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Mensagem
por Clermont » Dom Mar 26, 2006 4:04 pm
INTRODUÇÃO.
Ao entregar ao público este depoimento sobre a FEB, os Oficiais da Reserva sentem estar cumprindo um dever de consciência: o de transmitir ao país algumas observações sobre a nossa recente experiência de guerra.
Pela primeira vez, depois de 1870, viu-se o país envolvido numa guerra externa e tropas brasileiras atravessaram o Atlântico para lutar em solo europeu. Problemas inteiramente novos e difíceis se apresentaram, desafiando a capacidade de trabalho de nosso povo e do nosso governo. Quais os resultados alcançados e quais as soluções adotadas, através de um balanço honesto dos erros e omissões verificados – eis o que convém examinar, passada a conjuntura, para meditarmos sobre as suas lições, porque, é bem possível, em futuro mais próximo do que poderíamos esperar, sejamos chamados a desempenhar uma tarefa muito mais ativa e ingente do que a cumprida nesta última guerra.
Com efeito, não deveremos ter ilusões, nem deixar a nação na ignorância das perspectivas de uma III Guerra Mundial e da sua brutal realidade. As idéias de colaboração internacional e desarmamento universal são, hoje, apenas despojos de um sonho frustrado, o sonho de um mundo só, inspirado nas quatro liberdades fundamentais. Os anseios do homem do povo, por um futuro tranqüilo de liberdade e justiça, foram mistificados na interpretação dos próprios documentos que, no auge da guerra, alimentaram a sua ilusão: a Carta do Atlântico e os acordos de Teerã e Ialta. A Organização Internacional, planejada para manter a paz, tornou-se, mais uma vez, impotente, convertida em centro de debates estéreis ou de tribuna internacional de propaganda. As alianças militares tornaram-se os objetivos imediatos da diplomacia e o mundo dividiu-se, irremediavelmente, sob o signo do ódio ideológico, em dois blocos poderosos, decididos a empalmar o seu destino na primeira oportunidade. A linha Stettin-Trieste, no Ocidente, é o símbolo desta separação trágica e os tiros que se ouvem na Grécia e na China são as escaramuças iniciais da tomada de posições preliminares pelos dois blocos, na previsão do grande choque. A tensão da “guerra fria” pode converter-se, de uma hora para outra, em incêndio da catástrofe.
E, desencadeada a III Guerra Mundial, será ingenuidade esperar uma posição de neutralidade do nosso país. Nossa política interna e nossos compromissos pan-americanos, que o último tratado do Rio de Janeiro deixou bem explícitos, já marcaram o nosso rumo: combatentes os Estados Unidos, mais cedo ou mais tarde, estaremos a seu lado. Se a nossa participação na I Guerra foi quase nominal, se ainda na II Guerra foi modesta, tudo indica que, nesta próxima, ela deverá ser bem mais árdua e extensa. Na própria América, em nossas fronteiras medidionais, não podemos deixar de anotar, com inquietação, os sinas de ressurreição de um caudilhismo que julgáramos definitivamente ultrapassado (1).
Com o pensamento, pois, na trágica e insondável eventualidade de uma III Guerra Mundial, nós nos abalançamos a examinar alguns problemas que vimos e sentimos na nossa passagem pelo Exército e, particularmente, na FEB.
Nossos estudos foram conduzidos num sentido de observação e de pesquisa e, por isso mesmo, quase sempre revestidos de uma feição crítica de cujo acerto se pode divergir mas não duvidar do seu espírito de colaboração.
Assim se muitas das nossas observações parecerem irreverentes ou apaixonadas, não se descubra nelas nenhum sentido niilista, nenhuma intenção negativista ou subversiva. Ninguém ousará atirar-nos esta pecha, depois de cumprirmos o nosso dever na linha de frente, de que muitos dentre nós ainda guardam, em seus corpos, gloriosas cicatrizes.
O silêncio fácil e sem riscos, a conspiração do silêncio, que ninguém ousa quebrar, pode tornar-se criminosa, quando se cala sobre os erros cometidos, quando não se ousa expor as deficiências observadas. Criminosa, não somente porque se estará, assim, preparando o caminho da repetição destes erros, de nada valendo o sacrifício daqueles que, por causa deles, sofreram uma vez, como sobretudo, - tendo tido, como teve, grande parte da nação, um conhecimento dessas falhas, de uma forma, muitas vezes, intencionalmente errônea, parcial ou exagerada – o silêncio relativo a tudo o que se passou, vem, também, criar em torno das autoridades e das suas afirmações, unilateralmente apologéticas, uma atmosfera de falsa confiança, de farisaísmo consciente, de convencional verniz oficial que soa falso e que ninguém leva a sério.
Com esses estudos, talvez, retardatários, não somos derrotistas, nem meu-ufanistas a respeito do nossos país.
O ufanismo verde-amarelo, cuja encarnação mais recente, insinuada levemente pela máquina de propaganda da ditadura, foi aquela de pretender, ao findar a II Guerra Mundial, ser o Brasil a 5ª Potência Mundial, o 5º Grande... é uma atitude ingênua e perigosa. O derrotismo, uma atitude estéril dos que não tem fé no futuro. O que devemos fazer é nos examinar, devagar, descobrir as nossas mazelas e cuidar dos remédios adequados.
Por outro lado, devemos dizer que a preparação militar do país, nas bases atuais, é insuficiente e quase inútil, colocada, como está, em termos superados pelo desenvolvimentos científico e industrial da maioria dos outros países. Mental e materialmente, estamos organizados como se fôssemos combater uma guerra tipo 1914, cuidando mais da existência de algumas dezenas de milhares de baionetas, vistosas em desfiles cívicos, do que de um programa de pesquisas científicas que venha dotas as nossas forças armadas de armamento e equipamento modernos.
Quando vemos um país como o nosso – país de economia semicolonial, com uma agricultura de sobremesa, uma indústria, apenas, incipiente e o deserto humano em torno, o vazio geográfico nas suas fronteiras interiores – gastar mais de 30 % das suas rendas com as Forças Armadas e, só 3 % com a sua agricultura, 10 % com a instrução e saúde do povo, doente e analfabeto em 70 % dos seus filhos, convém e é urgente proclamar que, mesmo sob o ângulo puramente militar, o problema está sendo considerado erroneamente.
Porque é de elementar bom senso que valerá mais termos uma agricultura sadia e variada e, instalado um parque industrial, do que um exército de algumas centenas de milhares de convocados nas casernas, dependente, entretanto, da boa vontade ou da usura de outros governos, para fardá-los, equipá-los, abastecê-los e até mesmo alimentá-los. Nesse sentido, o estabelecimento de uma usina siderúrgica, de uma nitro-química, de uma indústria de álcalis, ou, de uma refinaria de comsbustíveis, por exemplo, contribuirão mais para o fortalecimento militar do país do que as centenas de milhares de soldados que passaram nas fileiras nos últimos vinte anos.
Assim, o serviço militar obrigatório existente, atualmente, nada significa para a tranqüilidade do país. A nossa experiência de instrutores convenceu-nos de que a estada de um homem, por um período de um ano ou mais, em nossos quartéis, nos padrões atualmente adotados pelo Exército, é inútil e dispendiosa à Nação. A sua instrução é deficiente para qualquer guerra e, com mais razão, para a guerra moderna e, passados três ou quatro anos, o reservista é apenas um recruta que já passou pelo quartel. Na emergência de uma campanha, todos terão de receber instrução, de novo, partindo das noções mais elementares, como aconteceu com os convocados de 1942 em diante e com os destinados à FEB.
É desperdício, portanto, o serviço militar atual, no Exército, porque dar a instrução atual e da forma atual, ou nada dar, valem a mesma coisa, quando a passagem da caserna não chega a viciar o convocado rural com a tentação urbana.
Que fazer, entretanto?
Somos de opinião que, quanto ao Exército, deve este basear-se num núcleo profissional permanente, pequeno, porém, altamente treinado e equipado com as armas mais modernas, escola e modelo de um grande exército, quando as necessidades o exigirem, uma elite de especialistas, capaz de acolher a massa dos convocados numa mobilização rápida e geral, sem atropelos e indecisões, enquadrando-a para a instrução e combate, com a maior eficiência possível. É a lição da Wehrmacht, planejada por Von Seeckt e é o exemplo do exército norte-americano, às vésperas de Pearl Harbour, que devemos estudar e adaptar ao nosso país, como contingência da nossa fraqueza econômica.
Pelo Tratado de Versalhes, os aliados limitaram as forças do Exército Alemão a um máximo de 100 mil homens, para policiamento interno, proibiram a conscrição anual, com o fim de evitar a criação de reservas treinadas, destruíram o seu armamento pesado, vedaram-lhe a aviação militar e instituíram uma Comissão Inter-Aliada de Controle.
Movendo-se em quadro tão estreito, sob fiscalização dos seus inimigos vitoriosos, a direção da Wehrmacht logrou, entretanto, organizar-se de tal forma, que, quando Hitler assumiu o poder e ousou, em 1935, decretar o serviço militar obrigatório, convocando a classe de 1914, setecentos mil homens puderam encontrar uma organização perfeitamente apta para a sua incorporação e treinamento, número que, no ano seguinte, pelo serviço bienal, passou a uma milhão, quinhentos e onze mil soldados.
“Os 100 mil homens, diz Churchill, foram 100 mil líderes. Assim que começaram a expandir-se, soldados transformaram-se em sargentos, sargentos em oficiais.”
Essa, a obra de Von Seeckt que, planejada entre 1920/1934, permitiu a rápida remilitarização alemã de 1935/1939.
Idêntico fenômeno de prodigiosa expansão militar, movida por razões diferentes, porém partindo de um núcleo pequeno, ocorreu com as Forças Armadas Americanas.
“Quando Hitler começou a sua série de agressões, diz o General Marshall, nós não tínhamos Exército. Havia simples esqueletos de 3 e meia divisões, dispersas em pequenas unidades em território americano. Era impossível, ainda assim, treinar essas poucas unidades como divisões, porque faltavam transporte-motor e outras facilidades e os recursos para manobras adequadas não eram suficientes. As Forças Aéreas consistiam em alguns poucos esquadrões parcialmente equipados, servindo nos EE. UU., Panamá, Havaí e Filipinas: seus aparelhos estavam obsoletos e dificilmente sobreviveriam a uma único dia de modernos combate aéreo. Faltavam-nos armas modernas e equipamentos. Quando o Presidente Roosevelt proclamou, em 8 de setembro de 1938, um limitado estado de emergência para os Estados Unidos, nós não passávamos em termos de força militar, de uma potência de terceira classe.”
Entretanto, em princípios de 1942, estavam os americanos em condições de alcançar um alvo de mobilização, no Exército de 3.600.000 homens, correspondendo a 71 divisões (59 de infantaria, 10 blindadas, 2 de cavalaria), e, em fins desse mesmo ano, sua força subia a 5.397.674 homens, com uma previsão, para 1943, de 8.248.000 soldados, correspondendo a 105 divisões, cálculo revisto depois, pelo desenrolar favorável da guerra, para 7.700.000 com 90 divisões.
A conclusão é que, quando as exigências da política ou da vizinhança não impõem, de imediato, a existência de grandes forças militares permanentes, as nações pobres, como a nossa, devem se voltar para uma organização de base profissional menor, porém eficiente, composta de “soldados de elite e de equipes selecionadas”, capaz de crescer, rapidamente, se as circunstâncias o exigirem. Porque, hoje, força militar é, antes de tudo, potencial humano, industrial e agrícola.
E o Brasil, antes de pensar em ter grandes forças militares, deve ganhar primeiro a batalha das 100 mil crianças que morrem anualmente, das centenas de milhares de tuberculosos (2), opilados, maleitosos e outros doentes que definham desamparados, dos milhões de patrícios que vegetam na ignorância, por falta de escolas; deve planejar, primeiro, a sua organização industrial e organizar o seu sistema de transportes; em suma, crescer, primeiro, demográfica, economia e socialmente para se tornar, depois, militarmente forte.
Assim, achamos que, organizado na base de um núcleo profissional permanente, o Exército deveria concentrar-se, por uma conscrição limitada, na preparação de especialistas – tão necessários à máquina militar, como úteis ao desenvolvimento econômico do país – dos graduados, dos quadros da ativa e da reserva, elementos essenciais da ossatura militar do país.
Nesse ponto, é conclusiva e deve servir de meditação, a experiência da FEB, emperrada na sua organização e desenvolvimento, pelas dificuldades de obter, em tempo e em número adequado, os especialistas, graduados e oficiais necessários à sua existência. Imagine-se que, em lugar dos 25 mil homens enviados à Itália, tivéssemos tido necessidade de organizar uma Força Expedicionária de 500 mil soldados; onde encontrar os oficiais, os graduados e, particularmente, os especialistas, capazes de transformá-la em realidade?
Duvidamos que, nas condições existentes e com a orientação seguida até agora, um problema dessa ordem tenha pronta solução.
Dentro dessas considerações gerais, devemos dizer, também, que a formação da Oficialidade da Reserva não está recebendo os cuidados que merece. Material, moral e profissionalmente, tudo está a desejar uma renovação dos métodos e cuidados quanto aos Centros de Preparação dos Oficiais da Reserva (CPOR).
Pequeno é o número dessas unidades em funcionamento, mal instaladas em grande parte, deficientes em material e em locais para a instrução básica, orientadas por um programa heterogêneo e dispersivo de treinamento, com muitas matérias inúteis, servidas por um corpo reduzido de oficiais instrutores, recaindo a instrução, quase sempre, em sargentos monitores que, de simples auxiliares, se tornam instrutores permanentes.
Sendo a conclusão do curso científico, ou equiparado, a condição indispensável para matrícula nos CPOR, e, na verdade, a maioria dos seus alunos é universitária, isto supõe uma base intelectual e uma série de conhecimentos que o Exército devia considerar, como ponto de partida, no programa de preparação dos oficiais da reserva e, até, na escolha cuidadosa dos próprios instrutores, poupando-se repetições ineficazes e, muitas vezes, constrangedoras.
Mas, na é isto que acontece, quando vemos, por exemplo, em meio de uma série de fatos que poderíamos multiplicar à vontade, um monitor do CPOR, sob o título de “Instrução Geral”, durante muitas horas por ano, limitar-se a dar aulas de História do Brasil, pela leitura de um compêndio elementar, entre silabadas do instrutor e mofa dos alunos, ou sob o título de “Moral”, pronunciarem-se alguns longos discursos, sem nexo e estilo. É oportuno encarecer uma revisão dos programas adotados e dos métodos seguidos, para um melhor aproveitamento do material humano, representado pelos CPOR e, ainda, não devidamente considerado.
Sobre o papel que a Oficialidade da Reserva representa, hoje, numa conjuntura de guerra, ninguém pode mais ignorá-lo. Expressivo, ainda nesse sentido, é o depoimento do General Marshall, no seu relatório da Vitória:
“Sem essa gente, eu não sei o que poderíamos ter conseguido nas primeiras fases da mobilização e treinamento. Sei que nossos planos teriam sido grandemente mutilados e, em conseqüência, a cessação das hostilidades na Europa teria sido retardada”, revelando, ainda, que 96 % dos quadros do Exército Americano saíram da Reserva: “Os oficiais que treinaram os nossos exércitos eram em sua grande maioria cidadãos-soldados. Eles tiveram a assistência inicial dos Oficiais da Ativa, porém, somente 2 % de todo Corpo de Oficiais eram profissionais e, ligeiramente maior, a percentagem da Guarda Nacional, cabendo 25 % diretamente ao Corpo de Oficiais da Reserva, 12 % a civis comissionados no oficialato por certas qualificações profissionais e 59 % a indivíduos vindos das fileiras.”
A formação adequada da Oficialidade da Reserva, através dos CPOR, é, portanto, fator de primeira grandeza na estrutura geral das Forças Armadas e uma forma simples de reforçar a segurança da Nação.
Um plano para a obtenção de cem mil Oficiais da Reserva, distribuídos proporcionalmente pelas Forças Armadas dentro de 10 anos, seja, a obtenção de 10 mil oficiais, por ano, entre as Forças Aéreas, Terrestres e Marítimas, eis um objetivo urgente e dentro das nossas possibilidades, que as autoridades militares deviam se propor a alcançar e, mesmo, desdobrar.
Tudo que se fizer nesse sentido, será compreendido pelo país e acolhido, com satisfação, por nós que já compartilhamos dessa dupla e honrosa qualidade de militares e civis, ao mesmo tempo, em nossa condição de Oficiais da Reserva.
Da conclusão dos nossos estudos, uma coisa deve ficar bem clara: é que, longe de diminuir a glória da FEB, mais avulta o acervo de serviços que ela prestou ao Brasil, pois cumpre afirmar e ressaltar que, apesar das muitas deficiências, omissões ou erros aqui apontados, a tropa brasileira se conduziu tão bem quanto qualquer outra durante toda a campanha.
Todas as missões recebidas foram integralmente cumpridas.
O homem brasileiro superou-se a si mesmo, surpreendendo aos mais otimistas. Espírito fértil em imaginação e improvisação, indiferente ao próprio sofrimento, com perfeita noção de honra e dever, o soldado brasileiro deixou indeléveis traços de sua efêmera porém brilhante passagem pelo teatro de operações da Itália.
CAMAIORE – MONTE PRANO – MONTE VALIMONA – BARGA – GALICANO – S. QUIRICO, na 1ª fase de operações; a tenaz defensiva de inverno nos MONTES BELVEDERE, CASTELO – VALE DE MARANO – TORRE DE NERONE – SOPRASASSO – RIOLA, na 2ª fase; a conquista de MONTE CASTELO – LA SERRA, alturas de MARANO, SOPRASASSO E CASTELNUOVO DE VERGATO, na 3ª fase; e, por fim, as jornadas de MONTESE, ZOCCA, COLECCHIO, FORNOVO DE TARO, com a rendição da 148ª Divisão Alemã, - são os fastos triunfais de uma marcha feita com honra e bravura.
Se erros, falhas ou omissões, houve, rebusquemo-los e apontemo-los para haurir ensinamentos e para maior exaltação e lustre eterno da FEB.
Por último, devemos prevenir que, na elaboração desse depoimento coletivo, não houjve nenhum plano preestabelecido, nenhum esquema prévio a que nos devêssemos cingir. A diversidade de formação intelectual e de temperamento de cada colaborador tornaria isso impossível.
Tendo havido liberdade de método, é natural que tenha, também, resultado certa flutuação de assuntos, ou, a ausência de muitos outros de capital importância, como, por exemplo, um exame do grande problema da FEB que foi a ausência de preparação moral e psicológica para a guerra.
Um documento que transmitisse alguns dados da nossa recente experiência militar e que examinasse alguns dos muitos problemas ligados à Defesa Nacional e sua organização militar terrestre, tal foi a nossa intenção. Se tivermos conseguido esse objetivo, teremos cumprido o nosso dever.
PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO.
Ao lançarmos esta 2ª Edição – esgotada a 1ª em duas semanas apenas – anima-nos o mesmo propósito inicial: o de, revelando ao país certas deficiências da nossa preparação para última guerra, contribuir para que, em caso de nova contingência, se não repitam certos erros capitais de que fomos testemunhas.
Ao contrário do que supõe muita gente respeitável, nada haverá de anormal que, num regime democrático, problemas dessa ordem sejam trazidos a público para debate e esclarecimentos porque, antes de serem competência de Estado-Maior e outros órgãos técnicos paralelos, são essencialmente, problemas do povo, do povo que paga impostos para sustento das suas Forças Armadas e na hora da guerra é o mais sangrado com o holocausto dos melhores dos seus filhos, a massa dos combatentes.
Houve quem, nas alturas de certos cargos administrativos ou no peso dos seus bordados, nos negasse o direito de cogitar desses assuntos, pretendendo simplesmente nos ignorar ou nos julgando de acordo com a sua vã suficiência.
A luta do bom-senso contra a rotina esterilizante não é de hoje.
Quando, em 1934, o então Major De Gaulle publicou o seu hoje clássico estudo, “Vers l’armée de métier”, (3) propondo novos horizontes para a organização militar francesa, não somente não se lhe deu atenção, mas também foi preterido na escala de promoções por ter sido considerado “um oficial perigoso”. E, em março de 1935, quando Paul Reynaud, compreendendo todo o alcance das concepções inovadoras de De Gaulle, se esforçou no Parlamento para que se levassse a efeito uma reforma militar nas forças francesas de onde partiu a oposição mais acirrada? Do Estado-Maior Geral francês e da Escola Superior de Guerra (4), sob a orientação indiscutida de Pétain, então, a mais alta personalidade militar da França, encarregado da organização militar após a guerra de 1918, generalíssimo até 1932 e Ministro da Guerra em 1935, com a legenda de Verdun e o bastão de Marechal da França.
Entretanto, quando ocorreu a batalha da França, em 1940, e as velhas e desarmadas divisões francesas se viram diante das modernas divisões blindadas nazistas, ninguém mais teve dúvidas com quem estaria a razão, se no bom-senso de um inquieto Major ou na rotina profissional de um aureolado Marechal!...
Entre as reações provocadas pelo nosso livro, houve algumas das mais curiosas.
Uma delas foi uma acre censura pela idéia de divulgarmos certos fatos que só ao Exército interessariam, devendo, portanto, ser encaminhados, em memorial reservado, aos órgãos competentes; que o livro provaria, apenas, a “falta de espírito militar” dos seus colaboradores, falta essa, por sinal, visível em toda a oficialidade da Reserva, devendo se lamentar, por isso, que à Itália não tivesse ido apenas oficialidade da Ativa; que o livro seria, ainda, “pueril” por fazer cavalo de batalha de fatos corriqueiros; finalmente, que a presença da oficialidade da Reserva na FEB se explicaria, apenas, pela oportunidade de fazer turismo na Itália e ganhar vencimentos em triplo!...
Outra, foi a de classificar o livro como “uma obra de destruição e de intriga”, “obra impatriótica”, não se compreendendo “como brasileiros dignos de tal nome concorram para sabotar a nossa organização militar”, “não sabendo como caracterizar os desígnios dos autores: se uma propaganda americana ou uma tentativa soviética, prevendo uma próxima guerra e procurando, pela intriga, impedir que nos organizemos eficientemente para nela tomarmos parte ativa”...
Como complemento das sugestões expostas em nossa INTRODUÇÃO, será oportuno clamar, aqui, pela restauração, em nossos costume administrativos, de uma sadia prática política, qual seja a entrega das pastas militares a elementos civis, políticos.(5)
Com a criação do Estado-Maior Geral a quem cabe por definição, a responsabilidade do planejamento e execução de toda a nossa política militar, na paz e na guerra, os Ministérios Militares deixaram de ter qualquer papel profissional para voltarem a ser aquilo que sempre foram, no mecanismo do nosso regime constitucional, funções eminentemente políticas.
Se invocarmos o exemplo das democracias inglesa e americana, tanto na guerra como na paz, será para a verificação de um fato: políticos, civis, quase sempre com experiência na condução de grandes empresas industriais ou comerciais, são os responsáveis pelos três ramos das Forças Armadas, assim como o Secretário da Defesa, seu condutor e representante no Gabinete Ministerial.
Embora em nossa história se tenha perpetrado a tradição das pastas militares serem obrigatoriamente confiadas a militares, recordaremos, entretanto, a passagem de um Ouro Preto, de um Saraiva, de um Ferraz, com uma tradição de eficiência que não pode ser facilmente esquecida e, na própria República, quando se fez exceção à regra geral, com a presença de um civil no Ministério da Guerra – Calógeras – foi para sermos contemplados com o melhor ministro de todo o período republicano, insuperado até hoje.
Função fundamentalmente política, o exercício de uma pasta ministerial exige uma natureza política para dar-lhe o brilho que não temos tido, na maioria das vezes, em nossas pastas militares, jungidas a uma terrível mediocridade administrativa.
Os Ministérios Militares estão a reclamar, não técnicos profissionais, mas homens de idéias gerais, políticos esclarecidos, civis competentes e práticos.
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ARRUDA, Demócrito Cavalcanti (Organizador) – Depoimento dos Oficiais da Reserva sobre a FEB, 3ª Edição, São Paulo, Editora Cobraci, s.d. (1ª Edição, Editora IPE, 1949; 2ª Ed, São Paulo, 1950)
(1) Se ainda for vivo, o autor dessas linhas deve sentir um desgosto profundo, ao olhar as fronteiras setentrionais e ver Hugo Chàvez...
(2) Digito isso e, ao mesmo tempo, vejo as campanhas do Governo Federal na televisão, de combate ao crescimento da tuberculose no Brasil de 2006...
(3) Basicamente, o fim do exército de serviço militar obrigatório, substuido por um exército profissional.
(4) E, sem esquecer, com o apoio do Partido Comunista Francês e outras agremiações socialistas. Que não aprovavam essa "tentativa pequeno-burguesa" de afastar as massas proletárias do serviço militar...
(5) Os autores sugeriram isso, em 1950. Só foram atendidos no final dos anos 1990. E, apenas, em parte, já que, no Brasil, não existe a figura do secretário civil das corporações, como nos EUA...