Brasil terá petróleo, mas e a soberania?
Muito bem observado pelo jornal “The New York Times”, a atual crise internacional de energia pela primeira vez é causada pelo crescimento da demanda, e não pela redução da oferta. As duas grandes crises de aumento do preço do petróleo na história recente (1973 e 1979) foram deflagradas por decisões em parte políticas (em parte puramente econômicas) dos países produtores de petróleo de diminuir o fornecimento –e, no caso da revolução islâmica do Irã, pelo caos que tomou conta do país.
As conseqüências do que se convencionou chamar de “choques” do petróleo de 30 anos atrás foram profundas e se fazem sentir até hoje. Alguns exemplos: a tentativa de Saddam Hussein de controlar grande parte do petróleo do Golfo Pérsico; a dependência européia do fornecimento de energia (sobretudo gás) da União Soviética/Rússia; o pesado envolvimento militar americano no Oriente Médio.
O barril do petróleo bate agora nos 100 dólares, mas importante é notar que os preços corrigidos pela inflação da moeda americana já quase empatam com o recorde de 1981, quando (a preços atuais) o barril chegou a custar 102 dólares. Desta vez, porém, não são guerras, revoluções ou boicotes árabes os principais motivos da subida, mas sim a sede por petróleo de economias como as da China e Índia.
Em outras palavras, são mais consumidores disputando um produto essencial cuja oferta –colocado em palavras bem simples– não consegue acompanhar a demanda. É um fato de importância incalculável, principalmente se for traçado um paralelo com os choques de três décadas atrás. O mundo daquela época hoje até parece simples, pois impunha às grandes potências (e grandes consumidores) de então uma pergunta direta: como controlar as principais áreas produtoras (quer dizer, Oriente Médio) e seus acessos e saídas?
Hoje não só multiplicaram-se as grandes potências consumidoras, especialmente com a entrada da China, mas também multiplicaram-se as áreas produtoras, especialmente no Mar Cáspio e na costa ocidental da África. A “geopolítica” do petróleo atual, para usar uma expressão bastante surrada, provavelmente deixaria atônito até mesmo um Conde Metternich, o lendário diplomata austríaco que tinha de negociar no começo do século XIX uma nova ordem européia levando em consideração um mosaico incontrolável de interesses opostos de várias potências.
Nos termos mais abrangentes possíveis, e a prazo curto, o barril de petróleo a 100 dólares enfraquece consideravelmente americanos e europeus. E favorece alguns dos regimes mais ditatoriais, corruptos e intratáveis do planeta. Aqui não se trata de um julgamento moral: o adjetivo “intratável”, por exemplo, é usado do ponto de vista de Washington. É óbvio que o expansionismo russo –e a mão dura de Vladimir Putin a partir do Kremlin– está ligado à recuperação econômica da Rússia a partir dos preços de exportação de energia (e seu mercado cativo na Europa Ocidental).
É suficientemente claro que o regime dos aiatolás no Irã só consegue superar as severas sanções (em parte impostas desde 1979) graças ao petróleo. A sede chinesa de petróleo está transformando o quadro de negócios na África, abrindo a países como Angola (um dos alvos principais da China) e Nigéria barganhas insuspeitadas menos de 20 anos atrás. Até mesmo quem não tem petróleo, como a Turquia, se beneficia vigorosamente do ponto de vista militar e estratégico pelo fato de que sua posição geográfica é fundamental para determinar como e por onde passará o petróleo do Mar Cáspio.
Já se falou bastante que a aventura bolivariana (ou como se quiser chamar seu experimento ditatorial) de Hugo Chávez está diretamente ligada ao preço do barril do petróleo. É uma dádiva ou uma maldição? Com exceção dos Emirados Árabes Unidos, dificilmente comparáveis a outros países produtores de petróleo dado seu ínfimo tamanho, nenhum dos outros produtores beneficiados pela chuva de petrodólares de 30 anos atrás entrou no grupo das principais economias do mundo (coisa que a Coréia conseguiu, e não produz petróleo).
Vem daí outra lição importante quando se vê que o pensamento bastante retrógrado de autoridades federais brasileiras coloca como sinônimos “amplas reservas de petróleo” e “soberania nacional”. China e Japão são grandes consumidores, e bastante soberanos. Parece-me que exercer soberania nacional é muito mais ligado à capacidade de gerenciamento e uso dos próprios recursos, do que simplesmente possuí-los –e ligado à capacidade de enfrentar a concorrência lá fora, um de nossos principais pontos fracos (quem é mais importante para Angola hoje, a China ou o Brasil?).
O mundo do petróleo a 100 dólares não será um mundo mais fácil. Ao contrário –talvez alguns nostálgicos até sintam falta de um mundo, o que já acabou, no qual alguns podiam fazer o papel de polícia (como EUA e URSS fizeram) e acomodar interesses. Até que um novo arranjo surja, vai passar bastante tempo. E correr muito petróleo, quer dizer, muito sangue, parafraseando o título do célebre livro de Michael Klare, no qual petróleo e sangue são sinônimos.
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