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Mensagem
por Marino » Dom Abr 20, 2008 10:34 am
QUESTÃO INDÍGENA
Índios prontos para se alistar
Contrariando declaração aprovada na ONU, Exército brasileiro se prepara para incorporar índios tirió a um pelotão de fronteira no norte do Pará. Comandante da Amazônia desafia acordo assinado pelo Brasil
Fernanda Odilla
Enviada especial*
Óbidos (PA) — Na terra dos índios Tirió, poucos dominam o português. Nem por isso, a tribo do norte do Pará, quase na fronteira com o Suriname, dispensa tênis, camisetas, brincos e dentes de ouro. As crianças, de Havaianas nos pés e chicletes na boca, também resistem a entoar muitas palavras no idioma nacional. Mas falar português significa hoje, para os tirió, acesso a posições remuneradas e de destaque como professor, agente de saúde e, em breve, soldado do Exército.
Contrariando a Declaração Universal dos Direitos dos Indígenas, o Exército se prepara para incorporar seis tirió no 1º. Pelotão Especial de Fronteira do 2º Batalhão de Infantaria de Selva em Tiriós, distrito de Óbidos, no Pará. Aprovada na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em setembro do ano passado, com voto favorável do Brasil, a declaração propõe a desmilitarização de terras indígenas.
Os militares fazem questão de deixar clara a posição contrária à resolução. “Enquanto eu for comandante militar, a tropa vai onde for necessário”, avisa o comandante da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira. “Eu me assustei. Fiquei preocupado quando vi os termos da declaração”, observou o comandante, durante uma palestra em Marabá em 7 de abril, ao citar a parte do texto que permite aos povos indígenas determinar sua livre condição política. Ele criticou ainda outro trecho, no qual a ONU estabelece que “não se desenvolverão atividades militares nas terras indígenas, a menos que se justifiquem por ameaças graves ao interesse público ou que se faça um acordo com os índios”.
Caso fosse cumprida ao pé da letra, pelo menos quatro pelotões do Exército teriam de fechar as portas e desocupar as áreas onde atuam, em especial na faixa da fronteira no Norte do país — na área de conflito Raposa Serra do Sol, em Roraima. Tiriós, em-bora não seja terra indígena, também seria uma dessas áreas, onde, além da tribo e de tropas do Exército e da Aeronáutica, só há um frei franciscano, uma antropóloga e, às vezes, funcionários da Funasa e da Funai. Para se chegar lá, só há duas formas: avião ou caminhada de seis horas a partir do Suriname.
“Aperreados”
Por isso, ao saber do interesse do Exército em arregimentar jovens de 18 anos para compor a tropa na fronteira com o Suriname, o cacique Tadeu Simétrio Tirió queria escolher os futuros soldados imediatamente. “Quando estamos aperreados, a gente corre para o Exército”, diz, com a ajuda de um tradutor. Ele afirma que pelo menos os militares estão sempre prontos para ajudar, já que, desde setembro do ano passado, não aparece um médico na tribo e os índios, em especial as crianças, sofrem com diarréia e desidratação. Por isso, atrai tantos olhares a presença dos homens de farda camuflada e fuzis nas mãos na comunidade Missão Nova, sede da tribo dos Tirió.
A admiração e o respeito, contudo, não são garantia do interesse dos índios em se transformar em soldados. De poucas palavras e muita desconfiança, Roberto, 18 anos, e Márcio, 17, não demonstram muito interesse em representar os Tirió no pelotão militar.
Há 15 anos pesquisando os Tirió, a antropóloga da USP Denise Fajardo Grupioni explica que o principal problema da tribo hoje é o isolamento. Os cerca de 900 índios que ficam do lado brasileiro vivem da caça, pesca, conhecem muito pouco do mundo fora da Serra do Tumucumaqui e sofrem com a ausência de assistência em tempo integral. “Eles se sentem muito isolados, mas têm interesse em se profissionalizar e diversificar as atividades. Ir para o Exército tem tudo a ver com a possibilidade de ter uma fonte de renda”, avalia a antropóloga, dizendo que os índios mais velhos se arrependem por não terem se esforçado em aprender o português. O dinheiro é gasto quando visitam parentes no Suriname ou quando alguns embarcam em aviões da FAB rumo a Macapá (AP) ou Belém (PA).
O primeiro passo para um índio compor o pelotão do Exército é dominar o idioma nacional, explica o comandante do 2º Batalhão de Infantaria da Selva, tenente coronel Marcos de Sá Affonso da Costa, responsável pela área. Ele justifica o interesse em contar com tiriós na patrulha oficial da faixa de fronteira argumentando que nada melhor que um homem adaptado e conhecedor de uma área para ajudar a defendê-la. “Apesar de os índios serem os únicos habitantes da região, é uma fronteira seca, que pode ser percorrida a pé. Existe a possibilidade de ser roda de passagem de conexões criminosas (como de tráfico de drogas) terrestre”, observa, ponderando que a incorporação só deve acontecer no próximo ano, quando o pelotão se transformará em vila militar.
“Enquanto eu for comandante militar, a tropa vai onde for necessário”
Augusto Heleno Pereira, comandante militar da Amazônia
Quando o socorro chega atrasado
Durante quatro dias, um bebê tirió agonizou com diarréia e desidratação. O socorro não chegou a tempo. Gian Tirió morreu, aos 18 meses, no mesmo dia em que foi levado num avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para o Hospital da Criança de Macapá (AP). O desespero da mãe, Francilene Tirió, que carregou junto ao peito o filho inconsciente durante toda a viagem, era visível no olhar distante e sofrido. Inconsciente, Gian só entrou no carro da Funasa 30 minutos depois de desembarcar na capital do Amapá, em 11 de abril.
Na semana passada, outras 35 crianças da tribo sofriam com desidratação — três delas haviam sido encaminhadas às pressas para Macapá. Mas a morte de Gian foi o primeiro caso de óbito registrado na aldeia. Na ausência de médicos da Funasa, o atendimento de emergência é dado pelo enfermeiro do pelotão do Exército, sargento Mauro Lima Baía. “Essas doenças são importadas do Suriname. Muitos índios vão visitar parentes lá e voltam mal. Tem muito turistas nas aldeias do Suriname”, argumenta Luzio Katxuyana, agente de saúde, reclamando que ficaram mais de um mês sem receber visitas de técnicos da Funasa. “Há 15 dias estamos sofrendo”, completa o cacique Tadeu Simétrio Tirió.
A diretoria regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que encaminhou informes sobre a situação “gravíssima” dos tirió à direção nacional do órgão e também ao Ministério Público Federal (MPF). Explica ainda que a distância e a dificuldade de acesso impedem o órgão de manter médicos na tribo. Em caso de emergência, aeronaves buscam os índios doentes.
Os tirió reclamam que passam fome. Por serem caçadores tradicionais, não recebem cestas básicas. Mas as chuvas intensas nos últimos meses fizeram as águas dos rios subirem. A caça e a pesca ficaram mais escassas e os índios abandonaram a horta que montaram com o frei cearense Paulo Calixto Cavalcanti, há 39 anos catequizando os tirió.
Com brinco e corrente de ouro, adquiridos no Suriname, Moisés Tirió mostra orgulhoso a pele da onça pintada que matou com um único tiro de espingarda. Mas diz que jogou a carne fora, porque não servia para comer. Os menores caçam beija-flores com estilingues. Usam penas para confeccionar artesanato, o resto vira churrasquinho. “Essa fronteira é estável, não existem ameaças. Estamos vigiando, mas a preocupação maior são as ações sociais. É uma área carente”, afirma o general Jeannot Jansen da Silva Filho, que está deixando o comando da Amazônia Oriental para responder pela logísitca do Exército, em Brasília. (FO)
“Essas doenças são importadas do Suriname. muitos índios vão visitar parentes lá e voltam mal”
Luzio Katxuyana, agente de saúde
Atravessando a fronteira, euros
Fernanda Odilla
Enviada especial*
Saint Georges L´Oyapock — Índio no norte do Amapá quer euro. Não-índio também. Todos os dias, brasileiros em busca de dinheiro atravessam o Rio Oiapoque em pequenas embarcações com destino à Guiana Francesa, estado ultramarino da França, onde a moeda local é o euro e o governo francês paga aos cidadãos do país benefícios como um salário mínimo de inserção a partir de 447 euros (cerca de R$ 1.230,00).
Para os índios que vivem no Amapá é mais fácil receber o benefício. Basta comprovar residência no lado francês. Se forem casados e tiverem filhos, o valor do salário é ainda maior. A antropóloga Dominique Gallois, pesquisadora de diferentes etnias da região, explica que todos os grupos indígenas que vivem no Amapá têm parte de suas comunidades nos dois lados da fronteira. O mesmo acontece com as tribos do norte do Pará e de Roraima, estados que fazem fronteira com Suriname e Guiana.
“Na França, os índios não têm estatuto especial, são franceses e ponto. Portanto, recebem todas as ajudas legais, como qualquer francês”, esclarece a antropóloga Dominique Gallois. O salário mínimo de inserção (Revenu Minimum d’Insertion, ou RMI) é pago a todo cidadão francês desempregado ou que não receba outro tipo de benefício. Um casal com duas crianças, por exemplo, recebe 940,62 euros (leia quadro).
Tudo pelo visto
Camopi e Saint Georges são as duas cidades francesas mais próximas à fronteira com o Brasil. Além de policiais franceses da Gendarmerie e militares da Legião Estrangeira, elas abrigam brasileiros que fazem de tudo para conseguir visto ou nacionalidade francesa, como o goiano Ademar Marques Araújo, que se casou com uma mulher nascida na Guiana Francesa e hoje vive de bicos. Ele se orgulha de mostrar as notas de 100 euros que recebe do governo francês. “Foram essas notas que me fizeram atravessar o rio”, diz.
Também circulam pelas duas cidades índios franceses e índios brasileiros. Em Camopi, são cerca de 1,1 mil pessoas — distribuídas por 10 aldeias. A maioria fala patoá, e alguns arranham português e francês. Do outro lado do rio, está a aldeia Vila Brasil, na fronteira norte do parque do Tumucumaqui, com um pelotão do Exército brasileiro e um assentamento ilegal, a sete horas de barco de Oiapoque. Lá, dizem os militares, índios franceses com euros nas mãos empregam trabalhadores temporários brasileiros para trabalhar em seus campos ou garimpar em suas áreas.
Heineken e bordel
Mas é o álcool que consome os euros dos índios. Em Saint Georges, no final da manhã de uma quinta-feira, é possível avistar índios alcoolizados em bares ou deitados em redes, dentro de barcos. Alcoolizados o suficiente para ter dificuldade de pronunciar o próprio nome, os índios bebem cervejas Heineken e Stela Artois. Na Vila Brasil, os euro-indígenas são facilmente enganados. Chegam a pagar mais de 30 euros por uma caixa de cerveja brasileira e 50 euros por uma visita ao bordel local. O comandante da área, capitão Sartori Aguiar, diz que acompanha de perto essa situação. Ele lamenta que outros órgãos da União não estejam presentes de forma mais efetiva para ajudar os índios brasileiros.
A cada três meses, há um controle para saber se os beneficiários do salário de inserção continuam em território francês. Por isso, explica a antropóloga Dominique, muitos índios da etnia Wayãpi de Camopi que se mudaram para o lado brasileiro e se esqueceram de voltar perderam o direito à ajuda. “Isso vale não só para os Wajãpi, mas para todos os grupos. Em Saint Georges vive uma grande comunidade de índios Palikur, que sempre atravessam a fronteira para visitar os parentes do lado brasileiro.
"A reconquista da soberania perdida não restabelece o status quo."
Barão do Rio Branco