O posicionamento do governo brasileiro na Guerra das Malvinas (1982)
por: Rafael Macedo da Rocha Santos *
O principal objetivo deste artigo é demonstrar como o apoio do Brasil aos direitos argentinos durante a crise das ilhas Malvinas contribuiu decisivamente para consolidar uma aproximação permanente entre as duas nações, fortalecendo a formação de alianças regionais e ampliação da cooperação sul-sul ao longo dos anos 80.
1 – A crise da dívida externa e o esfacelamento do sistema interamericano:
A guerra das Malvinas pode ser considerada como a reprodução, no plano militar, do crescente choque de interesses entre as nações subdesenvolvidas do sul e as grandes potências desenvolvidas do norte no início dos anos 80. O conflito entre Argentina e Grã-Bretanha expôs uma nova correlação nas tradicionais forças geopolíticas, decorrentes de uma crescente instabilidade e incertezas nos campos políticos e econômicos internacionais.
A guerra das Malvinas demonstrou como a política nociva dos Estados Unidos, sob o governo do ortodoxo Ronald Reagan, contribuiu para incrementar ainda mais as relações entre os países do continente nos anos 80. Diversos autores relacionam a guerra das Malvinas à percepção de um perfil próprio e à aspiração por autonomia ideológica e política da América Latina frente aos alinhamentos automáticos com os Estados Unidos.
A guerra das Malvinas introduziu um complicador inesperado para os planos da administração Reagan: seu esforço em reativar a guerra fria e seus mecanismos de defesa coletivos típicos como o TIAR, no caso da defesa interamericana, esbarrava no seu posicionamento pró-Grã Bretanha no conflito, ou seja, os Estados Unidos estavam claramente atuando a favor de uma potência extracontinental (AYERBE, 2002: p.209).
A crise do capitalismo no final dos anos 70, decorrência dos sucessivos aumentos nos preços do petróleo e das grandes taxas de juros cobradas pelos países ricos, prejudicava a capacidade de pagamento da dívida externa pelas nações emergentes como Argentina e Brasil. As economias latino-americanas promoveram um ajuste recessivo em suas contas externas para pagar os encargos de suas crescentes dívidas externas.
A crise da hegemonia norte-americana obrigou as nações dependentes do continente a buscarem outras oportunidades de inserção nas relações internacionais dos anos 80. A redefinição da idéia de alinhamento automático provinha do esgotamento do modelo político autoritário e dos excessos do “desenvolvimentismo” promovido pelos militares no continente nas décadas anteriores.
A mudança de postura das nações latino-americanas no que diz respeito ao fortalecimento das alianças sul-sul provém do enfraquecimento das premissas ideológicas contidas no contraponto leste-oeste oriundo da guerra fria. Nesse sentido, a guerra das Malvinas representou um momento de transição entre a ordem mundial polarizada e a ordem neoliberal oriunda do esfacelamento do “Estado do Bem Estar Social”.
A crise da dívida externa abriu para os países latino-americanos a possibilidade de novas parcerias políticas e econômicas que superassem a influência do dólar valorizado em suas contas externas. Com os mercados do norte “fechados” para as exportações do continente, os países latino-americanos trataram de buscar divisas dentro da própria América Latina para que pudessem fazer frente às necessidades da dívida.
A penúria econômica do Brasil, conseqüência da segunda crise do petróleo (1979) e do aumento das taxas de juros pelos países ricos, foi responsável pelo pedido de moratória brasileira no final de 1982. Para o Brasil, redobraram-se os esforços para aumentar as exportações, diversificaram-se as pautas e ampliaram-se os mercados. Afrontou-se o protecionismo e usou-se o “terceiro-mundismo” para penetrar no Sul (CERVO, 1998).
Com a crise da dívida, evidenciava-se a vulnerabilidade das nações mais dependentes do sistema internacional e a inflexibilidade dos credores internacionais. Se antes, os empréstimos financiavam a indústria e grandes empreendimentos, a partir do final dos anos 70, eles seguirão somente uma lógica urgente de rolagem dos compromissos externos.
Nesse sentido, desde a assinatura do tratado de Itaipú-Corpus em outubro de 1979 que havia sepultado uma hipótese de conflito, o Brasil havia promovido uma aproximação sem precedentes com a Argentina. Em visita a Buenos Aires em maio de 1980 (a primeira de um chefe de Estado brasileiro à capital Argentina desde 1935), João Figueiredo assinou diversos acordos de cooperação econômica com o general Videla, entre eles, um tratado de cooperação nuclear, inaugurando uma era de prosperidade nas relações entre os países.
Em 1982, a Argentina era o segundo maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas dos Estados Unidos. As vendas do Brasil para a Argentina aumentaram abruptamente de 340 milhões de dólares em 1978 para 1 bilhão em 1981. Ao priorizar a América Latina como prioridade de sua política externa, o governo Figueiredo procurou expandir mercados para o Brasil e fugir dos alinhamentos automáticos com as superpotências sob uma lógica universalista.
2 - O Brasil na Guerra das Malvinas:
A invasão das Malvinas pela Junta Militar Argentina encabeçada pelo general Galtieri pegou de surpresa o governo brasileiro, segundo o chanceler Saraiva Guerreiro (1992). O conflito era nocivo para os interesses brasileiros, pois envolvia dois parceiros comerciais importantes do país: a Argentina, seu maior vizinho e parceiro estratégico importante e a Grã-Bretanha, grande responsável pelos créditos de rolagem da dívida.
O governo brasileiro tinha em mente que um conflito atrapalharia, de alguma forma, o comércio com as duas nações beligerantes. As instabilidades no sistema internacional, oriundas de um choque entre nações norte-sul poderiam provocar uma grande turbulência no famigerado mercado financeiro. Com a inevitabilidade da guerra, o Brasil demonstrara que dava preferência ao seu sistema interamericano e às suas “obrigações” hemisféricas.
O chanceler Saraiva Guerreiro (1992), em seu livro de memórias, lembra que a primeira posição do governo brasileiro em relação à crise nas Malvinas era uma forma de se solidarizar com a Argentina, pois em sua declaração inicial não se mencionava à ação militar de 2 de abril de 1982 que havia retirado apoio internacional aos argentinos:
Quando a Grã-Bretanha ocupou as ilhas em 1833, a Argentina protestou. Em 1833, nosso Ministro Plenipotenciário em Londres foi instruído a apoiar a gestão de protesto da Argentina. A Argentina nunca aceitou a presença britânica nas ilhas. Para a Argentina, sempre houve uma ocupação de facto. O Brasil sempre apoiou o direito argentino. (...) A única coisa que podemos fazer agora é esperar que as relações não se deteriorem ainda mais entre as duas nações amigas.
Embora adotasse uma postura de neutralidade, condenasse o uso da força e pedisse moderação para ambas as partes, o último governo militar brasileiro nutria certa simpatia pela Argentina na medida em que não escondia suas preferências em suas comunicações. Quando comparamos as mensagens de moderação enviadas pelo presidente Figueiredo ao líder argentino Leopoldo Galtieri e à Primeira-Ministra britânica Margareth Thatcher, ambos em 10 de abril, percebemos uma clara inclinação brasileira em favor dos argentinos:
Dirijo-me com grande emoção meus pensamentos ao povo irmão da Argentina, ao qual a Nação brasileira se sente para sempre ligada pelos laços da mais profunda e indestrutível amizade. Renovo o compromisso do Brasil para fazer de tudo para contribuir com uma solução que preserve os melhores interesses dos povos da Argentina e das Américas (...). Faço um apelo em favor da conciliação e da busca de uma solução através de negociações. Recordando os grandes e históricos momentos da amizade brasileiro-argentina, desejo aos argentinos paz, concórdia e fraternidade.
Com profunda preocupação pelos graves riscos que pesam sobre a paz, renovo o apelo feito ao governo do Reino Unido no sentido de que encontre solução para a presente crise. Tendo em vista os esforços ora em curso e a disposição do governo brasileiro já manifestou fazer o que estiver a seu alcance para a busca de uma solução satisfatória. Assinalo ser particularmente importante a efetiva moderação das partes envolvidas a fim de assegurar tempo suficiente para que se explorem os caminhos da conciliação.
O Brasil também forneceu armamentos aos argentinos como aviões de patrulha EMB-111, foguetes balísticos e caças Xavantes. Tais armamentos já estavam incorporados às Forças Armadas brasileiras e foram adaptados às pressas para servir à Armada Argentina na missão de espionar a força tarefa britânica (BANDEIRA, 1995: p.266).
Em 1º de maio, o governo brasileiro emitira uma dura nota condenando o ataque britânico ao aeroporto de Stanley sem mandato expedido pela ONU para tal ação e em descumprimento à Resolução 502 do Conselho de Segurança. Na mesma data, em resposta à declaração, a Embaixada britânica em Brasília lembrava que o Brasil perdera a oportunidade de condenar a invasão Argentina de 2 de abril.
O azedamento das relações Brasil e Estados Unidos se reflete no quase cancelamento na visita de João Figueiredo a Washington em Maio de 1982. Na ocasião, Figueiredo alertara ao presidente Ronald Reagan que um ataque militar britânico ao continente americano (às bases militares argentinas em “terra”) desencadearia uma reação direta e conjunta dos países latino-americanos em favor dos argentinos (BANDEIRA, 1995).
A insatisfação causada pelo apoio norte-americano aos britânicos na crise das Malvinas estava explícita no duro discurso feito pelo presidente brasileiro em Washington. Em sabatina realizada no Senado brasileiro no final de Maio, o ministro Saraiva Guerreiro se referia à destruição do sistema interamericano, “que nunca mais seria o mesmo” após a guerra das Malvinas.
O posicionamento do Brasil nas duas reuniões de consultas do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) realizadas a pedido da Argentina em Abril e Maio de 1982 votou favoravelmente às proposições que defendiam a soberania dos argentinos sobre as ilhas Malvinas e condenavam o boicote promovido pela CEE. Segundo Guerreiro: “Em nenhum momento nos últimos 149 anos, houve qualquer laudo arbitral ou sentença judicial que tenha conferido validade à ocupação das Malvinas pelo Reino Unido”.
Na prática, entretanto, evidenciava-se o caráter retórico que as decisões da OEA adquiriam quando não eram respaldadas pelos norte-americanos. Apesar da maioria dos países latino-americanos ter apoiado às pretensões Argentinas na crise, Chile e Colômbia se abstiveram de votar em uma demonstração de alinhamento com os Estados Unidos.
O documento 011650 do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão oficial de espionagem do governo militar desde 1964, traz a posição oficial do Brasil com relação ao episódio em que um bombardeiro inglês Vulcán invadiu o espaço aéreo brasileiro em 4 de Junho de 1982: os ingleses reclamavam que, ao mesmo tempo em que retinha o avião, o governo brasileiro fazia vista grossa para a passagem por aeroportos brasileiros de aviões com armamentos vindos da Líbia rumo à Argentina.
No dia 5 de junho de 1982, a embaixada britânica entregou um duro texto para as autoridades brasileiras. A conclusão da mensagem, incluída no documento 011650 do SNI, não poderia ser mais objetiva: “O governo de Sua Majestade Britânica lamenta ter que deixar claro ao governo brasileiro que a reversão da decisão anunciada em 3 de junho, se mantida, acarretaria sérias conseqüências para as amistosas relações de que a Grã-Bretanha e o Brasil têm desfrutado ininterruptamente há tanto tempo e às quais atribui grande valor”.
A compreensão de que o Brasil não deveria aproveitar-se das dificuldades argentinas provêm das limitadas capacidades de barganha econômica da América Latina em relação a outros blocos mais sólidos como Comunidade Econômica Européia. O boicote comercial adotado pela CEE à Argentina, no início da crise, gerou protestos conforme reportagem do Jornal do Brasil de 12 de abril de 1982 de autoria de Hélio Jaguaribe:
Os países latino-americanos – notadamente o Brasil, por sua condição de grande nação e de grande vizinho da Argentina – não poderão aceitar o arrasamento econômico do país irmão. Senão for prontamente interrompida a escalada do conflito (...), não poderá se deter à escalada de apoio da América Latina a um país irmão ameaçado na sua própria sobrevivência por uma grande potência extra-regional (...). Nenhum país pode aceitar a destruição de um país com quem mantém vínculos de solidariedade e que com ele faz parte de um sistema geopolítico.
3 – Conclusão:
Entre os militares brasileiros, novas concepções estratégicas surgiram depois da guerra das Malvinas. Desconsideraram-se possíveis cenários envolvendo a Argentina enquanto os Estados Unidos não eram mais considerados aliados tradicionais e incondicionais. Se antes do conflito, o Brasil não vendia armamento aos argentinos, após a derrota Argentina, passaria a ser um importante fornecedor de aviões aos argentinos.
Os militares brasileiros buscavam consolidar uma tendência de dentro das Forças Armadas: uma renovação de concepções e orientações doutrinárias e uma aproximação com os países do Cone Sul: “a conduta diplomática brasileira solidária à Argentina e dirigida à busca de uma solução pacífica do conflito nas Malvinas, ajudou a dissipar antigos receios e esvaziar uma rivalidade histórica”.
A “traição de Washington”, expressão utilizada com freqüência por Galtieri, significou a entrada da Argentina no hall dos países de Terceiro Mundo e contribuiu decisivamente para incrementar as relações Brasil e Argentina durante os governos civis dos anos 80. O alinhamento do Brasil a favor de uma causa nacional Argentina criou sólidos vínculos que influenciaram diretamente os acordos de integração assinados posteriormente.
Para finalizar, transcrevemos uma nota enviada pela cancelaria brasileira ao Palácio San Martín em 16 de Junho de 1982 (dois dias após a rendição Argentina nas Malvinas), que expressa a solidariedade dos brasileiros com a derrota militar do “país irmão”:
Neste momento, o Brasil não pode deixar de expressar ao país-irmão sua solidariedade e convicção de que, assim como povo argentino tem o direito e o dever de honrar-se com o patriotismo e a coragem de seus filhos, saberá igualmente, unido e fortalecido, superar dificuldades ocasionais e dar fundamental contribuição à paz e ao progresso próprios e de toda a região. Desde 1833, a Argentina jamais cessou de reivindicar sua soberania sobre as Malvinas. O Brasil sempre reconheceu o justo título dessa reivindicação.
Terminado a guerra e o “embaraço” causado pela escolha entre 2 países amigos, o Brasil se posicionaria favoravelmente à soberania Argentina nas Malvinas em discursos na 37ª Assembléia Geral da ONU e na visita do presidente Bignone à Foz do Iguaçu em Janeiro de 1983. A guerra das Malvinas teve um papel decisivo na construção das boas relações Brasil e Argentina, fundamentais para a consolidação do Mercosul nos anos 90.
4 - Referências Bibliográficas:
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BANDEIRA, Luiz Alberto Viana Moniz. Estado Nacional e Política Internacional na América Latina. São Paulo: Ensaio, 1995.
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CHESNAIS, François (org.). A Finança Mundializada: raízes sociais e políticas, configuração e conseqüências. Rio de Janeiro: Bomtempo, 2000.
DUARTE, Paulo de Queiroz. O Conflito nas Malvinas. Rio de Janeiro: Bibliex, 1986.
GUERREIRO, Ramiro Saraiva. Lembranças de um empregado do Itamaraty. Rio de Janeiro: Siciliano, 1992.
JAGUARIBE, Hélio. Novo Cenário Internacional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
LANUS, Juan. De Chapueltec al Beagle. Buenos Aires: Hyspamerica, 1986.
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MARTINS FILHO, José Roberto. “As Forças Armadas Brasileiras no pós Guerra Fria”. Fortaleza: Revista Tensões Mundiais, Volume 03, pp.78-89, 2006.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Argentina e Brasil: a balança de poder no Cone Sul. São Paulo: Annablume, 1996.
NYE JÚNIOR, Joseph. O paradoxo do poder americano. São Paulo: Unesp, 2002.
NOVARO, Marcos e PALERMO, Vicente. A ditadura militar Argentina 1976-1983: do golpe de Estado à restauração democrática. São Paulo: USP, 2007.
RAPOPORT, Mário. A guerra das Malvinas e a política exterior argentina. Buenos Aires: Ediciones Macchi, 1997.
ROMERO, Luis Alberto. Breve Historia Contemporánea de la Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2004.
5 - Notas
* Mestrando do PPGHC/ UFRJ
http://www.tempopresente.org/index.php? ... Itemid=147