Resolvi colocar aqui, caro P-44:P44 escreveu:Relações EUA-Haiti, texto de Noam Chomsky, datado de 2004
http://www.consciencia.net/2004/mes/03/eua-haiti.html
longo, mas vale a pena
EUA-Haiti
Chomsky comenta sobre como o governo dos EUA e da França desrespeitaram tudo o que pode ser tido com "democrático" ao realizar suas operações no Haiti. Para tanto, o autor comenta sobre a história desse país desde do século XIX. Noam Chomsky, 11 de março, 2004; tradução: Raphael Fernando
Aqueles que têm alguma preocupação pelo Haiti irão, naturalmente, querer entender como esta recente tragédia foi se desvelando. E para aqueles que tiveram o privilégio de algum contato com a população dessa ilha torturada, isso não é apenas natural, mas é inevitável. Todavia, nós cometemos um sério erro se nos focarmos de modo tão estreito sobre os eventos do passado recente, ou até mesmo sobre o Haiti por si só. A questão crucial para nós é o que podemos estar fazendo sobre o cenário que se configura.
Seria verdade mesmo se nossas opções ou responsabilidades fossem limitadas; mais ainda, então, quando elas são imensas e decisivas, assim como no caso do Haiti. E cada vez mais, portanto, devido ao fato de que o curso da terrível história foi previsto anos atrás – se nós falhamos para agir na prevenção disso. E nós falhamos. As lições são claras, e são tão importantes que elas seriam o tópico dos artigos de primeira página dos diários na imprensa livre.
Revisando o que aconteceu no Haiti pouco após Clinton ter “restaurado a democracia” em 1994, eu estava compelido a concluir, infelizmente, na Z Magazine que “não seria tão surpreendente, portanto, se as operações haitianas se tornassem mais uma catástrofe”, e assim sendo, “não é uma tarefa difícil dizer algumas frases familiares que irão explicar a falha da nossa missão de benevolência nesta sociedade falida”. As razões eram evidentes para qualquer um que quisesse ver. E as frases familiares ressoam novamente, miseravelmente e já previstas.
Há muita discussão séria hoje em dia explicando, corretamente, que a democracia significa mais que movimentar uma urna de tantos em tantos anos. A democracia eficiente possui alguns pré-requisitos. Um é que a população deve ter algum modo de saber o que está acontecendo no mundo. No mundo real, não no perfil egoísta oferecido pela “imprensa corporativa”, a qual é desfigurada pela sua “subserviência ao poder do Estado” e a sua “usual hostilidade aos movimentos populares” – nas palavras precisas de Paul Farmer, cujo trabalho sobre Haiti, de seu próprio modo, talvez seja tão notável quanto o que ele executou no país. Farmer estava escrevendo em 1993, revisando as reportagens e os comentários corporativos sobre o Haiti, uma lembrança desgraçada que nos remete aos dias da invasão viciante e destrutiva em 1915, e até o presente. Os fatos são extensivamente documentados, aterroradores e vergonhosos. E eles são considerados irrelevantes por razões usuais: eles não estão em conformidade com a auto-imagem requerida, e então são eficientemente despachados para as profundezas da memória, apesar de que eles podem ser descobertos por aqueles que possuem algum interesse no mundo real.
Eles serão raramente encontrados, porém, na “imprensa corporativa”. Mantendo ao fim mais liberal e versado do espectro, a versão padrão é que nos “Estados falidos” como o Haiti e o Iraque, os EUA devem se engajar em uma benevolente “construção da nação” para “elevar a democracia”, uma “nobre meta” mas que deve estar além de nossos devido às incapacidades dos objetos de nossa solicitude. No Haiti, apesar dos esforços dedicados por Washington, de Wilson a Franklin Dellano Roosevelt, momento em que o país estava sob a ocupação dos Marines, “a nova aurora da democracia nunca veio”. E “nem todas as boas vontades americanas, nem todos os seus Marines, podem atingir [a democracia hoje] até que os haitianos o façam por si mesmos” (H.D.S. Greenway, Boston Globe). Assim como R.W. Apple, correspondente do New York Times, recontou dois séculos de história em 1994, refletindo sobre os prospectos para os esforços de Clinton para “restaurar a democracia” que haviam sido iniciados, “Como os franceses no século XIX, como os Marines que ocuparam o Haiti de 1915 até 1934, as Forças americanas que estão tentando impor uma nova ordem irão confrontar uma sociedade violenta e complexa sem qualquer história de democracia”.
Apple aparenta ir um pouco além da norma em sua referência à selvagem agressão de Napoleão sobre o Haiti, deixando-o em ruínas, para prevenir o crime de liberação na colônia mais rica do mundo, a fonte de muita da riqueza francesa. Mas talvez essa obrigação também satisfaça o critério fundamental de benevolência: foi apoiado pelos Estados Unidos, que era naturalmente ameaçado e ultrajado pela “primeira nação do mundo a discutir o caso da liberdade universal para toda a espécie humana, revelando a definição limitada de liberdade adotada pelas revoluções francesas e americanas”. Então o historiador do Haiti, Patrick Bellegarde-Smith, escreve, descrevendo primorosamente o terror no Estado escravo vizinho, o qual não era realçado mesmo quando a vitoriosa luta pela libertação do Haiti, na enorme costa, abriu o caminho para a expansão ao Oeste por compelir Napoleão a aceitar a aquisição Louisiana. Os EUA continuaram fazendo o que eles podiam para estrangular o Haiti, até mesmo apoiar a insistência francesa de que o Haiti pagasse uma imensa indenização pelo crime de se libertar, um fardo do qual jamais escapou – e a França, obviamente, descartou com elegante desdém a solicitação do Haiti, recentemente feita por Aristide, que paga novamente a indenização, esquecendo as responsabilidades que a sociedade civilizada aceitaria.
Os contornos básicos do que conduziu à corrente tragédia são bem claros. Iniciando-se com a eleição de Aristide, em 1990 (demasiadamente distante por um tempo), Washington se apavorou com a eleição de um candidato populista com um eleitorado de base, assim como tinha se apavorado pelo prospecto do primeiro país livre do hemisfério na soleira de sua porta dois séculos mais cedo. Os aliados tradicionais de Washington no Haiti naturalmente concordaram. “O medo da democracia existe, por necessidade de definição, nos grupos de elite que monopolizam o pode econômico e político”, observa Bellegarde-Smith em sua perceptiva história do Haiti; tanto no Haiti quanto nos EUA ou em qualquer outro lugar.
A ameaça da democracia no Haiti, em 1991, foi ainda mais nefasta devido à reação favorável das instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, IADB) aos programas de Aristide, os quais despertaram tradicionais preocupações sobre o efeito do “vírus” do desenvolvimento independente bem sucedido. Esses são temas familiares nos negócios internacionais: a independência americana estimulou preocupações semelhantes dentre os líderes europeus. Os perigos são comumentes percebidos por serem particularmente graves em um país como o Haiti, que foi destruído pela França e então reduzido à miséria absoluta por um século de intervenção americana. Até mesmo a população em tais circunstâncias medonhas podem tomar seu destino com suas próprias mãos, quem sabe o que deve acontecer em todo lugar como a “disseminação contagiante”.
A administração de Bush I reagiu ao desastre da democracia transferindo a ajuda para o governo democraticamente eleito ao que é chamado de “forças democráticas”: as ricas elites e os setores de negócios, que, juntamente com assassinatos e torturas de militares e paramilitares, foram elogiados pelos incumbentes correntes de Washington, na sua fase Reagan, pelos seus progressos no “desenvolvimento democrático”, justificando os gastos com novas ajudas. O mérito veio responsável pela ratificação do parlamento haitiano de uma lei que concedia ao assassino e torturador cliente de Washington, Baby Doc Duvalier, a autoridade de suspender os direitos de qualquer partido político sem quaisquer razões. A lei foi aprovada por uma maioria de 99,98%. Isso, portanto, marcou um passo positivo em direção à democracia ao ser comparado com os 99% de aprovação da lei de 1918 concedendo às corporações dos EUA o direito de tornar o país uma plantation dos EUA, aprovado por 5% da população após o parlamento haitiano ter sido dispensado à bala pelos Marines de Wilson quando o parlamento se recusou a aceitar esta “medida progressiva”, essencial para o “desenvolvimento econômico”. A reação deles ao encorajamento de Baby Doc ao progresso em direção à democracia foi característica – mundialmente – sobre as partes dos visionários que agora estão hipnotizando a opinião educada com sua dedicação para trazer a democracia ao mundo sofredor – ainda que, para ter certeza, suas explorações estão sendo reescritas de forma agradável para satisfazer as necessidades correntes.
Os refugiados que fogem para os EUA escapando do terror das ditaduras sustentadas pelos EUA são obrigados a retornar, em uma rude violação da lei humanitária internacional. A política foi revertida quando um governo democraticamente eleito tomou o gabinete. Apesar da maré de refugiados ter se reduzido a uma goteira, eles estavam principalmente atrás de um asilo político. A política retornou ao normal quando a junta militar derrubou o governo após sete meses, e as atrocidades terroristas estatais se elevaram a novas proporções. Os criminosos eram o exército – os herdeiros da Guarda Nacional deixada pelos invasores de Wilson para controlar a população – e suas forças paramilitares. O mais importante disso, FRAPH, foi fundado pela CIA sob o comando de Emmanuel Constant, que agora vive feliz no Queens, com Clinton e Bush II tendo descartado as solicitações de extradição – pois ele poderia revelar as ligações entre os EUA e a junta assassina, e isso é vastamente assumido. As contribuições de Constant para o estado de terror eram, acima de tudo, miseráveis: simplesmente o responsável principal pelo assassinato de 45.000 negros pobres.
Retornando ao elemento central da doutrina Bush, que “já tinha se tornado, de fato, uma das regras de relações internacionais”, os escritos de Graham Allison, da Relações Internacionais da Harvard: “aqueles que abrigam terroristas são tão culpados quanto os próprios terroristas”, nas palavras do presidente, e devem ser tratados de acordo, com uma invasão e bombardeio em lagar escala.
Quando Aristide foi derrubado pela cúpula militar de 1991, a Organização dos Estados Americanos declarou um embargo. Bush I anunciou que os EUA iriam violá-lo por eximir as firmas dos EUA. Ele estava, portanto, em “sintonia fina” com o embargo para o benefício da população sofredora, o New York Times reportou. Clinton autorizou ainda mais violações extremas ao embargo: o comércio dos EUA com a junta e os financiadores de suas riquezas severamente elevadas. O elemento crucial do embargo era, obviamente, o petróleo. Enquanto a CIA solenemente declarava a Congresso que a junta “provavelmente estará sem combustível e poder muito em breve” e “Nossos esforços inteligentes estão focados em detectar tentativas de burlar o embargo e monitorar seu impacto”, Clinton secretamente autorizou a Texaco Oil Company a embarcar petróleo para a junta ilegalmente, violando as diretrizes presidenciais.
Essa extraordinária revelação foi a história que conduziu as mensagens da AP na véspera do dia em que Clinton mandou os Marines para “restaurar a democracia”, impossível de perder – eu monitorava as mensagens da AP naquele dia e vi isso se repetir de forma destacada cada vez mais – e obviamente de enorme significado para qualquer um que quisesse entender o que estava acontecendo. Isso foi abafado com uma verdadeira e impressionante disciplina, apesar de ter sido reportado na indústria de jornais juntamente com uma escassa menção enterrada na imprensa de negócios.
Também eficientemente abafado onde as condições cruciais que Clinton impôs para o retorno de Aristide: que ele adotasse o programa do candidato derrotado nos EUA nas eleições de 1990, um antigo funcionário do Banco Mundial que recebeu 14% dos votos. A isso nós chamamos de “restauração da democracia”, uma principal ilustração de como a política externa dos EUA adentrou em uma “fase nobre” com uma “paixão sagrada”, conforme explicou a imprensa nacional. O duro programa neoliberal que Aristide foi forçado a adotar estava virtualmente garantido para demolir os pedaços restantes de soberania econômica, estendendo a legislação progressista de Wilson e medidas similares impostas pelos EUA desde então.
Portanto, assim que a democracia foi restaurada. O Banco Mundial anunciou que “O renovado Estado deve se focar sobre uma estratégia econômica centrada na energia e iniciativa da Sociedade Civil, especialmente o setor privado, tanto nacional quanto internacional”. Isso obteve o mérito de honestidade: a Sociedade Civil do Haiti inclui a cuidadosa e rica elite e as corporações dos EUA, mas não a vasta maioria da população, os camponeses e os que vivem em favelas que cometeram o grave pecado de se organizar para eleger seu próprio presidente. Os funcionários do Banco Mundial explicaram que o programa neoliberal iría beneficiar a “classe de negócios mais aberta e instruída” e os investidores estrangeiros, mas nos assegurou que o programa “não irá ferir os pobres na mesma extensão que ocorreu em outros países” sujeitos ao ajustamento estrutural, pois os pobres do Haiti já necessitavam da proteção mínima de uma política econômica apropriada, assim como subsídios para bens básicos. O ministro de Aristide encarregado do desenvolvimento rural e da reforma agrária não foi notificado dos planos a serem impostos sobre essa ampla sociedade de camponeses, para ser devolvido pelos “bons desejos americanos” à trilha do que eles desviaram de caminho brevemente após a lamentável eleição democrática em 1990.
Os negócios então procederam no curso já previsto deles. Um relatório de 1995 da USAID explicou que a “política de investimento e condução e exportação comercial” que Washington impôs irá “esmagar cruelmente os produtores de arroz nacionais”, que serão forçados a retornar à agroexportação, com benefícios incidentais ao agrobusiness e investidores dos EUA. Apesar de sua extrema pobreza, os produtores de arroz são extremamente eficientes, mas impossivelmente podem competir com os agrobusiness dos EUA, mesmo se estes não receberem 40% de seus lucros dos subsídios do governo, severamente elevado sobre os assessores de Reagan que estão novamente no poder, e que continuam produzindo uma retórica esclarecida sobre os milagres do mercado. Nós agora lemos que o Haiti não pode alimentar-se por si só, outro sinal do “Estado falido”.
Algumas poucas indústrias estavam aptas a funcionar, por exemplo, a de galináceos. Mas os conglomerados dos EUA possuem um amplo excedente de carne vermelha, e, sendo assim, demandaram o direito de despejar sues produtos excessivos no Haiti, forçado a se submeter aos eficientes princípios e mercado pelo governo dos EUA e as corporações às quais ele serve.
Alguém pode notar que o procônsul do Pentágono no Iraque, Paul Bremer, ordenou um programa muito similar a ser instituído lá, com alguns benefícios em mente. Isso também é chamado de “elevação da democracia”. De fato, o recorde, altamente revelador e importante, retorna ao século XVIII. Programas similares tiveram um grande papel ao criar o terceiro mundo de hoje. Enquanto isso os poderosos ignoraram as regras, exceto quando eles poderiam se beneficiar, e estavam aptos a se tornarem sociedades ricas e desenvolvidas; dramaticamente os EUA, que conduziram caminho ao protecionismo moderno e, particularmente desde a II Guerra Mundial, tiveram de contar, crucialmente, com o dinâmico setor estatal para inovação e desenvolvimento, socializando os riscos e os custos.
A punição do Haiti se tornou muito mais severa sobre a administração de Bush II – há diferenças dentro do estreito espectro de crueldade e ambição. A ajuda foi cortada e as instituições internacionais foram pressionadas para atuar da mesma forma, sob pretextos demasiadamente bizarros para merecerem discussão. Eles são repensados extensivamente no Uses of Haiti, de Paul Farmer, e nos comentários correntes da imprensa, notavelmente por Jeffrey Sachs (Financial Times) e Tracy Kidder (New York Times).
Colocando os detalhes de lado, o que vem acontecendo é assustadoramente familiar à queda do primeiro governo democrático do Haiti, em 1991. O governo de Aristide, novamente, estava minado pelos planejadores dos EUA, que entendiam, sob a administração de Clinton, que a ameaça da democracia pode ser superada se a soberania econômica é eliminada, e presumidamente também entendiam que o desenvolvimento econômico também será debilitado sob tais condições, uma das lições melhores confirmadas da história econômica. Os planejadores de Bush II estão cada vez mais dedicados a minar a democracia e a independência, e depreciar Aristide e as organizações populares que o conduziram ao poder com, talvez, mais entusiasmo que seus predecessores. As forças que reconquistaram o país são principalmente herdeiros do exército dos EUA instalado e terroristas paramilitares.
Aqueles que pretendem desviar a atenção do papel dos EUA irão observar que a situação é mais complexa – assim como é sempre verdade – e que Aristide também foi culpado por muitos crimes. Correto, mas se ele houvesse sido um santo a situação dificilmente se desenrolaria de uma maneira muito diferente, com foi evidente em 1994, quando a única real esperança era que uma revolução democrática nos EUA poderia tornar isso possível para transferir a política a uma direção mais civilizada.
O que está acontecendo agora é terrível, talvez sem reparo. E há uma abundância de responsabilidade de curto prazo para todos os lados. Mas o caminho certo para os EUA e para a França procederem é muito claro. Eles devem começar com o pagamento de enormes reparos ao Haiti (a França é talvez ainda mais hipócrita e desgraçada neste ponto do que os EUA). Isso, entretanto, requer a construção de sociedades efetivamente democráticas nas quais, minimamente falando, as pessoas sabem o que está acontecendo. O comentário sobre o Haiti, o Iraque, e outros “Estados falidos” é totalmente voltado para enfatizar a importância de superar o “déficit democrático” que reduz substancialmente o significado das eleições. Isso não esboça, porém, o colorário óbvio: a lição se aplica ao garimpar para um país onde “os políticos são a sombra arremessada sobre a sociedade pelos grandes negócios”, nas palavras de um dos cabeças da filosofia social da América, John Dewey, descrevendo seu próprio país na época que a deterioração se expandiu a um lugar tão longe quanto se expandiu hoje.
Para aqueles que estão preocupados com a substância da democracia e dos direitos humanos, a lição de casa básica já está clara o suficiente. Eles têm sido expulsos antes, sem imenso sucesso, e sob condições incomparavelmente cruéis em todo o lugar, incluindo nas favelas e morros do Haiti. Nós não temos que aceitar, voluntariamente, viver em um Estado falido sofrendo de um enorme déficit democrático.