1MAR L Natália Almeida
A Primeiro - Marinheiro de Abastecimentos (L) Natália Almeida foi, de um conjunto de três Militares Femininos (MiF) a primeira a ser entrevistada. Depois serão uma Sargento e uma Oficial, um leque correspondente aos três patamares das organizações militares.
RA – Usando o tratamento tradicional na Armada pergunto de onde és?
NA – Dos Açores.
RA – Dos Açores? Muito bem!
NA – De Ponta Delgada.
RA – Então és Corisca? De gema?
NA – (risos) Corisca pura.
RA – Há muitos anos que não vou lá. Viveste sempre lá?
NA – Até entrar para a Marinha, em Janeiro de 2005, com 19 anos. Depois estive cá durante o Curso.
RA – Antes disso. Claro que quem nasce nos Açores tem uma grande relação com o Mar. Mas que é que te fez vir para a Armada?
NA – Primeiro por ser uma Instituição Militar, diferente duma organização civil, com uma estrutura organizada, uma hierarquia estabelecida em postos e essa relação com o Mar.
RA - Esse apelo é assim tão forte? Com um Mar, nos Açores, tão particularmente perigoso é quase um acto de coragem.
NA – Mais essencialmente, os navios, o navegar, que era diferente dos outros ramos. Cada um tem a sua especificidade.
RA – E já navegaste muito?
NA – O único contacto que tive com um navio foi durante o estágio, quando terminei o curso. Saímos, uma tarde, para experimentar as turbinas do navio
RA - Foi muito pouco! Ainda estás a tempo. Em que ano estavas?
NA – Já tinha o 12.º mas faltava-me a Matemática.
RA – A Matemática…
NA – Fiz a Matemática, já na Marinha, e estou no 3.º ano da Faculdade.
RA – Na Faculdade de…
NA - … de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Em Sociologia.
RA – Caso para perguntar, porque não concorreste à Escola Naval. Mais um bocadinho e…
NA –A Matemática é muito difícil e naquele ano a prova de ingresso não tinha corrido bem.
RA – Não chegaste, portanto, a concorrer. Já tinhas antecedentes ligados à Marinha?
NA - Não. Tinha amigos no Exército.
RA – E como foi a recruta?
NA – Foi de seis semanas na Escola de Fuzileiros, depois foi em Vila Franca, a especialização, e partes do Curso no Alfeite: o Inglês, a LA (Limitação de Avarias) e a Marinharia.
RA – Eras boa aluna em Francês? Calculo.
NA – Sim! Nos Açores tínhamos um certo toque para o Francês.
RA – Quando vieste para a Armada, puseste em equação que poderias entrar em combate?
NA – Acho que nos dias de hoje nenhum de nós pensa nisso. Só iríamos tomar consciência disso se num futuro próximo víssemos que podia acontecer.
RA – Pergunto isto porque em 1954 tivemos a ocupação de Dádrá e de Nagar-Aveli. Era uma situação
de guerra latente que em 1961 deu na Invasão de Goa. Mas na tua geração têm a noção de que isso se pode alterar?
NA – No mundo contemporâneo em que vivemos, as alterações são cada vez mais rápidas. Se num dia perdemos o Telejornal, no dia seguinte já as coisas são diferentes.
RA – E a navegar? Sem telemóvel!
NA – Ah! Isso não me preocupa. Ainda sou RC (Regime de Contrato) mas sei que se ficar no Quadro irei navegar.
RA – E és voluntária para ficares no Quadro Permanente?
NA – Acho que não… porque estou a fazer a licenciatura e logo de seguida vou fazer o mestrado e sinto que a minha área não é desenvolvida na Marinha e gostava de, no futuro, continuar a trabalhar no que estou a estudar. E também pelo facto de querer voltar para os Açores.
RA – Mas não te estás a dar bem por cá?
NA – Não é isso. Lá, temos qualidade de vida, temos tudo próximo. Só que estamos numa ilha, e sendo MiF seria mais complicado ir para Ponta Delgada. Não há alojamento para MiF’s, lá.
RA – Vieste numa altura em que ainda havia poucas mulheres em uniforme. Como foi o relacionamento
com a vida militar.
NA – Já havia algumas. Inicialmente, quando cheguei à Escola de Fuzileiros, foi um choque. Que, em certo sentido, é bom. É um rompimento, não com os nossos valores mas porque lá é tudo organizado, tudo tem regras…
RA - Foi útil? Com convicção?
NA – Sim! Sim! Acho que toda a gente devia ter.
RA – Obrigas-me a perguntar se serias a favor do SMO?
NA – Sem dúvida alguma.
RA – Surpreendes-me.
NA – Vê-se com a geração que está a vir. Cada vez mais têm menos valores, é o meu ponto de vista. Se tivessem entrado no meio militar, seriam mais organizados… é a geração do nada.
RA – Que idade tens?
NA – Vinte e quatro anos.
RA – Casávamo-nos aos 21… Podia ser teu avô! Vinda dos Açores, que ideia fazias do Continente?
NA – Já cá tinha estado. Antes já tinha estado em Toronto e em Boston…
RA – Em Boston há uma grande comunidade de Açoreanos. Ligados à Pesca?
NA – Sim. Um Tio meu vive em Providence. Tem lá um barco. Mas prefiro Toronto, talvez porque fui lá mais vezes.
RA – Já tinhas alma de marinheiro… Entre a Escola de Fuzileiros e o Departamento de Administração e Logística (a DAL, a antiga Escola de Abastecimentos!) da ETNA, nessa altura ainda em Vila Franca, houve uma grande diferença?
NA – O facto de termos licenças todos os dias já altera muito as coisas.
RA – Todos os dias!?
NA – Excepto quando nos portávamos mal. Aconteceu-me uma ou duas vezes…
RA – O que era portar-se mal?
NA – Com as MiF’s era raro. Com os rapazes era mais frequente… as limpezas. Ficávamos lá todos.
RA – Por conta dos rapazes. É engraçado… Uma propaganda americana rezava «Se eu fosse rapaz ia para a Armada». Que é que isso te diz, hoje?
NA – A Marinha para meninas… A convivência é diferente dum escritório. Lá somos colegas, aqui precisamos uns dos outros.
RA – Até que ponto é embaraçoso para uma rapariga viver no meio de tantos homens?
NA – Hoje é já diferente, é uma coisa normalíssima, banalizada. No tempo da minha Mãe que vivia numa terra próxima de Ponta Delgada, era muito diferente.
RA – Sentes, neste ambiente, alguma discriminação? Negativa, claro!
NA – A única que sinto é quando se fala das Provas de Aptidão Física (PAF’s), que as mulheres deveriam fazer as mesmas que os homens. Nós somos física e biologicamente diferentes dos homens e não conseguimos fazer o mesmo…
RA – Isso, qualquer pessoa que use a cabeça, vê!
NA – …quando chega material para o paiol, não podemos levar duas caixas, mas levamos uma de cada vez. Na minha especialidade não há assim uma grande discriminação. Eu estive numa guarnição em que era a única MiF e não me senti discriminada.
RA – Onde?
NA – Nos Açores, em terra.
RA – Fico muito satisfeito por isso. E discriminada… positivamente? É uma pergunta provocatória.
NA – Isso é mais difícil. Só se for em termos intelectuais… diz-se que as mulheres são superiores aos homens. Um raciocínio mais rápido… não sei.
RA – Certamente numa fase em que as raparigas amadurecem muito mais cedo que os rapazes. Mas recordo que uma oficial me dizia que, sobretudo os homens mais velhos, quase as protegiam… “podia ser a minha filha” pensariam. As regras de cortesia em relação às senhoras…
NA – Há quem nos veja como mulheres e quem nos olhe como um militar. Esta é uma pergunta difícil.
RA – Não me choca que exista essa deferência num contexto menos profissional. Mas há uma perfeitamente evidente…
NA – Não sei. Qual?
RA – Não sabes? Os vossos uniformes!
NA – Ah! Os nossos uniformes. De facto são iguais, com pequenas particularidades, para oficiais, sargentos e praças.
RA – E semelhantes aos dos oficiais masculinos.
NA – Os dos oficiais e sargentos são semelhantes. O das praças masculinas é completamente diferente.
RA – Sim. Gostas do teu uniforme de passeio? Sais à rua de uniforme, fora de serviço? Os homens não
se vêem na rua fardados…
NA – Gosto… É giro… mas só saí de casa fardada quando me fui apresentar na Escola.
RA – Isso não vale! Sabes se alguma vez o uniforme dos marinheiros influenciou a moda feminina?
NA – Acho que sim… aquelas camisolas às riscas azul e branco. A «Quebra-Mar» teve, duas ou três colecções atrás, uma inspirada no traje dos marinheiros. Em azul-marinho com botões com âncoras, passadeiras nos casacos… as alcaxas.
RA – No Museu de Marinha de Paris está neste momento uma exposição chamada «Les Marins Font
la Mode» (Os Marinheiros Fazem a Moda) com dezenas de manequins, desde o século XIX até à actualidade, de trajes femininos e também masculinos inspirados nos trajes dos marinheiros militares. Eu tinha um panamá tingido de azul-escuro, para não ser o branco do uniforme, que usava à civil. Tinha
provas dadas de muitas décadas no mar. Com vento era o ideal. Tenho aqui o catálogo de Paris.
NA – Que giro. Era o traje dos rapazes quando faziam a primeira comunhão.
RA – E não só! Há fotos de D. Manuel II, o nosso último Rei, ainda Infante, vestido de marujo. Fazia-se
gala nisso. No nosso Museu de Marinha podemos ver que em determinada época, em vez do corpete, se usava a camisola às riscas.
NA – Sou fã da «Quebra Mar»! Há dois Invernos havia malas a imitar os cabos, com âncoras e isso tudo. Mas não tenho roupa deste tipo… seria tudo muito igual.
RA – Luta-se muito a sério para se ser militar mas ninguém aparece fardado. Não parece absurdo?
NA – Se se sair fardado mas se se não souber comportar isso traria uma má imagem. Se saíssemos fardados e toda a gente se soubesse comportar, no meio social, com normas, isso sim, faz uma boa imagem e traria um certo orgulho.
RA – Uma segura auto-estima! Conheces o Museu de Marinha? Tem um Grupo de Amigos que lançou uma nova quotização para pessoal da Marinha. Está no Site.
NA – Conheço alguns museus em Lisboa, mas… não conheço. Ao lado do Mosteiro dos Jerónimos. Tenho que conciliar com a universidade, a vida pessoal e isso torna-se difícil.
RA – Compreende-se. Entre as actividades do Grupo, numa «Conversa Informal», falou-se da História dos Uniformes Militares e da sua intenção de elevar os militares a um estatuto de social superior que os diferenciasse também pelo comportamento... pelo culto das virtudes militares, onde se incluem as cívicas e as de cidadania. Também para se distinguirem dos outros Exércitos e das outras Armas. Como as equipas de futebol…
NA – Não sabia.
RA – À civil, somos mais um. Fardados representamos algo. A Unidade, o Serviço, a Armada e até o País. Um recepcionista recebe em nome de alguém… forma logo a primeira imagem. Sem distinguir quem chega. Graças a uma sentinela desleixada… a limpar o nariz à manga… se puseram os botões
nas mangas! No século XVIII. Os nossos Fuzileiros usavam uniformes verde bandeira mas todos com muitos botões nas mangas. Era bonito…
NA – (risos)
RA – Se à quinta-feira, por ser o dia de Joanetes, houvesse um convite ou, melhor, uma iniciativa para se andar todo o dia fardado, como reagiriam os teus camaradas, praças, eles e elas?
NA – Uns diriam que sim, outros que não. É difícil…
RA – Não te quero comprometer (risos). Antigamente era o outro extremo mas, então, os marinheiros mandavam “ajeitar” as suas fardas e marcavam Lisboa com o seu garbo. Recomeçar seria estranho mas seriam os mesmos que fazem o prestígio da Armada a darem-lhe visibilidade e a recolherem o aplauso dos cidadãos. Ou seria a “revolta”?
NA – Um bocado, isso.
RA – Talvez. E para o teu casamento irias fardada? Sei que não…
NA – O homem vai de fato e a mulher de vestido. É diferente, vamos de vestido, de véu…Se ele fosse militar, acho que gostaria que fosse fardado.
RA – Claro! É a resposta que esperava. Disseste que não contavas continuar. Mas como licenciada podias concorrer a oficial…
NA – O que me faz não pensar nessa hipótese é ficar limitada e não poder voltar para os Açores.
RA – Não sei mais que te perguntar.
NA – Também já estive desse lado. É mais difícil do que aquilo que a gente pensa. Li as entrevistas da RA de Janeiro.
RA – Eram muitas pessoas. Tive que encurtar muito e perdeu-se. Gostei muito desta nossa conversa. Muito interessante. Não sei se mais com a jovem, se com a marinheiro, se com a futura socióloga. Muito
obrigado.
Dr. Rui Manuel Ramalho Ortigão Neves
1TEN
http://www.marinha.pt/PT/noticiaseagend ... _JAN11.pdf