#156
Mensagem
por Marino » Ter Fev 19, 2008 1:08 pm
Continuando, agora a cereja do bolo: Corbett.
Seu livro, Some Principles of Maritime Strategy, é considerado como um dos mais importantes de Estratégia Naval.
A leitura do trecho abaixo não deve ser separada do que já foi postado desde o início deste tópico. As 2 leituras se completam, se complementam, ajudam ao entendimento mútuo. Enquanto lemos abaixo uma teorização, na primeira parte do tópico vemos a aplicação dos conceitos, vemos exemplos claros, no que chamei de parte "operacional" da teoria.
Mais uma vez, boa leitura.
JULIAN STATTFORD CORBETT
Corbett foi o primeiro escritor de assuntos navais a buscar integrar a teoria da guerra de Clausewitz ao estudo da guerra no mar. Neste sentido, Corbett apresenta-se como o contraponto clausewitziano às considerações de inspiração jominiana tecidas por Mahan. Deve-se ter cuidado em não tomar o relacionamento entre Corbett e Clausewitz, entre Mahan e Jomini como expressões do mesmo tipo de descendência intelectual e metodológica. Corbett pretende utilizar Clausewitz para refletir sobre a guerra no mar; trata-se de um desdobramento teórico explicitamente assumido. Mahan, a partir de sua percepção inicial, toma Jomini como um exemplo, uma fonte adicional de inspiração, utilizando-se de elementos de Jomini que considera úteis, sem a pretensão de estar trazendo o Précis para o ambiente marítimo.
Filho de um arquiteto rico, Corbett formou-se em Direito, por Cambridge, e nunca exerceu a profissão, vivendo de suas posses, e acabando por se dedicar a uma carreira literária, que desdobrou em obras de história naval e em sua atividade como professor na Marinha Real.
Corbett foi um dos membros fundadores da Navy Records Society, que objetivava editar e publicar coleções de documentos da história naval britânica, o que lhe permitiu ter respaldo historiográfico para diversas de suas obras e reflexões. A reputação de Corbett como uma historiador naval sério — distinta da de romancista e historiador popular de seus primeiros trabalhos — começou com o sucesso de seu livro Drake and the Tudor Navy em 1898. Em 1900, Corbett deu continuidade a esta obra com um novo livro sobre os sucessores de Drake, amadurecendo sua capacidade e reputação de estudioso e analista de assuntos estratégicos navais.
Corbett voltou-se definitivamente para a História naval, identificando a tendência de que essa ciência e a formação de oficiais de marinha teriam grande crescimento e reconhecimento no novo século. Dedicou-se a uma série de artigos políticos engajando-se no movimento pela reforma naval. Um destes artigos, em que apoiava a reforma da educação naval, em prol de uma maior sistematicidade e rigor, chamou atenção do Almirante Fisher, então Segundo Lorde do Almirantado, o que levou a um convite para atuar como professor do recém-fundado curso de guerra do Royal Naval College (RNC).
Sendo um civil ensinando militares, e um especialista de assuntos militares escrevendo para o público em geral, Corbett foi levado a ponderar as restrições políticas que moldavam a estratégia e a especificidade militar dos meios navais. A ênfase era em uma educação que evitasse simplificações excessivas — Corbett alertava, privadamente, contra o uso indiscriminado de Mahan — e que levasse os oficiais, ao longo de suas carreiras, a poderem lidar com a complexidade da estratégia no contexto de decisões e influências políticas.
Neste processo, Corbett acabou por difundir as palestras que preparava para a Marinha Real para a Universidade e mesmo para o público em geral através de seus livros. O sucesso comercial e a crescente densidade e pertinência de seus questionamentos, lado a lado com sua publicação de artigos políticos, acabaram por aproximá-lo do círculo íntimo de amigos de Fisher. Como resultado, Corbett passou a ter acesso a documentos reservados e suas críticas e sugestões acabaram por conduzi-lo a um relacionamento com o mais alto círculo decisório da Marinha e à assunção de responsabilidades pela ênfase em estratégia no citado curso de guerra do RNC.
A consciência de que a maioria dos oficiais tinha uma notória carência de leituras essenciais em questões de estratégia levou Corbett a proferir uma série de palestras sobre a teoria clausewitziana à luz das questões navais. Mesmo para estas existiam lacunas de entendimento para os oficiais, o que levou à redação de um pequeno texto de consolidação de entendimentos e termos, um documento reservado entitulado Strategic terms and definitions used in lectures on naval history, mais conhecido pela cor de sua capa: o Green Pamphlet, que viria a ter, pelo menos, duas versões nos anos seguintes. Destas palestras e do Green Pamphlet viria o seu livro mais famoso: Some Principles of Maritime Strategy (1911).
É facil se subestimar a importância de Corbett numa época em que o entendimento de Jomini e de Clausewitz estava condicionado à tentativa de uma conciliação entre as suas obras e, muito particularmente, numa época em que o apego às teorias — ao menos os aforismas e princípios — de Mahan era, mais que uma filiação intelectual, uma adesão emocional. Corbett, um civil inaugurando o espaço da reflexão intelectual sobre estratégia da guerra no mar dentro de uma marinha, era especialmente cuidadoso em evitar um confronto direto com as predisposições culturais e doutrinárias de sua época. Ainda assim, o esforço de Corbett em extrair de Clausewitz a estrutura pela qual se dá um tratamento teórico rigoroso, propriamente científico, às questões da guerra no mar, foi, de fato, a expressão explícita do que eram reflexões e debates que ressoavam nos mais altos escalões da Marinha Real na era Fisher.
Corbett estava no centro do processo de integração da Marinha Real, ministrando palestras sobre história naval e estratégia, vindo ainda a colaborar com o Exército Britânico na formação de seus oficiais que cursavam a Escola de Estado-Maior do Exército em Camberley. Fisher entendia que o Naval War College e o Dreadnought seriam cérebro e meios de uma revolução naval. Corbett levou a que Fisher explicitasse um segundo papel para o Naval War College, como laboratório de idéias bem como escola, contornando a necessidade de um estado-maior naval a que Fisher resistia. Corbett assim tornou-se uma parte essencial do nível decisório mais alto da Marinha Real e seus escritos - mesmo que isso não fosse explícito na época - eram praticamente a doutrina estratégica da Marinha Real.
Durante toda a sua vida, Corbett enfrentou resistências a suas idéias, tanto entre os oficiais quanto no público em geral. Parte destas resistências advinha de uma desconfiança quanto ao fato de que ele não era um oficial. Vários escritores, entre eles o famoso Fred T. Jane — fundador do que é hoje o Jane´s Information Group — acorreram, de público, em sua defesa, bem como alguns oficiais. Entretanto, a sua história oficial da Primeira Guerra Mundial no mar, prevista para vários volumes sob encomenda do Almirantado Britânico, acabou por ser desautorizada por essa mesma entidade. Seu terceiro volume, publicado postumamente, trazia uma nota em que o próprio Almirantado afirmava estar em inteiro desacordo com algumas das conclusões expostas. Nesse sentido, o percurso e a obra de Corbett se integram ao doloroso processo pelo qual o monopólio da competência em assuntos militares das forças armadas foi questionado. Por se tratar de uma contribuição de peso à discussão da guerra, Some Principles of Maritime Strategy, é hoje uma obra clássica dos estudos estratégicos.
4.6 - A HERANÇA DE CORBETT
4.6.1 - CONCEITO BÁSICO - A CONTESTAÇÃO DE MAHAN (1)
Corbett inicia suas reflexões em Some Principles of Maritime Strategy pela consideração de que a guerra no mar é parte integrante da guerra em terra; afinal, é na terra que as pessoas vivem, e é pelo que ocorre ou pode ocorrer em terra que as guerras são decididas. Assim, com uma frase, Corbett se distingue de forma decisiva de toda a literatura estratégica que pretende que a guerra naval exista ou possa existir em si mesma, que seus resultados possam ser tomados como importantes ou decisivos em si mesmos, que exista a guerra naval distinta e separada como algo mais do que a guerra no mar.
Essa realidade instrui todo o entendimento corbettiano do que seja a guerra no mar, deslocando suas preocupações da esquadra inimiga e seu enfrentamento para a questão verdadeiramente central do uso do mar. Assim, para Corbett, o que está em jogo não é o comando do mar no sentido mahaniano da destruição da esquadra inimiga; mas sim, o comando do mar como expresso nas possibilidades reais de utilização do mar para os propósitos de cada um dos lados numa guerra.
4.6.2 - O COMANDO DO MAR - A CONTESTAÇÃO DE MAHAN (2)
A idéia corbettiana de comando do mar — expressão que ele utiliza, é importante enfatizar, em um sentido inteiramente distinto do de Mahan — não admite analogia com o controle de uma determinada área territorial por um exército; não resulta da posse de uma força amiga que tenha ilimitada liberdade de trânsito no mar; nem decorre automaticamente da destruição da esquadra inimiga. Para Corbett, o comando do mar é circunstancial, traduzindo-se antes na capacidade de utilizá-lo, e não no senhorio sobre ele.
Segundo as próprias palavras de Corbett no Green Pamphlet, “o comando do mar não significa que o inimigo não possa fazer absolutamente nada, mas que ele não pode interferir seriamente com as iniciativas pelas quais nós tentamos obter o propósito da guerra e impor nossa vontade sobre ele”. Assim, Corbett admite várias gradações do comando do mar, que pode ser geral ou local, temporário ou permanente. Este entendimento se desdobra em um arcabouço teoricamente estruturado, que confronta diretamente diversos dos aforismas e princípios mahanianos.
Esta concepção, de que o que está em jogo na guerra no mar é o propósito da guerra e a imposição de nossa vontade ao inimigo, reflete a inserção clausewitziana de Corbett, ao explicitar que o propósito da guerra é que deve ser orientador de quaisquer considerações que digam respeito à sua condução. Aqui é importante destacar a distância que esta consideração, aparentemente simples, coloca com relação à visão mahaniana da necessidade imperiosa de buscar a esquadra inimiga em qualquer circunstância; destaque-se, também, como esta ponderação desvela como perigosa a idéia de que o comando do mar exija, por si só, a destruição prioritária da esquadra inimiga, já que é menos importante obter o senhorio absoluto do mar do que poder utilizá-lo para os nossos propósitos na guerra.
É preciso esclarecer que Corbett escreveu seu texto consciente das resistências que suas idéias suscitavam nos círculos navais e na opinião pública de seu tempo, profundamente convictos da verdade dos preceitos de Mahan. Como resultado, seu texto obedece a uma estrutura menos direta do que seria de se esperar num texto científico. Ao invés de expor imediatamente suas hipótese e considerações, ele oferece, inicialmente, um determinado entendimento — não necessariamente mais do que um aforisma ou uma prática recorrente na época, cuja omissão poderia ser tomada como argumento de sua ignorância; entretanto, Corbett não pára aí - ele desenvolve um raciocínio crítico, pelo qual os limites e as deficiências desses entendimentos e aforismas são expostos e oferece construções consistentes sobre as dinâmicas de que estes tratavam.
Assim, o texto de Corbett tem uma dupla estrutura: por um lado, ele percorre um encadeamento clausewitziano desde a teoria da guerra até a especificidade dos engajamentos e meios de combate navais; por outro, em cada uma destas partes, ele constrói o seu raciocínio retornando sempre a um entendimento vigente antes de expor seus resultados sobre os temas de que trata.
Neste processo, Corbett exprime o que é talvez um dos melhores exemplos da riqueza do edifício clausewitziano, permitindo emprestar consistência e lógica a um entendimento da história naval em toda a sua riqueza e complexidade, confrontando os entendimentos simplistas e reducionistas que marcavam o seu tempo e impediam a visão adequada do papel das marinhas nas guerras. Aqui, só é possível lançar luz sobre alguns dos núcleos centrais do pensamento de Corbett.
4.6.3 - AS GUERRAS LIMITADAS
Tendo em mente o cuidado com que Corbett apresenta os seus resultados, é preciso que se tenha atenção para algumas das circunstâncias sob as quais ele produziu a sua obra. Corbett tem que dar conta do entendimento de seu tempo de que a revolução napoleônica teria tornado obrigatório que todas as guerras fossem guerras ilimitadas, no estilo napoleônico. A leitura da época enxergava uma falsa convergência entre Jomini e Clausewitz, que girava em torno da intensidade do engajamento dos povos nas guerras e que resultaria em guerras ilimitadas. Corbett deseja mostrar como o caráter das guerras decorre dos objetos em disputa ou, ocasionalmente, dos meios passíveis de emprego e não de um automatismo nascido da experiência napoleônica que obrigaria a guerras ilimitadas. Corbett explicita que, no caso de guerras terrestres, uma invasão de território nacional coloca em pauta um objeto de valor principial — a integridade do território nacional — que por sua vez, tende a produzir um engajamento ilimitado do defensor para resgate do território perdido.
Desta forma, Corbett não questiona o entendimento de que guerras no continente venham a ocorrer no padrão napoleônico. Ao ponderar, no entanto, a questão de colônias ultramarinas ou de territórios remotos, Corbett inicia um estudo detalhado das condições específicas pelas quais guerras limitadas podem ter lugar.
A limitação de interesse pelo objeto da disputa estabelece limites ao empenho com que se travará a guerra, determinando uma situação em que ambos os lados limitarão os custos da guerra, abrindo-se a acordos de paz. Indo além desta assertiva clausewitziana, Corbett se debruça sobre os enfrentamentos britânicos em colônias de outros Estados europeus para demonstrar que há ainda a necessidade de levar em conta as circunstâncias em que, independentemente do valor do objeto, existam limites à quantidade de meios passíveis de aplicação. O mar, longe de ser o grande caminho comum, passa a ser uma barreira intransponível para aquele que não disponha de meios navais adequados. O que está em jogo é a possibilidade de que, em um luta colonial, se isole a colônia de sua metrópole, permitindo que no teatro de guerra se crie uma superioridade local à revelia do balanço geral de forças.
A conquista do Canadá pelos britânicos pode ser tomada como exemplo do que Corbett irá chamar de força da guerra limitada. Considere-se que os exércitos franceses eram muito mais numerosos que os ingleses. Se o Canadá fosse uma província francesa na Europa, as forças francesas seriam empenhadas em função do interesse francês na defesa desta província, no caso de uma invasão britânica. O que há de excepcional é exatamente que o acesso da França ao Canadá dependia do uso do mar. Ao realizar um bloqueio do Canadá, os britânicos criaram uma situação na qual as forças francesas que defendiam a província não poderiam contar com reforços substanciais. Os britânicos, ao contrário, tinham grande liberdade no uso do mar e puderam empreender a invasão com as forças que julgaram necessárias. Assim, independentemente do valor que o objeto Canadá tivesse para os franceses, a luta pela posse dessa província se deu na forma de uma guerra limitada pelos meios.
4.6.4 - AS AÇÕES NAVAIS PARA O PROPÓSITO DA GUERRA E A DIVISÃO DA ESQUADRA – A CONTESTAÇÃO DE MAHAN (3)
Note-se que o raciocínio do parágrafo anterior simplifica a exposição de Corbett, objetivando ressaltar o interesse de sua conclusão não trivial da força da guerra limitada. Em Some principles of maritime strategy, o autor vai mais além e pondera como o fato de a Grã-Bretanha ser uma ilha impede que a França escale o conflito e ameaçe a metrópole britânica; pondera ainda que, com parte de sua esquadra engajada no bloqueio do Canadá, o que está em jogo para os britânicos é que sua esquadra de combate metropolitana imponha um risco inaceitável a uma aventura militar francesa, e não que impossibilite o uso do mar para o comércio ou, menos ainda, que saia procurando a força naval francesa para destruí-la.
Esta clara subordinação da ação da esquadra ao propósito da guerra — a conquista do Canadá — tem precedência sobre a ambição do senhorio do oceano (o comando do mar no sentido mahaniano) que imporia como única ação correta a busca da esquadra francesa para destruí-la. Mais ainda, a análise de Corbett ilumina de forma irrefutável a propriedade de uma divisão da esquadra, com parte dela destinada ao bloqueio do Canadá, com postura ofensiva, e a outra parte, em águas metropolitanas, com postura defensiva. Desta forma, Corbett coloca em termos muito claros a inadequação do preceito de indivisibilidade da esquadra bem como rejeita por simplificante a máxima jominiano-mahaniana de que só a ofensiva deveria ter lugar nas guerras.
Mas o ponto crucial aqui é, desde o ponto de vista da teoria clausewitziana, em seu entendimento corbettiano, que o Canadá pode ser conquistado por um esforço limitado, passando as vantagens da defesa — no caso de um desejo francês de retomada — para os invasores britânicos. A França pode se preparar para a reconquista do Canadá em uma outra guerra, tendo para isso que construir uma esquadra capaz de lhe permitir a passagem e um exército que terá, de fato, que invadir o Canadá contra os seus novos donos, que se beneficiarão da força que a posição defensiva lhe empresta bem como da possibilidade de vitória no enfrentamento das esquadras ou apenas de uma situação em que o risco de interceptação do exército de reconquista francês seja inaceitável.
O fato consumado que a guerra limitada pode oferecer dialoga com a aparente contradição entre as vantagens de uma guerra limitada nos meios com objetos ilimitados. Considere-se a situação em que a França tivesse liberdade de reforçar o Canadá: as vantagens clausewitzianas da defesa estariam com ela. Porque o Canadá é separado pelo mar da metrópole, o bloqueio britânico limita a quantidade de força que a França pode empenhar na defesa do Canadá. Esta força, limitada, detém as vantagens da defesa, mas pode ser superada pela liberdade de reforço que os britânicos possuem. Ainda que os exércitos franceses, em seu conjunto, sejam maiores que os exércitos britânicos em seu conjunto, o comando do mar (no sentido corbettiano) pelos britânicos permite que estes concentrem uma fração tal de suas forças que lhes permite deter superioridade local sobre as tropas francesas no Canadá, ao mesmo tempo que impede que a França reforce estas forças. A continuidade da existência da esquadra francesa é uma variável menor para o atingimento do propósito da guerra britânico; o uso do mar por britânicos e franceses é a questão central.
A guerra tem lugar e eventualmente os franceses no Canadá se rendem. Os britânicos, de posse do território, não são mais atacantes, mas proprietários. Sua guarnição se estabelece, o povo é subordinado, o conhecimento e preparação do terreno começam a se acumular. Muito em breve, os britânicos detêm as vantagens da defensiva, impondo aos franceses a necessidade não de um contra-ataque, mas de uma ofensiva — uma invasão — deliberada contra um território que lhes é agora hostil, para o que deverão empregar muito mais forças do que antes teriam sido necessárias para defendê-lo com sucesso, podendo, desta forma, ter um custo que não estejam dispostos a pagar — quando a dinâmica da limitação da guerra pelo objeto passa a ter prevalência, levando a uma acomodação em que os britânicos atingem os propósitos da guerra. Assim, o que parecia ser uma situação em que a superioridade dos meios franceses no conjunto sugeria a impossibilidade de uma vitória britânica revela-se, pelo adequado entendimento da força da guerra limitada, uma situação em que a vantagem de fato residia com aqueles que detinham o comando do mar (no sentido corbettiano).
4.6.5 - COMENTÁRIO SOBRE A GUERRA LIMITADA
É importante perceber que esta descoberta da força da guerra limitada não a faz obrigatória nem inevitável. Podem existir objetos que, explorando o exemplo acima, valham o custo para os franceses de construir uma esquadra, equipar um exército e buscar obter para si o comando do mar (no sentido corbettiano). Pode ser mesmo que as necessidades militares da reconquista do Canadá sejam de tal monta que os franceses necessitem desarmar os ingleses para obterem o retorno da posse de sua província. Do momento em que a meta francesa passasse a ser o desarme dos britânicos, passaria a existir uma guerra potencialmente ilimitada tanto em terra como no mar.
4.6.6 - A CRÍTICA AOS CONCEITOS DE MAHAN
Corbett tem a tarefa de expurgar o pensamento naval das simplificações e reducionismos que tinham sido incorporados a partir das diversas leituras dos trabalhos de Mahan. Nesse sentido, em toda a sua obra, Corbett enfrenta a espinhosa tarefa de ter que encontrar formas de criticar as carências e perigos da leitura mahaniana sem no entanto dar margem a rejeição de suas ponderações pelos fatos de que Mahan é considerado como perfeito ou de que Corbett é um civil que nunca comandou navio nenhum. Quatro dos preceitos mahanianos servirão aqui como exemplos do valor e empenho de Corbett neste trabalho: a idéia da concentração, a idéia da esquadra em potência, a idéia da predominância do navio de linha no projeto das forças e a batalha decisiva.
4.6.7 - A CONCENTRAÇÃO - A CONTESTAÇÃO DE MAHAN (4)
Corbett observa que a transposição da idéia jominiana da concentração de forças em terra, feita para o mar por Mahan, ignora tanto a especificidade como as necessidades da guerra no mar. A idéia de que a concentração da esquadra de combate corresponde à junção de todos os esquadrões e navios em uma única massa é um desdobramento simplista e perigoso da lógica jominiana da concentração dos corpos e tropas do exército no campo de batalha. Desde logo, a questão das bases navais e da dispersão dos esquadrões da esquadra inimiga colocam em tela que o atendimento do preceito mahaniano — que ordenaria toda a esquadra de combate contra uma única destas bases, buscando forçar aquela parte da esquadra inimiga ao combate — é simplesmente inexeqüível. Por um lado, só um inimigo tolo sairia da proteção de suas bases fortificadas com uns poucos esquadrões para enfrentar a esquadra inimiga concentrada. Por outro lado, a concentração da esquadra contra uma única base, além de não produzir o resultado pretendido, ainda liberava os esquadrões inimigos de outras bases para perturbarem o comércio, ameaçarem os portos amigos e mesmo, no limite, invadirem o território nacional.
Concentração naval, para Corbett, não pode ser a reunião de todos os navios de linha numa única formação. Ao contrário, concentração naval é um determinado arranjo que aloca esquadrões às diversas tarefas que a esquadra tem que desempenhar, de tal forma que é possível reunir ou dispersar os esquadrões em resposta a qualquer ação do inimigo. Assim, o que para Mahan era erro — a divisão da Esquadra britânica em cinco forças durante as Guerras Napoleônicas, por não ser concentração - para Corbett era a própria concentração: cada uma das forças estava situada e em comunicação com as demais de tal maneira que, antes que qualquer força inimiga concebível pudesse explorar a fraqueza local de uma dessas forças, uma grande parte ou mesmo a totalidade da esquadra podia ser reunida. Note-se como hoje o entendimento corbettiano é a prática: fala-se em concentração tática, quando as forças são reunidas e seguem juntas para aplicação em um determinado ponto, e concentração estratégica, quando elas convergem para se juntarem num mesmo ponto de aplicação. Mahan nega que exista outra concentração que não a tática e no entanto, o apego ao mito mahaniano é tão forte, que idéias corbettianas são utilizadas e falsamente identificadas como sendo mahanianas.
4.6.8 - A ESQUADRA EM POTÊNCIA - A CONTESTAÇÃO DE MAHAN (5)
Uma idéia recorrente nos círculos navais da época de Corbett era o entendimento de que a esquadra inferior, pela sua própria existência, cumpria um determinado papel. Ao evitar a sua destruição na batalha decisiva, ao continuar existindo dentro de suas bases fortificadas, ela impedia que o inimigo obtivesse o comando do mar no sentido mahaniano. O problema era justamente a idéia de que o comando do mar mahaniano derivava automaticamente da destruição da esquadra inimiga; enquanto a esquadra inimiga não fossse destruída, não se tinha o comando do mar. Corbett mostrava o contra-senso a que este entendimento levava: a melhor estratégia para a força inferior era não combater e acumular navios de guerra em seus portos, porque assim aumentava o risco potencial que, até ser eliminado, segundo Mahan, impedia o comando do mar.
Aqui o erro era grave: uma esquadra em potência voluntariamente exilada em suas bases navais concedia o completo comando do mar (no sentido corbettiano) ao inimigo. Com a esquadra confinada à segurança de suas fortalezas, o inimigo podia cercear todo o comércio, fazer fluir livremente seus navios mercantes, e usar o mar para tudo quanto pretendesse, em apoio a seus propósitos de guerra.
Havia valor na idéia de que a força inferior, ao existir, desempenhasse um determinado papel no questionamento do comando do mar (no sentido corbettiano) pelo inimigo. Ao se posicionar, deslocar e combater de tal forma a obrigar o inimigo a levar em conta o potencial de sua intervenção — fosse escoltando seus comboios, fosse interceptando o comércio inimigo, fosse acenando com a possibilidade de uma incursão ou invasão, fosse mesmo procurando a oportunidade de uma batalha em que tivesse superioridade local. Quem comandava o mar (no sentido corbettiano) nesta situação? Ninguém! O estado normal de coisas era um mar sem comando (uncommanded sea, no sentido corbettiano), onde longe de se poder contar com a validade do reducionismo mahaniano da unidade do mar, vivia-se a realidade de situações de maior ou menor segurança no uso do mar de forma local e transitória, com informação imperfeita.
Assim, Corbett demonstrava que só entendendo a esquadra em potência como uma estratégia — entendendo estratégia no sentido estrito clausewitziano de emprego dos engajamentos para o propósito da guerra — pela qual a força inferior se preparava, manobrava e combatia de forma a, evitando a batalha decisiva, impedir que o inimigo usasse o mar livremente, este conceito fazia sentido para o mundo naval.
Mais ainda, ao desvelar a esquadra em potência como uma estratégia, Corbett esclarecia que mesmo a força superior tinha usos para ela nas situações em que estivesse em inferioridade local, já que, para Corbett, era inteiramente admissível que uma esquadra fosse dividida para atender aos propósitos da guerra.
Em um determinado momento das guerras napoleônicas, a força superior britânica era obrigada, pela sabedoria dos franceses em dividir sua esquadra por um grande número de bases navais, a uma disposição — que, por mérito do Almirantado, era uma concentração, como visto acima — que lhe permitisse observar as diversas bases francesas respondendo tempestivamente a qualquer iniciativa francesa de porte. Utilizando-se da estratégia da esquadra em potência, os franceses faziam-se ao mar com navios individuais ou mesmo ocasionalmente esquadrões que buscavam acrescer a demanda de escoltas a comboios e ameaçar o fluxo comercial de que a Grã-Bretanha dependia. Estas ações tinham efeito, ao impor uma demanda crescente de força numa variedade de pontos, aumentando os custos britânicos e, principalmente, forçando o deslocamento de navios que, de outra forma, estariam livres, disponíveis para ações britânicas em prol de seus propósitos de guerra.
Noutro momento — na épica campanha de Trafalgar — os britânicos se viram tão desequilibrados por esta estratégia francesa que a esquadra de Villeneuve obrigou a redução da força britânica na entrada do Canal da Mancha a apenas seis navios de linha. Nesse momento, o Almirantado instruiu o almirante desta força a agir como uma esquadra em potência, evitando o combate, mas “se agarrando à saia dos franceses, sem nunca perdê-los de vista” de tal forma que as forças francesas nada pudessem fazer sem que os britânicos soubessem de suas ações e pudessem, eventualmente, concentrar forças suficientes para vencê-los ou reconduzi-los a seus portos de origem.
Note-se como, no segundo caso, a estratégia da esquadra em potência adotada pelos britânicos impedia que a superioridade local francesa — comprada, no limite, com o sacrifício da esquadra em Trafalgar — pudesse ser mais que um inconveniente temporário. Se a força de invasão se fizesse ao mar sem escolta, os cruzadores e a flotilha britânica (fragatas e outros navios de menor porte), atacando navios de transporte, destruiriam o exército francês de invasão; se o esquadrão francês buscasse destruir a pequena esquadra de combate britânica, para poder defender os transportes contra o ataque da flotilha britânica durante a passagem, os britânicos simplesmente evitariam o combate; se o esquadrão francês seguisse para os pontos do embarque do exército e tentasse escoltá-lo através do Canal, estes mesmos britânicos, de acordo com suas melhores tradições, ignorariam os navios de guerra franceses para destruir a força de invasão tanto diretamente quanto apoiando a flotilha.
Corbett observa que era a consciência da força deste dispositivo que desesperava o Almirante Villeneuve, Comandante-em-Chefe da Esquadra Francesa em 1805: o seu uso do mar para a invasão só era possível se os britânicos não tivessem força alguma no Canal, nem navios de linha, nem flotilha; não bastava ter mais força localmente que os britânicos — aqui a crítica à concepção de Napoleão da guerra no mar; não era possível aos franceses ter o comando do mar no sentido corbettiano.
4.6.9 - A IMPORTÂNCIA DOS NAVIOS QUE NÃO OS DE LINHA - A CONTESTAÇÃO DE MAHAN (6)
Esta mesma análise revela que Corbett, ao contrário de Mahan, exige a relativização do alvo prioritário da esquadra de acordo com as circunstâncias e os propósitos da guerra. Enquanto na visão mahaniana a esquadra possuía a obrigação de buscar e destruir os navios de guerra inimigos, segundo a visão corbettiana os alvos prioritários eram aqueles que melhor atendessem ao propósito da guerra — no caso acima, os navios que transportassem os exércitos de invasão. Corbett confronta assim a auto-estima de um valor marcial naval que entendia como covarde qualquer ação que evitasse combater os navios inimigos, explicitando a subordinação da guerra no mar e da marinha aos propósitos da política.
Corbett era igualmente preocupado com o reducionismo mahaniano pelo qual o desenho da marinha ideal era sinônimo de a maior esquadra de combate que se pudesse construir. Corbett identificava a lógica que levava a este resultado: se a batalha decisiva produzia, automaticamente, o comando do mar no sentido mahaniano, pela destruição da esquadra inimiga, então era lógico que qualquer navio que não pudesse combater a esquadra inimiga fosse supérfluo. O problema era que nada havia de automático na assunção do comando do mar (tanto no sentido mahaniano quanto no corbettiano): a destruição dos navios de linha inimigos não franqueava nem a segurança do caminho comum, fazendo com que os navios inimigos por ali passassem como fugitivos, como queria Mahan, e muito menos assegurava o uso do mar para os propósitos da guerra.
O fato simples e inescapável era que tanto a proteção, comunicação e informação da esquadra de combate quanto a miríade de formas de uso do mar dependia de uma quantidade de navios — a flotilha e os navios de guerra capazes de dar conta da flotilha inimiga (materializados nos cruzadores da época) — sem os quais a pretensão de se ter o comando do mar no sentido corbettiano apenas porque a esquadra inimiga fora destruída era tolice. Corbett identifica assim que uma esquadra é bem mais do que aqueles navios que integravam a linha de batalha, pois os diferentes papéis que uma marinha pode vir a ser chamada a desempenhar numa guerra exigem outros tipos de navios, capazes de atender de forma adequada a tais demandas.
Corbett percebia uma dinâmica no enfrentamento das forças navais, pela qual o exercício do comando do mar dependia não dos navios de linha mas sim das atividades de supervisão, controle, comunicação, patrulhamento, regulação e presença de navios da flotilha e cruzadores. Eram estes navios que podiam dar conta da flotilha e cruzadores inimigos atuando como incursores e cujo número possibilitava o patrulhamento das linhas de comunicação marítimas. É importante lembrar que o radar só foi inventado na década de 1930, e que o patrulhamento e o esclarecimento eram visuais. Assim, o ponto não era que um navio de linha não pudesse exercer o comando do mar; mas sim que o seu desempenho combatente, comprado a alto custo em cada navio, comprometia o desempenho da esquadra de combate para o exercício do comando do mar.
Por um lado, havia poucos navios de linha e muito o que fazer para exercer o comando do mar. Por outro, os navios de linha eram mais lentos que os navios da flotilha ou os cruzadores, o que permitia que os cruzadores e flotilha inimigos pudessem predar com virtual impunidade o comércio e os transportes de uma marinha que só dispusesse de navios de linha. Percebia-se assim o perigo da falácia mahaniana que orientava um projeto de forças exclusivamente voltado para a esquadra de combate, falácia que, se aplicada de fato, poderia traduzir-se na esdrúxula situação de uma marinha vitoriosa na assim chamada batalha decisiva mahaniana e completamente incapaz de exercer o comando do mar no sentido corbettiano.
A isto se acrescia ainda um dilema: o do emprego dos cruzadores. É importante perceber que, por cruzador, Corbett entendia navios de guerra cuja função principal era o exercício do comando do mar, do esclarecimento e da comunicação, numa era em que o telégrafo sem fio permanecia pouco confiável. Corbett esclarecia que existia uma dupla demanda pelos cruzadores: por um lado, eram os olhos e a cobertura aos olhos inimigos da esquadra de combate; por outro, eram a forma concreta do exercício do comando do mar no sentido corbettiano, isto é, o patrulhamento, salvaguarda e regulação do uso do mar. Este entendimento havia escapado por completo de Mahan, que era incapaz de explicar porque Nelson, inferiorizado de três para dois no Mediterrâneo, demandava sempre mais fragatas, protestando satisfação quando ao número de navios de linha sob seu comando. Nelson sabia tanto da superioridade de desempenho de seus navios quanto de sua estratégia de esquadra em potência e ainda do fato de que sua força era parte de um arranjo de concentração da Marinha Real que proveria reforços tempestivos a qualquer iniciativa mais perigosa da esquadra francesa. Mas nada disso se aplicava a sua demanda por mais fragatas e flotilha que pudessem ser empregados como cruzadores para atender as demandas de patrulha, vigilância, regulação e comunicação de que dependia a eficácia no cumprimento de sua missão, e que se multiplicariam com a evolução da guerra e a entrada de novos aliados e inimigos no conflito.
Apenas com estes três elementos — o papel dos cruzadores, a estratégia da esquadra em potência e a concentração estratégica — já se pode perceber quão diferente resulta o mundo naval corbettiano com relação aos aforismas e princípios mahanianos em vigor quando de sua construção. Mas ainda há que se levar em conta a consistência das considerações de Corbett, cujo melhor exemplo é o seu enquadramento do bloqueio
4.6.10 - BATALHA DECISIVA E O BLOQUEIO - A CONTESTAÇÃO DE MAHAN (7)
Enquanto para Mahan o bloqueio não passava de desperdício — desperdício de navios de linha, se feito por navios de linha; desperdício de recursos, se fossem construídos, para realizar bloqueios, outros navios que não os de linha — para Corbett, o bloqueio residia no centro da guerra naval.
Corbett entendia que a batalha decisiva era relevante e desejável para a força superior, que não devia deixar passar a oportunidade de destruir a esquadra inimiga, desde que isso contribuísse, mais do que outras atividades, para o propósito da guerra. Mas um inimigo racional recusaria combater numa batalha potencialmente decisiva em que estaria, necessariamente, em desvantagem. Assim, era inútil despachar a esquadra de combate rumo à base da esquadra inimiga no início da guerra. Diante da presença de uma esquadra superior, o inimigo racional buscaria a proteção de seus portos fortificados. Que fazer? Manter a esquadra concentrada em um único ponto à espera da esquadra inimiga era abrir mão de poder utilizá-la em prol dos propósitos da guerra. De fato, diante de uma inimigo que tivesse dividido a sua esquadra por mais de um porto, manter a esquadra de combate concentrada em frente a um único porto era conceder ao inimigo liberdade de ação, isto é, o próprio comando do mar, já que ele podia fazer ao mar as outras parcelas não bloqueadas de sua força.
Só havia a opção do bloqueio; do bloqueio de todas as bases navais inimigas onde houvesse navios de guerra. Com o bloqueio aproximado, era possível manter os navios inimigos praticamente retidos nos portos e sob vigilância permanente, enquanto se exercia o comando do mar. Com o bloqueio à distância, buscava-se induzir a esquadra inimiga a sair da proteção de seu porto fortificado e expor-se ao combate em desvantagem ou impor que ela assistisse, impotente, ao livre uso do mar por seu adversário. Assim, o bloqueio, longe de ser um desperdício, como entendiam Mahan e seus seguidores, era, de fato, uma das principais maneiras de se conduzir a guerra no mar.
4.6.11 - JEUNE ÉCOLE
Mahan não era o único autor cujas idéias Corbett confrontava. Ao contrário, sua obra evidencia o seu conhecimento dos autores de sua época e o seu empenho em refletir sobre as mais diversas contribuições para a reflexão sobre a guerra no mar. Um excelente exemplo desta preocupação mais abrangente pode ser o da discussão corbettiana sobre o adequado enquadramento e a utilidade do que denominamos hoje Jeune École.
A Jeune École foi uma tentativa transitória e incidental pela qual a marinha francesa buscou encontrar alternativas de ação para sua condição de inferioridade em relação a marinha britânica a baixo custo. É crucial que se perceba o enquadramento mahaniano que orienta essa preocupação: toda a discussão da Jeune École se dá à sombra da certeza de que não se terá o comando do mar (no sentido mahaniano). Pode-se mesmo perguntar se as idéias da Jeune École teriam passado de sugestões se um de seus principais teóricos, o Almirante Theophile Aube, não tivesse sido conduzido à pasta de Ministro da Marinha Francesa.
Teoricamente, o que Aube e a Jeune École propugnavam refletia uma profunda insatisfação com o confinamento aos portos que a teoria mahaniana indicava ser a única opção aberta à esquadra inferior: tornar-se uma esquadra em potência no sentido mahaniano - uma esquadra impotente.
A Jeune École refletia percepções e prognósticos tanto estratégicos (no sentido estrito clausewitziano) quanto técnicos. Num certo sentido, a Jeune École deve ser tomada como uma tentativa — ainda que incipiente — de encontrar uma forma pela qual a flotilha de depois do torpedo pudesse dar conta de uma inferioridade em navios de linha.
Seu conteúdo admite duas principais vertentes: a da guerra de corso e o ataque da flotilha aos meios navais do inimigo. O entendimento da Jeune École da viabilidade moderna da guerra de corso era fortemente influenciada por uma visão romantizada do que teriam sido as experiêncas corsárias francesas no século XVIII e, de forma ainda mais difusa e mítica, as ações corsárias francesas contra os britânicos nas guerras napoleônicas. A geografia era um fator importante para a viabilidade das concepções da Jeune École sobre a guerra de corso: conquanto Londres permanecesse sendo o principal porto britânico e suas rotas de acesso passassem pelo Canal da Mancha, então uma flotilha de pequenas embarcações de guerra teria todas as oportunidades de inundar de corsários esta zona terminal, permanecendo ao alcance do abrigo em portos fortificados.
Independentemente do valor desta concepção, a necessidade militar de sua condição de possibilidade implicaria repudiar a Declaração de Paris de 1856 — um esforço francês de proteger o seu comércio das ações britânicas, ao proscrever ataques contra navios mercantes — com o risco de se ver condenada como um pária internacional. É importante destacar que em nenhum momento esta vertente corsária da Jeune École pretendeu ir mais longe do que a destruição de uma parte do comércio britânico que se somasse a outros custos, induzindo a uma situação de paz. A concepções corsárias da Jeune École nunca foram implementadas numa guerra porque no mesmo momento em que ela era formulada, desaparecia a inimizade franco-britânica que a justificava e viabilizava.
A outra vertente da Jeune École combinava a percepção da proximidade geográfica das bases navais principais britânicas com um exemplo particularmente feliz de delírio tecnológico. Por um lado, a proximidade de Portsmouth e o fluxo de navios de linha britânicos em torno deste porto oferecia aos franceses a perspectiva de que, numa noite, sua flotilha pudesse estar mesclada com navios de linha britânicos operando no bloqueio aos portos atlânticos franceses ou transitando de e para sua maior base naval. O que tornava esta circunstância de interesse para a Jeune École era o torpedo. Os torpedos do final do século XIX ofereceram por um breve período a perspectiva de que o mais frágil dos barcos pudesse afundar o mais poderoso dos navios. Os torpedeiros de alta velocidade, baixo custo e potencialmente letais contra qualquer navio pareciam anunciar uma nova era, em que as forças leves navais tinham finalmente um armamento que lhes permitisse causar danos significativos aos navios de linha. A mesma flexibilidade que fazia da flotilha a ferramenta precípua do controle costeiro (pequeno calado, alta manobrabilidade e velocidade) transformavam-na num incursor anti-navio de linha potencialmente decisivo.
Sendo mahanianos, os franceses não acreditavam que a flotilha pudesse vencer a esquadra de combate britânica; sendo mahanianos, pretendiam que a flotilha reduzisse a margem de superioridade da esquadra de combate inimiga até o ponto em que os franceses pudessem engaja-la em uma batalha decisiva pelo comando do mar, em um sentido mahaniano, em condições de vantagem. Foram construídos torpedeiros em quantidade e contratorpedeiros para combatê-las; a flotilha ganhou de fato um potencial que nunca tivera contra os navios de linha; mas a dinâmica de simetria entre forças ligeiras acabou por neutralizar a decisividade dos torpedeiros.
Nunca se viu uma aplicação da estratégia da Jeune École em uma guerra naval, embora o poder do torpedo tenha sido atestado em diversas situações, inclusive no Brasil, com o afundamento do encouraçado “Aquidabã”, por ocasião da Revolta da Armada. A partir de 1901, com a saída das idéias do Almirante Aube do centro decisório da Marinha Francesa, feneceram as duas concepções da Jeune École.
É importante que se perceba a transitoriedade e mesmo a repercussão que novidades conceituais — sintomaticamente de base técnica — passaram a ter no debate naval ao longo do século XX. Um desdobramento da tradição simplificante mahaniana que repercute esta tendência é o de buscar reenquadrar a realidade em princípios ou aforismas simples que pretendem dispensar uma análise mais complexa, isolando idéias da realidade histórica e geográfica que lhes davam sentido e pertinência. Assim, por um lado, o termo “navio capital”, originalmente criado para enquadrar os encouraçados e cruzadores de batalha em uma mesma categoria, passou a significar aquela embarcação que tomaria plenamente o lugar do navio de linha permitindo preservar todo o edifício mahaniano da batalha decisiva e da esquadra de combate. Desnecessário dizer que a complexidade naval contemporânea não admite reduções tão simplistas das complexidades da luta no mar e no ar. Nesse sentido percebe-se como é perigoso adotar-se a prática de reduzir estratégias que se originaram em momentos históricos definidos a fórmulas simples, de validade universal, sempre à mão dos comandantes para que as escolham a seu bel prazer, corporificadas na forma, por exemplo, de concepções estratégicas navais clássicas, ou, ainda, como já visto, os princípios da guerra.
Por outro lado, o entusiasmo com que se recebe as últimas novidades técnicas — como se fosse possível dispor de um armamento decisivo em si mesmo, como o torpedo foi percebido — também teve continuidade em nosso século. A vigilância necessária para se salvaguardar o delicado equilíbrio de armas que sustenta a capacidade combativa tem sido uma das principais obrigações de cada nova geração de oficiais em todas as forças armadas do mundo.
Corbett chegou tarde a este debate; suas considerações reconhecem tanto a dificuldade de se chegar a resultados conclusivos quanto sua crescente irrelevância em função do rapprochement (reaproximação) franco-britânico. Ainda assim, pondera que o entusiasmo para com o torpedo admite ao menos uma analogia com os brulotes (fire-ships) — pequenas embarcações carregadas de explosivos e inflamáveis que, uma vez acesas, eram dirigidas contra a esquadra inimiga, tanto no alto mar quanto em seus portos, causando grandes danos quando de suas primeiras aplicações — no sentido em que seus primeiros usos eram potencialmente impressionantes, mas uma vez incorporados às forças navais o seu desempenho diminuía até a irrelevância em função do desenvolvimento de táticas adequadas para enfrentá-los. Assim, os brulotes teriam passado por um ciclo que ia desde a percepção de estrondoso sucesso e grande potencial, para uma componente cada vez menos relevante das esquadras, até se reduzirem a um expediente desesperado que, por sorte ou virtude, podia produzir algum resultado.
Tomando o caso do torpedo e portanto de toda a Jeune École, Corbett argüía contra a viabilidade de que os torpedeiros da flotilha pudessem alcançar os resultados pretendidos. Por um lado, o ataque surpresa — pois sem surpresa não havia qualquer possibilidade de sucesso — a portos ou postos de bloqueio pressupunha uma disponibilidade de informações (inteligência) que na ausência do radar e na dinâmica temporal do reconhecimento visual por barcos (horas a dias) tornava o sucesso de tais ataques uma questão de pura sorte. Sorte também era o elemento que pudesse permitir que os torpedeiros passasssem pelas intensas patrulhas que sua existência tornaria corriqueiras. Vale a pena lembrar que a autonomia dos navios a carvão é uma ordem de grandeza menor do que a óleo; um torpedeiro com autonomia nominal de 1000 milhas, se usasse sua velocidade máxima, poderia ser forçado a retornar ao porto base em horas, sem necessariamente ter sido combatida, mas tendo tido frustrado seu intento.
Além disso e ao final, o resultado do conjunto dos torpedeiros dificilmente seria de tal monta que pudesse se pensar que ele justificaria a opção da escolha da lógica da Jeune École como estratégia. Sem dúvida que vários navios mercantes e talvez mesmo um ou outro navio de linha seriam afundados; c’est la guèrre. Não se podia travar uma guerra no mar sem baixas; o ponto justamente é que as baixas que a Jeune École poderia vir a causar dificilmente alterariam os custos da guerra no mar de forma significativa.
4.6.12 - A NAVEGAÇÃO EM COMBOIOS
Um viés do entendimento de Corbett em nosso tempo decorre de uma visão que toma a validade de seus resultados a partir da correção dos resultados de suas previsões. O caso mais visível diz respeito a avaliação que Corbett fez sobre a inadequação do comboio às condições navais do início do século.
Do momento em que as potências européias expandiram seus interesses através dos oceanos, o comboio — a reunião de navios mercante sob a guarda de navios de guerra — emergiu como a principal forma de proteção do trânsito das cargas contra navios hostis. Pelo menos desde o fracasso de Drake e outros corsários nos ataques às frotas espanholas de ouro e prata, a proteção que o comboio dava ao fluxo marítimo havia transformado o apresamento de navios inimigos no mar numa operação naval de grande porte. De fato, os corsários protestantes passaram a atacar os portos espanhóis por onde estas frotas passavam, considerando tarefa mais fácil sobrepujar as fortificações e tomar os navios fundeados do que interceptar os comboios nas águas da América. Em águas européias, todas as marinhas organizavam complexos arranjos de comboio e dispendiam grande parte de seu tempo buscando localizar e atacar os comboios de seus inimigos. Assim, na época de Corbett, a idéia de que a navegação de tempo de guerra dos Estados se daria na forma de comboios estava firmemente estabelecida.
Corbett iniciara seus estudos históricos exatamente sobre a época de Drake e portanto tinha consciência de toda esta questão desde a sua origem. Ainda assim, Corbett concluía que as circunstâncias ao final do século XIX haviam mudado de tal forma a realidade naval que o comboio deixara de ser uma opção válida. O curso da Primeira Guerra Mundial refutaria estas conclusões corbettianas, dando margem a diversos entendimentos simplistas que veriam neste equívoco base para refutar todas as suas reflexões.
É oportuno e adequado que se recupere o raciocínio pelo qual Corbett corajosamente veio a se pronunciar contra quase quinhentos anos de práticas navais.
O problema com que Corbett se confrontava era o de uma reflexão consistente que indicasse qual o melhor emprego da marinha para a proteção do fluxo de comércio marítimo. Assim, Corbett se via obrigado a considerar em que as circunstâncias de seu tempo diferiam das dos séculos anteriores e o que isso implicava para o melhor enquadramento da proteção do fluxo marítimo. A impressão da época era de que um número extraordinário de navios mercantes circulava incessantemente pelos oceanos do mundo, impossibilitando a agregação de todos os navios mercantes em comboios, e colocando em tela os momentos e tipos de mercantes que valia a pena comboiar. Quatro razões principais instituíram a realidade que tornava o comboio uma alternativa de menor relevância: o aumento substantivo do número de navios mercantes, o fim da prática do corso, a redução da autonomia dos navios de guerra em relação ao período da vela e o desenvolvimento do telégrafo sem fio.
A primeira modificação era, para Corbett, a mais importante e reconfigurava todo o ambiente marítimo: o aumento substantivo do número de navios mercantes que realizavam o transporte de cargas no mar. Com isso, as eventuais perdas de navios mercantes e cargas teriam, individualmente, um impacto bem menor que o que tinham na época dos corsários e da vela; a perda de cada navio individual era uma fração menor do conjunto do tráfego marítimo de seu tempo do que jamais havia sido na era da vela.
A segunda modificação foi o desaparecimento dos corsários. Corbett salienta que o grosso da perda de navios de carga nas guerras se devia à ação dos corsários, e apenas uma pequena parte advinha da ação de navios de guerra atuando como incursores. Com o desaparecimento dos corsários, a perda de navios tendia a ser em um número menor do que o registrado pela experiência histórica.
Ao somarmos a diminuição do impacto da perda de cada navio e a tendência à redução das perdas, tem-se que as perdas de navios mercantes na guerra seriam uma fração muito pequena do fluxo de transporte marítimo. Como a operacionalização de um comboio implicava uma redução significativa da velocidade dos navios mais rápidos, bem como uma gestão muito mais complexa da entrada e saída de navios nos portos, a adoção de um sistema de comboios implicaria uma diminuição da intensidade do fluxo de transporte marítimo. Para Corbett, a redução da intensidade do fluxo como um todo — que resultaria da adoção de comboios — traria mais transtornos em termos de abastecimento para a Grã-Bretanha do que as eventuais perdas decorrentes da ação de incursores navais inimigos contra a navegação independente.
O único alvo contra o qual uma eventual atuação de corsários — improvável, mas possível — podia produzir algum resultado era o considerável tráfego costeiro britânico. Para Corbett, por mais que essa atuação pudesse ameaçar o tráfego costeiro em tempo de guerra, o transporte de cabotagem podia ser feito, embora a um custo maior, pelas ferrovias, contornando os eventuais efeitos decorrentes da ação de corsários ao eliminar a necessidade de mercantes costeiros.
Corbett percebia como o uso do vapor (na época, com o carvão como combustível) havia modificado de forma radical a dinâmica de autonomia dos navios de guerra. Na era da vela, com reabastecimentos bimensais ou trimestrais de água potável e madeira para cozinhar, um navio podia permanecer meses no mar. A autonomia do vapor dependia do regime de uso: operando em altas velocidades – na perseguição, combate ou fuga – o consumo era significativamente mais elevado do que em regimes econômicos de operação, em velocidade de cruzeiro. Isto implicava em redução considerável do alcance e do tempo de permanência de um incursor a vapor em qualquer área dada na razão direta de sua ação bélica: quanto mais atividades, maior o consumo de carvão.
Perceba-se como Corbett está tratando de efeitos concretos: a perda de navios mercantes, e não da ameaça potencial: a presença ou ausência de possíveis incursores numa dada área de mar. Corbett sabe, assume e explicita que alguns mercantes serão perdidos. O que está em jogo não é proteger todos os mercantes sempre, mas sim discutir qual arranjo permite manter o uso do mar e as perdas de navios em níveis toleráveis. Neste sentido, Corbett está se posicionando contra a retórica da época que, inspirada em Mahan, creditava ao comando do mar (no sentido mahaniano) a capacidade proteger o fluxo de qualquer perda.
Corbett percebia a existência de uma dinâmica na densidade do fluxo de transporte marítimo: denso nas áreas focais em que diversas rotas marítimas convergiam, rarefeito no alto mar. Em áreas focais, um incursor enfrentaria as patrulhas e perseguições dos navios de guerra inimigos, o que exigiria um grande consumo de carvão o que limitaria o seu tempo de permanência e, portanto, o dano que pudesse causar ao tráfego marítimo. Em rotas oceânicas, este tempo de permanência seria maior, mas a menor densidade do fluxo faria com que seu efeito sobre o fluxo fosse igualmente reduzido. Assim, o efeito de navios de guerra atuando como incursores sofreria ainda mais esta redução, pois o tempo de ação dos navios de guerra a vapor seria significativamente menor do que o dos navios a vela.
Todos estes fatores indicavam que o nível de perdas da navegação independente seriam menores do que a perda de fluxo marítimo que a adoção de comboios traria; e que estas perdas seriam num nível tal que as faria inteiramente aceitáveis.
Por fim, com a introdução do telégrafo sem fio, e sua maior confiabilidade e disponibilidade em todos os navios, tornava-se mais eficiente adotar uma tática distinta da empregada nos comboios. Ante a informação da presença e localização de um incursor, era mais expediente reagir concentrando tempestivamente forças para destruí-lo do que tentar antecipá-lo constituindo escoltas. Logo se adotaram códigos que permitiriam que uma única mensagem breve de um mercante sob ataque – o PPP de “Pirata, Pirata, Pirata” – marcasse para a radiolocalização do Almirantado a posição de um incursor, permitindo a gestão de uma resposta articulada em grandes áreas de mar contra vários incursores.
A isto havia que se acrescentar que, num certo sentido, o comboio era uma opção que favorecia o efeito de navios de guerra incursores. A maior letalidade dos armamentos navais militava a favor deste entendimento, na medida em que um incursor bem-sucedido na neutralização da escolta de um comboio poderia apresar ou destruir uma grande parte do comboio antes de ser confrontado por uma resposta por outras forças navais amigas. Assim, a navegação independente ainda tinha por vantagem o efeito indireto da dispersão dos alvos de um incursor, o que minimizava os riscos de uma perda significativa do conjunto dos navios mercantes, pois uma grande concentração de mercantes – um comboio – arriscava-se a muitas perdas.
Como resultado final, Corbett afirmava que a combinação de navegação independente – com correspondente maior eficiência no fluxo de transporte marítimo – e patrulhas volantes de navios de guerra comandadas e controladas por rádio eram uma solução que, no final, apesar das perdas inevitáveis numa guerra no mar, produzia mais tráfego marítimo e era, portanto, melhor do que a adoção de um sistema de comboios.
Sabemos hoje que as coisas não correram como esta análise indicava. Este insucesso preditivo foi tomado de forma superficial como um indicativo do fracasso do todo da reflexão corbettiana, lida pela ótica simplista, nascida do legado mahaniano, de que o “aforisma corbettiano” sobre o comboio havia se revelado um erro. É crucial que se possa compartilhar a rica experiência da análise corbettiana sobre o comboio como forma de perceber como uma teoria cientificamente consistente pode vir a produzir erro, e como a força de um entendimento científico pode explicar o erro em plena coerência com a teoria, iluminando a criticalidade das hipóteses adotadas numa análise.
Diversas das hipóteses sobre as quais Corbett se baseava na sua argumentação a respeito dos comboios foram refutadas pelos fatos. As mais importantes hipóteses que frustraram a análise sobre o comboio não eram as hipóteses explícitas: o aumento do tráfego, o fim da prática do corso, a redução da autonomia dos navios de guerra ou o desenvolvimento do telégrafo sem fio. Ao contrário, foram as hipóteses implícitas, que eram universalmente percebidas como válidas, que vieram a falsear o seu resultado preditivo.
Por um lado, a hipótese implícita de que escoltas, navios de linha, mercantes e incursores enfrentavam o mesmo problema de detecção (o visual) foi esvaziada pelo submarino (na época, melhor descrito como um torpedeiro submersível), que podia se ocultar sob as águas e só atacar quando as condições lhe fossem favoráveis. O entendimento do submarino como um torpedeiro submersível havia feito com que este tipo de embarcação fosse percebido como parte da flotilha, com todos os limites desta, e portanto com atribuições eminentemente defensivas em águas costeiras ou pontos focais. Corbett reconhecia a novidade do submarino mas apontava que, na ausência de qualquer referência histórica, tudo o que se podia fazer era “se preparar para uma surpresa”.
A idéia de que o torpedeiro submersível pudesse vir a ser um incursor era inviabilizada pelas regras universalmente aceitas da guerra no mar daquela época. Estas exigiam que a guerra só fosse feita contra a navegação comercial dos beligerantes, impunham a obrigatoriedade de aviso ao mercante antes de qualquer ação violenta, obrigavam à salvaguarda da vida de tripulação e passageiros e, mesmo, ao resgate de náufragos. A navegação de bandeira neutra tinha que ser inspecionada para que se aferisse se suas cargas violavam os itens de bloqueio que eram considerados como sendo “mercadoria de guerra”. De fato, o entendimento vigente da função do incursor era o de apresar — e não afundar — a navegação comercial inimiga; embargar — e não destruir — o contrabando de guerra em navios mercantes neutros.
Era impossível ao torpedeiro submersível executar estes procedimentos, então internacionalmente reconhecidos, de se identificar, apresar o navio ou dar condições de salvamento à tripulação e passageiros antes de afundá-lo. Como resultado, quando a Alemanha Imperial adotou a guerra submarina irrestrita — ataque sem aviso a toda navegação numa determinada área, sem salvaguarda das vidas —, modificou-se inteiramente o quadro dentro do qual Corbett havia elaborado a sua análise. O ataque sem aviso contra toda navegação, beligerante ou neutra, esvaziava ainda a hipótese de que haveria tempo para que cada mercante anunciasse estar sob ataque (a obrigatoriedade de se manter os rádios guarnecidos, nascida do afundamento do Titanic em 1912, ainda estava em seus inícios), ao mesmo tempo em que a submersibilidade do torpedeiro submarina e a inexistência de qualquer dispositivo de detecção sub-aquática impossibilitava uma resposta tempestiva de forças mais distantes, mesmo que apenas algumas horas distantes.
Por outro lado, em função das mesmas vantagens táticas de que o torpedeiro submersível dispunha, perdeu validade a idéia de que determinadas regiões focais — em especial, as terminais —fossem intrisecamente seguras, já que onde existia grande concentração do tráfego marítimo e de forças navais seria impossível a permanência de incursores navais inimigos. O que estava implícito era que estes incursores estivessem na superfície. Como resultado, a eficiência dos torpedeiros submersíveis incursores no ataque a mercantes era muito maior do que qualquer estimativa anterior antecipava para a ação de incursores navais. Estes fatores produziram perdas de mercantes de tal ordem e a tão baixo custo para a Alemanha Imperial que a própria sobrevivência da Grã-Bretanha passou a estar ameaçada. O Almirantado britânico estava convicto de que era impossível organizar comboios para o tráfego marítimo, por um erro na contabilidade dos navios que chegavam e partiam; persistindo na navegação independente, os resultados da guerra submarina em 1916 e as previsões para 1917 foram fatalmente sombrios. Só a adoção do comboio salvou a causa aliada.
Assim, pode-se dizer que o principal erro de Corbett não estava na avaliação tática que ele empreendera, nem nas considerações estratégicas, mas sim na suposição de que os limites políticos que regiam a guerra a seu tempo permaneceriam intactos. Não foi tanto a inovação tática do submarino que refutou suas conclusões, nem a adoção de uma estratégia incursora pelos alemães, mas sim a disposição alemã de incorrer nos riscos e aceitar os custos de se tornar um pária internacional. Percebe-se, assim, como uma teoria válida, aplicada de forma consistente, pode produzir resultados equivocados, em função da frustração de suas hipóteses e, principalmente, da frustração de suas premissas ocultas, das quais o formulador nem sempre tem consciência.
É, portanto, oportuno salientar que nem sempre inovações táticas, por mais excepcionais que sejam; ou estratégias, por mais eficientes que sejam, contribuem automaticamente para a obtenção dos propósitos da guerra. A onipresença das dimensões táticas, estratégicas e políticas em qualquer ação ou opção bélica só pode ser descurada sob o risco de resultados adversos. De fato, há que se considerar que os ataques submarinos alemães causaram grande dano à navegação aliada, mas em nada alteraram a continuidade do bloqueio à Alemanha, nem restringiram a liberdade do uso do mar pelos aliados para operações militares. As demandas políticas que as necessidades táticas dos submarinos exigiam — o abandono das convenções de guerra no mar e o ataque indiscriminado a neutros —acabaram por se revelar raiz da derrota alemã, ao propiciar a entrada dos Estados Unidos na guerra. Finalmente, muito do sucesso alemão resultou de um erro de avaliação britânico que adiou a adoção dos comboios. O desenvolvimento de técnicas anti-submarinos e a adoção de sistemas de comboio modernos acabaram por impor uma lógica de atrição que, progressivamente, elevou os custos alemães de sustentação da guerra submarina até o ponto em que se podia argumentar, em fins de 1917, que os aliados não eram os que mais sofriam com a continuidade da guerra submarina, mas sim a própria Alemanha Imperial. Assim, a sedução pelo desempenho combativo do torpedeiro submersível é um caso rico em ensinamentos: do sucesso de se fazer o inesperado, dos riscos de se fazer o proibido, da imperenidade de vantagens combativas numa guerra e da dificuldade de se fazer uso do mar para os propósitos da guerra.
Embora haja muito o que aprender e refletir a partir da leitura de Corbett, não se deve perder de vista uma cautela. Corbett escrevia para uma realidade específica: a da Grã-Bretanha. O que estava em jogo não era a formulação de uma teoria geral da guerra no mar — embora ele a tenha formulado — mas sim o esclarecimento do oficialato da Marinha Real e a formação da opinião pública britânica. Some principles of maritime strategy não deve assim ser tomado como um trabalho isolado, independente das atividades educacionais, políticas, intelectuais e mesmo militares de seu autor — dado o papel que o Royal Naval College tinha como estado-maior informal de Fisher.
4.7 - UM BALANÇO DA GUERRA NO MAR
É arriscado, talvez mesmo perigoso, que oficiais de marinha baseiem seus entendimentos da guerra no mar e dos assuntos marítimos em Mahan. Por um lado, Mahan compartilha com o mundo naval uma nostalgia da era da vela - quando comandar no mar era se