O Triângulo EUA/ Rússia/Irão
Alexandre Reis Rodrigues
O Iraque, ao contrário do que acontecia há dois ou três meses atrás, quase que deixou de aparecer nas páginas dos jornais; quando é referido é mais a propósito da possibilidade de ser invadido no norte pelas Forças Armadas turcas, em perseguição dos guerrilheiros do PKK, do que pela continuação da guerra civil.
De facto, a segurança e estabilidade interna têm vindo a melhorar de dia para dia. Tudo se pode alterar a qualquer momento e voltar ao passado, mas para já o que há a registar é uma redução das confrontações e do número de baixas para quase metade (de 5300 baixas em Junho passou-se para 3000 em Setembro). Estes números respeitam tanto a baixas civis como a militares, o que significa que os progressos estão a verificar-se nas duas guerras principais em que o país tem estado mergulhado: a guerra contra a ocupação americana e a guerra civil, entre sunitas e xiitas, entre sunitas e jiadistas e entre facções rivais dos xiitas.
Parte dos progressos alcançados são certamente atribuíveis ao esforço militar, sob a liderança do general Patraeus mas a redução do nível de confrontação interna tem que ter a ver, sobretudo, com alterações no quadro político em que a guerra civil nasceu. É este último aspecto que importa salientar e tentar analisar; é nele que pode residir o ponto de viragem de que já se vêm alguns sinais, ainda que muito ténues. A situação continua frágil mas é mais promissora do que se devesse apenas à acção militar; neste último caso, provavelmente, estaríamos apenas perante um recuo táctico das forças de insurreição, numa espera de melhor oportunidade para retomar as hostilidades.
Não se julga que o novo quadro político se tenha gerado no Iraque, por vontade própria das facções em confronto, esgotadas por uma luta fratricida, sem desfecho à vista; a origem da mudança está no exterior, em alterações, talvez ainda pouco perceptíveis mas nem por isso menos reais, no relacionamento dos EUA com o Irão e na agenda política da Rússia com ambos.
É verdade que o tom extremamente belicoso, quer da parte da Bush (possibilidade de uma III Guerra Mundial se o Irão tiver armas nucleares), quer da parte de Ahmadinejad (irreversibilidade do programa nuclear) continua a ocupar os cabeçalhos da imprensa mas, não obstante isso, há também sinais de que uma complexa e subtil ofensiva diplomática, em curso há algum tempo, pode estar a dar os primeiros frutos. A recente visita de Putin a Teerão, no âmbito da Cimeira do Mar Cáspio, veio, acelerar esse processo. Vejamos como.
Para a Rússia, um Irão com armas nucleares, é tanto ou mais difícil de aceitar do que pelos EUA. Não é o receio de um ataque que preocupa os russos; é a ascensão do Irão como potência regional numa área de interesse directo para a Rússia, originando, provavelmente uma corrida aos armamentos por parte dos países do Golfo e uma maior interferência americana na zona para a protecção dos seus aliados tradicionais (Arábia Saudita, Kuwait, etc.). Calcula-se que Putin, nas conversações que manteve com Khamenei, pediu contenção nas questões nucleares, oferecendo em troca a solidariedade da Rússia e a oposição a um ataque americano.
Os detalhes desta proposta terão sido discutidos, duas semanas mais tarde, no final de Outubro, na visita que Lavrov fez a Teerão. Nada consta em termos oficiais sobre o que possa ter ficado acordado; no entanto, certamente ligado com este assunto, foi posteriormente anunciado que a Rússia estava a preparar, sob a supervisão da IAEA, o primeiro fornecimento de urânio para permitir a entrada em funcionamento da central nuclear de Bushehr. É um sinal de boa vontade da Rússia depois de ter suspendido a colaboração que estava a dar para conclusão da central, sob alegação de pagamentos em atraso. O sinal, em qualquer caso, é mais político do que prático: sabe-se que a central só entrará em funcionamento seis meses depois da recepção do urânio e ainda não foi anunciada qualquer data para a sua entrega. Por outras palavras, a Rússia continua a não querer largar de mão a chave para a entrada de funcionamento da central, presumivelmente à espera que o Irão confirme primeiro que abandona a pretensão de ter armas nucleares.
Teerão não poupou esforços a chamar a atenção de todo o mundo para as promessas de solidariedade russa mas a proposta de Putin, na prática, provocou uma intensificação do debate sobre o rumo a dar à política externa, pondo em dúvida a consistência do caminho que o Presidente Ahmadinejad protagoniza, em nome da ala radical: que é a altura de correr riscos, para aproveitar as circunstâncias especialmente favoráveis do momento (EUA enfraquecidos, Iraque com um governo amigo, inesperado maior rendimento do petróleo e gás, etc.).
O debate entre as elites iranianas vai continuar por mais algum tempo; a questão central é a de decidir o que é melhor para o Irão: se possuir armas nucleares em detrimento de uma parceria com a Rússia (a posição dos radicais) ou seguir um caminho com menos riscos - entendimento com a Rússia e postura mais racional em relação aos EUA - mas, eventualmente, menos conducente à obtenção do estatuto de potência regional (a posição de Rafsanjani, Al Larijani que se demitiu recentemente das elevadas funções que tinha na estrutura do Estado, etc.). Khamenei, que tomará a decisão final, ainda hesita; provavelmente, vai esperar pelas eleições presidenciais de Março, no próximo ano, e decidir depois, em função da correlação de forças entre radicais e reformadores que o acto eleitoral revelar.
O que ninguém tem dúvidas, em Teerão, é sobre a necessidade de «segurar» o Iraque, isto é, garantir que um governo sunita com exclusão de todos os xiitas, como o que governou o país durante o tempo de Saddam, é hipótese que não se repetirá. O risco, aos olhos do Irão, pode ter existido durante algum tempo, quando os EUA começaram a apoiar-se nos sunitas, inclusivamente armando as suas milícias, perante a incapacidade do governo xiita controlar minimamente a situação.
Perdida a expectativa de uma retirada próxima dos americanos, o Irão começou a ajustar a sua estratégia para dissipar esse perigo, ao mesmo tempo que concordava com conversações bilaterais com os EUA sobre a segurança no Iraque. Os resultados estão à vista: as hostilidades entre as duas principais facções xiitas (Supreme Iraqi Islamic Council e a de Muqtad al Sadr) parecem começar a ser coisa do passado, com o anúncio de que o Mahdi Army recebeu ordem para suspender todas as acções e iniciar o processo de transformação num movimento político legal. Os sunitas terão tido garantias de que não seriam marginalizados. Por isso é que a situação geral no país tem melhorado.
Onde não parece haver qualquer flexibilidade por parte do Irão é sobre as exigências do ONU para parar as actividades de enriquecimento de urânio. O relatório da IAEA, para apresentação ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e servir de base à possível aprovação de um novo pacote de sanções económicas, mostra que o Irão não fez qualquer esforço para levar a IAEA a suavizar os termos empregues quanto à falta de colaboração. Calcula-se, no entanto, que estando em curso um processo de negociações com os EUA, Teerão tenha preferido não mostrar-se flexível. Quando chegar essa altura será para receber algo de substantivo em troca, directamente dos EUA.
Estes acompanham estas evoluções, obviamente, com a maior atenção e interesse. Se a Rússia for bem sucedida nos seus actuais esforços de contenção do Irão, a solução do problema do Iraque terá boas hipóteses de continuar no bom sentido. Naturalmente, a Rússia vai ligar esta sua intervenção com as conversações em curso com os EUA, procurando contrapartidas; os primeiros contornos deste tema já estão à vista com a declaração do Secretário da Defesa americano, de que o elemento europeu do escudo de protecção antimíssil, na Polónia e na República Checa, só avançará se a ameaça iraniana se confirmar!
Note-se que até há pouco tempo esta hipótese não se punha; a instalação dos mísseis e dos radares era assunto inquestionável, para avançar como planeado, independentemente dos apoios que, em alternativa, a Rússia pudesse dar, nomeadamente através do radar de Gamala. A flexibilidade americana é, de facto, maior, quer em relação à Rússia, quer em relação ao Irão; muita coisa mudou desde o tempo, não muito distante, em que Rumsfeld costumava dizer que o «Irão precisava tanto de uma central nuclear como de areia do deserto». Presentemente, os EUA já não falam da central nuclear de Bushehr.
É possível, nestas novas circunstâncias, que a melhoria do relacionamento entre os três se vá consolidando. Porém, nada está assegurado. Há um perigo especialmente importante que continuará pendente: se o Irão se sentir marginalizado por qualquer entendimento bilateral dos EUA com a Rússia o mais provável é que tudo faça para o boicotar; obviamente, a Rússia fará o mesmo numa situação semelhante. Qualquer entendimento para ser consistente terá que ser sempre a três mas isso será muito difícil porque os interesses são muito diversos.