Quando toca a sirene no Centro de Meios Aéreos de Santa Comba Dão há nove corações que começam a bater com mais intensidade. Sem dizer palavra, os operacionais do Grupo de Intervenção de Protecção e Socorro (GIPS) da GNR vestem os casacos antifogo, colocam os capacetes e correm para o helicóptero. Em menos de dois minutos estão sentados nos bancos de lona da aeronave e prontos a partir para a frente de fogo.
O piloto liga os motores, recebe as coordenadas do local do incêndio, cumpre os procedimentos de segurança aeronáutica e descola em direcção à floresta.
O ruído dentro da aeronave impede a troca de palavras e os olhares tornam-se mais expressivos. Não há medo, mas a inquietude é evidente. As pulsações só abrandam quando se avista a coluna de fumo – pouco densa e esbranquiçada. É sinal de que as chamas não lavram com grande intensidade e o combate será mais fácil. Os riscos serão menores.
O helicóptero descreve um círculo ainda em altitude, verifica se há pessoas ou habitações em perigo e aterra próximo do fogo. Logo que a aeronave toca o solo, a máquina humana entra em funcionamento.
Sob o comando de um sargento, quatro homens retiram os batedores, os Macloud (um instrumento que faz de ancinho e enxada) e os dois extintores dorsais (com 20 litros de água cada). Os restantes operacionais colocam o balde do helicóptero em condições de fazer descargas e afastam-se. A descrição demora quase mais tempo do que a acção no terreno, cronometrada ao segundo. Não há pausas nem hesitações. “Cada elemento tem a sua função e sabe o que tem fazer a cada momento ou situação”, explica o comandante da 3.ª Companhia de GIPS de Viseu, capitão Cura Marques.
Após deixar os militares, o heli levanta à procura de um ponto de água para começar o combate aéreo e a equipa de nove homens dirige-se a um dos flancos do incêndio.
Seguem em fila indiana, com a adrenalina próxima dos limites. Se as chamas estão mais altas, os primeiros projectam jactos de água. Seguem-se os batedores, que malham no fogo de forma energética. No fim da fila os portadores dos Macloud remexem a terra ardida para impedir os reacendimentos.
Em menos de 40 minutos o incêndio está extinto. Em 2006 foi assim em 94 por cento dos casos (ver caixa). Os novos ‘bombeiros’ chegaram, actuaram e venceram o fogo. Este ano, apesar das previsões meteorológicas apontarem para um Verão com temperaturas altas, as expectativas são maiores. Fruto da experiência acumulada e alguns acertos nos equipamentos e metodologias, todos esperam conseguir melhores resultados.
Há dois anos, no rescaldo de um dos períodos mais devastadores para a floresta portuguesa, os bombeiros chilenos que vieram auxiliar no combate aos incêndios florestais fizeram um diagnóstico pouco abonatório sobre a forma como se atacava os fogos em Portugal. Segundo eles, os nossos bombeiros usavam muita água para extinguir as chamas e poucas ferramentas, o que favorecia a ocorrência dos temidos reacendimentos.
MÉTODO NOVO
Com a entrada em cena dos GIPS, o panorama modificou-se. O ataque ao fogo na fase nascente passou a ser prioritário. E as ferramentas passaram a ser encaradas como peças fundamentais para o combate, assim como a força física e psicológica dos operacionais.
“Na primeira intervenção a água tem pouco peso. O importante é actuar com estratégia, conhecimento e muita disciplina”, afirma Cura Marques, destacando a disciplina e o espírito de entreajuda como pilares essenciais na actuação das equipas especiais da GNR.
Sendo uma estrutura militarizada, o GIPS assenta numa cadeia hierárquica única, rígida e bem definida. Uma voz de comando é uma ordem inquestionável e, como tal, não há lugar a atritos entre operacionais, mesmo em situações de grande stress, garante o sargento Luís Davi. O profissionalismo é mais do que evidente, mas mesmo assim incapaz de contornar alguns dos problemas endémicos da cultura portuguesa, como é o caso da tendência generalizada para o improviso.
Em Santa Comba Dão, como na maioria dos Centros de Meios Aéreos para combate aos fogos florestais, as brigadas helitransportadas estão ‘arrumadas a um canto’ disponibilizado pelos bombeiros locais. Os operacionais ocupam uma pequena garagem que partilham com duas máquinas de lavar roupa e uma barulhenta arca frigorífica.
Enquanto aguardam pelo toque da sirene, ocupam os tempos livres com a leitura, a jogar computador, a navegar na internet ou a ver televisão. Nesta Fase Bravo, que se iniciou a 15 de Maio, as saídas têm sido praticamente nulas. Mas o inferno pode chegar a qualquer momento. E o grau de prontidão tem de estar sempre a cem por cento.
“Pode pensar-se que os GIPS é só fardas bonitas e carros novos mas não. É, sobretudo, muito sacrifício e abnegação”, sublinha Luís Davi.
Seleccionados com base em rigorosos critérios físicos e psicológicos, os militares da GNR destacados para o combate aos incêndios rodam pelas brigadas helitransportadas e terrestres para garantir uma melhor gestão do esforço e dos recursos.
A escala de serviço compreende seis dias de trabalho de 12 horas (08h00/20h00) seguidos de três dias de folga. Os elementos que estiverem um dia nos helis passam a integrar as brigadas terrestres no dia seguinte. No pico dos incêndios, em que se registam várias saídas, esta rotatividade revela-se fundamental para garantir o equilíbrio físico e psicológico dos operacionais.
Na brigada terrestre as exigências são igualmente grandes, mas os níveis de esforço são diferentes e mais repartidos. Por norma, as equipas – com cinco elementos cada – actuam em conjunto e servem de apoio às brigadas helitransportadas, sempre que o terreno permite o acesso à frente do incêndio.
O equipamento de protecção pessoal (ver infografia) é o mesmo – com excepção do Fire Sheltor – e as ferramentas base também. Mas em cada jipe todo-o-terreno há mais uma motobomba e um depósito com 700 litros de água, uma mangueira com cem metros, um ancinho especial de fabrico nacional, uma pá, um machado, um extintor e uma foice.
Se não estão a combater fogos as brigadas terrestres aproveitam para fiscalizar as florestas e sensibilizar as populações para a necessidade da limpeza dos terrenos. Por vezes, são mal recebidos. Mas na generalidade dos casos os moradores manifestam satisfação por se cruzarem com uma força de segurança.
“Chegamos a ir a sítios em que as pessoas nos dizem que não viam a GNR por ali há mais de um ano. E o facto de nós passarmos com mais frequência deixa os cidadãos mais descansados e atentos a possíveis transgressões”, refere o tenente José Lopes, comandante do Centro de Meios Aéreos da GNR, em Santa Comba Dão.
Os elementos dos GIPS receberam formação na Escola Nacional de Bombeiros, na Lousã, e fazem questão de se manter em reciclagem permanente, quer a nível físico quer teórico. ‘Instrução difícil, combate fácil’ é o lema adoptado.
“Temos que andar nestas actividades mais puxadas enquanto temos forças. O tempo de ganhar barriga fica para depois”, justifica o guarda António Marques, após fazer uma pausa no jogo de estratégia Age of Empires, do qual usa e abusa para passar os tempos mortos.
O militar de 27 anos esteve na Bósnia e no Kosovo em missões de paz ao serviço do Exército. O ano passado ingressou na GNR, directamente para o GIPS. Já passou por uma situação de grande perigo, quando uma língua de fogo inesperada quase atingiu a equipa, no Verão passado, em Tábua. O episódio não deixou marcas. Apenas serviu para lhe incutir mais respeito pelos fenómenos naturais, sempre que parte para um incêndio.
NOS LIMITES
O esforço dos militares quando estão numa primeira intervenção de combate a um incêndio é levado aos limites, físicos e psicológicos.
Nos treinos são simuladas situações para aproximar as exigências físicas às psicológicas e avaliar o comportamento dos operacionais. Porém, nenhum exercício se compara a uma acção de fogo real, onde as capacidades de resistência humana são verdadeiramente postas à prova.
“Ver um homem a querer beber água do depósito que já está vazio e ajudá-lo a ignorar a sede para continuar a combater o incêndio não é fácil para ninguém, mas é essencial para garantir que ninguém falha nas suas funções”, diz o capitão Cura Marques. O comandante da 3.ª Companhia de GIPS, que abrange Viseu, Armamar e Santa Comba Dão, quis sentir de perto a adrenalina do combate no terreno e no ano passado acompanhou as brigadas em mais de 40 saídas,
A aguardar pela primeira experiência real está o guarda Rebelo Marques, da Companhia de GIPS de Santa Comba Dão. Ofereceu-se como voluntário, trocando a vida “mais descansada” que levava em Lisboa pela agitação do combate aos incêndios, na região da Beira Alta. Casado há um ano com uma militar do Exército, sentiu grandes dificuldades em que ela aceitasse a sua entrada nos grupos de combate ao fogo da GNR. “A princípio não aceitou muito bem”, mas após o choque inicial acabou por se resignar.
O casal planeava ter um filho este ano só que a entrada no GIPS fez adiar este projecto de vida.
“Vamos ver como correm as coisas e tentaremos para o próximo ano”, revelou o militar. Enquanto aguarda pelo primeiro frente-a-frente com um fogo autêntico, o militar tem apenas uma ideia da forma como as pulsações aumentam quando a sirene toca no Centro de Meios Aéreos. Isto porque um elemento do GIPS se lembrou de gravar o som da sirene no telemóvel para surpreender os amigos. Quando o aparelho tocou, saltaram todos da cadeira, prontos para atacar as chamas. Os ritmos cardíacos dispararam, até perceberem que era alarme falso.
AMEAÇADOS COM UMA CAÇADEIRA
Os elementos dos GIPS arriscam a vida para salvar os bens da voracidade das chamas, mas a sua presença no terreno nem sempre é apreciada pelos cidadãos. “Uma vez uma equipa foi ameaçada por um homem armado com uma caçadeira, que não queria que o helicóptero tirasse água do seu tanque”, conta o capitão Cura Marques, comandante da 3.ª Companhia GIPS, em Viseu. Noutras ocasiões, em zonas mais isoladas, os moradores chegaram a atirar pedras à aeronave, numa tentativa de impedir que chegasse perto dos pontos de água particulares, mas essenciais para garantir a extinção das chamas florestais. Alheias aos deveres de cidadania e às normas legais, algumas pessoas “chegam a tapar os poços ou tanques de água com redes” para inviabilizar o abastecimento dos helicópteros mobilizados para o ataque aos fogos, adianta o oficial. Nestes casos, os guardas vêem-se obrigados a tomar conta das infracções e elaborar os respectivos autos de notícia para posterior procedimento judicial. As redes são confiscadas e se os proprietários mantiveram uma atitude que se revele deliberadamente prejudicial para o trabalho dos guardas ou dos bombeiros podem acabar detidos e conduzidos ao posto mais próximo.
EQUIPAMENTO DE PROTECÇÃO INDIVIDUAL DO GIPS
CAPACETE
Feito em material resistente ao choque e às altas temperaturas junto às chamas.
ÓCULOS
Preparados para proteger os olhos das faúlhas e das temperaturas elevadas.
LUVAS
Fabricadas com nomex kevlar, permitem agarrar um tronco em brasa sem haver perigo de queimadura.
CALÇAS
Tal como o casaco, são em tecido nomex e permitem estar mais próximo das chamas sem consequências.
MÁSCARA
Os soldados colocam um cogola na cabeça, resistente ao fogo, semelhante às usadas pelos pilotos de Fórmula 1.
FIRE SHELTER
Às costas levam um abrigo anti-fogo e uma mochila com água, um kit de primeiros socorros e outro de sobrevivência.
BOTAS
Em couro especial que resiste ao fogo e permite a respiração do pé. A sola está preparada para pisar brasas.
"NÃO COMPETIMOS COM OS BOMBEIROS", Cura Marques, comandante da 3.ª Companhia GIPS
Correio da Manhã – Com os bons resultados alcançados pelos GIPS em 2006 que metas traçaram para a época de fogos florestais deste ano?
- Cura Marques – O objectivo é melhorar a eficácia. É transpor os bons resultados para os distritos onde foram criadas novas companhias e, se possível, atingir os cem por cento de eficácia. Se não conseguirmos tentaremos pelo menos melhorar os índices conseguidos em 2006.
- O que distingue os elementos do GIPS dos bombeiros?
- Não somos melhores nem piores. Temos a nossa forma de actuar e conseguimos bons resultados. Mas não estamos a competir com ninguém. A nossa competição é interna, para atingir o máximo de cada um. Respeitamos muito o trabalho dos bombeiros e não pensamos sequer em competição, porque o nosso inimigo é comum.
- O que falta fazer para melhorar a prevenção?
- A GNR tem investido muito na prevenção e sensibilização das populações, alertando-as para a necessidade da limpeza das matas e dos terrenos. Mas continuamos a deparar-nos com três problemas essenciais. A dificuldade em notificar alguns proprietários, o facto de os emigrantes só chegarem às suas propriedades no Verão e as queimadas feitas pelos pastores. Sabemos que eles vão deitar o fogo, porque têm necessidade de o fazer, só não temos é forma de os controlar. A legislação está bem conseguida, mas é preciso que as pessoas sintam que têm de cumprir as normas.
HELICÓPTEROS MOBILIZADOS DE ACORDO COM RISCO DE INCÊNDIO
O plano aprovado pela Comissão Nacional de Protecção Civil (CNPC) prevê que os meios aéreos entrem em funcionamento de forma progressiva, durante a Fase Bravo e de acordo com o risco de incêndio.
Segundo um porta-voz do Ministério da Administração Interna, neste momento estão ao serviço das brigadas helitransportadas da GNR quatro helicópteros: em Loulé, Santa Comba Dão, Fafe e Vidago.
A presença dos Grupos de Intervenção de Protecção e Socorro (GIPS) foi alargada este ano a Viana do Castelo, Porto, Vila Real e Aveiro, prevendo-se a mobilização gradual de 14 aerotanques até ao dia 15 de Junho, data em que os dois Canadair entram em actividade.
Como a operacionalidade dos meios aéreos adquiridos pelo Estado sofreu um atraso, “foram contratados dez helicópteros que estarão em funcionamento na primeira quinzena de Junho”, informou o gabinete do ministro Rui Pereira.
Estas aeronaves servirão para transportar também as brigadas da Companhia Especial de Bombeiros, designadas por canarinhos. A nova estrutura tem um comando próprio e foi constituída com alguns dos bombeiros pertences às equipas helitransportadas existentes em 2005 e 2006. Dados como operacionais desde ontem, os canarinhos abrangem os distritos da Guarda, Castelo Branco, Portalegre e Santarém. A formação que receberam na Escola Nacional de Bombeiros obedece aos padrões internacionais, o que os habilita a partir para missões no estrangeiro em 24 horas.
Em 2008 o espaço de intervenção destas brigadas será alargado aos distritos de Évora, Beja e Setúbal.
Correio da Manhã