cabelo. Tira notas razoáveis a ponto de não correr o risco de cair em recuperação. Nos últimos minutos de aula, Maria Lúcia passa exercícios para a próxima aula: “Podem começar agora.” Tarde demais. O sino toca, é hora do recreio.
Na volta do intervalo, a aluna Thaís Souza Clemente anota no caderno: “Comprar refrigerante com os meninos depois da aula.” Ela se senta numa das carteiras do meio da sala, ao lado de Emilly, sua melhor amiga desde o 4º ano. Sua voz é raramente ouvida nas aulas. As duas colegas praticamente só falam entre si e bem baixinho. No Orkut, onde conquistou 485 “amigos”, Thaís publica um pequeno autorretrato: Eu não sou modinha, não sou emo, não sou restart, não sou gótica, não sou cocota. Sou aquela menina sensível que se faz de durona. Só sorrio quando me fazem sorrir. Meu cabelo é ruim, não tenho calça prateada, não uso só roupas de grife, desculpa se o sapato tá furado, não sou produto e não vou ser rotulada.
Thaís tem 14 anos e estuda na Acre desde os 9. É fã de Harry Potter, Marcelo Adnet, Jonas Brothers e MTV. Não vai à praia, usa roupas discretas e sua única concessão ao estilo vigente é um bracelete de couro preto com taxas prateadas. O primeiro lugar que gostaria de conhecer é o Japão, de onde vêm os desenhos em estilo mangá de que gosta. Boa aluna em matemática, Thaís tem queda para ciências e pensa em ser veterinária. A escola não lhe apresenta desafios, ao contrário – sua mãe diz que em casa não vê a filha pegar no livro. No segundo semestre, faltou a várias aulas por causa de uma enxaqueca crônica, mas isso não aparece nas notas de seu boletim. Ela começa a se preparar para a olimpíada de matemática.
A adolescente mora com a mãe, a professora da rede pública Edna, e o irmão mais velho, com quem divide o quarto num apartamento de 80 metros quadrados no Cachambi, um bairro da Zona Norte. Em casa, ela e o irmão acessam a internet pelo notebook que a mãe ganhou no emprego. Edna dá aulas em duas escolas para ganhar 3 500 reais por mês. Thaís vai para a escola de ônibus, não ganha mesada e sua única despesa fixa é com o Curso Martins, que oferece aulas de preparação para o ensino médio. Tentará uma vaga no Pedro II, Cefet ou Cefeteq, escolas públicas de alto nível. Edna calcula que gaste com a filha mais ou menos 500 reais por mês, o que representa quase 15% do seu salário. Thaís traz vários Muito Bom e Bom no boletim. Mas numa turma em que os professores se queixam da indisciplina e os alunos se vestem de forma tão variada, os boletins surpreendem pela uniformidade. Quase todos primam pelo R, que corresponde ao conceito Regular. O I, de Insuficiente, é uma raridade na 1801.
"If the people who marched actually voted, we wouldn’t have to march in the first place".
"(Poor) countries are poor because those who have power make choices that create poverty".
ubi solitudinem faciunt pacem appellant