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Mensagem
por Clermont » Sáb Jul 28, 2007 5:44 pm
A OUTRA GUERRA: EX-COMBATENTES DO IRAQUE TESTEMUNHAM – PARTE 02.
Por Chris Hedges and Laila Al-Arian – The Nation, 9 de julho de 2007.
Incursões
”Assim a gente começou, nesse dia em particular,” relembra o especialista Philip Chrystal, 23 anos, de Reno, que disse ter invadido entre vinte e trinta lares iraquianos durante uma temporada de onze meses em Kirkuk e Hawija que terminou em outubro de 2005, servindo com o III Batalhão, 116ª Brigada de Cavalaria. “Isso começa com as viaturas OPsi (Operações Psicológicas), sabe, com grandes alto-falantes tocando uma mensagem, dizendo, deponham suas armas, se vocês a tiverem, próximo a porta da frente das suas casas. Por favor, venham para fora, blá-blá-blá-blá-blá. E nós tínhamos “Apaches” sobrevoando para segurança, se eles fossem necessários, e isso também era uma boa exibição de força. E a gente corria em volta – a gente já tinha feito algumas casas, nesse ponto, e eu estava com meu líder de pelotão, meu líder de GC e talvez um par de outras pessoas.
“E nós nos aproximamos dessa casa isolada,” disse ele. “Nessa área de plantação, elas eram, construídas com pequenos quintais. Assim elas tinham a casa principal e uma área comum. Eles tinham, uma cozinha e um depósito. A gente estava se aproximando, e eles tinham um cachorro da família. E ele estava rosnando feroz, porque estava fazendo o trabalho dele. E o meu líder de GC, assim, sem mais nem menos, simplesmente atirou nele. Aquele filho da puta, ele atirou nele e o tiro entrou e saiu pela mandíbula. E assim eu vi aquele cachorro – eu sou um grande fã de animais; eu adoro animais – e aquele cachorro ficou correndo em volta, espalhando sangue por todo o lugar. E, sabe o que estava acontecendo? A família estava sentada bem ali, com três criancinhas e a mãe e o pai, horrorizados. E eu estava sem palavras. E aí, eu gritei com ele, assim, ‘Que porra você está fazendo?’ E o cachorro ganindo. Ele estava chorando sem a mandíbula. Eu eu olhando a família, e eles lá, sabe, mortos de medo. E eu disse pro meu pessoal, tipo assim, ‘Mas que porra de tiro esse, hein? Pelo menos mata ele, porque ele não pode ser curado...’
E – eu fico com lágrimas nos olhos só de dizer isso agora, mas – e eu tinha lágrimas nos olhos também, na hora – eu estava olhando para os guris e eles estavam tão assustados. Então, eu levei o intérprete comigo, peguei minha carteira e dei pra eles, uns vinte ‘paus’, porque era tudo que eu tinha comigo. E, sabe, eu fiz com que ele desse pra eles e lhes dissesse que eu sentia muito que aquele bundão tivesse feito aquilo.
“Será que algum relatório foi preenchido sobre isso?” ele perguntou. “Alguma coisa teria sido feita? Alguma punição aplicada? Não, absolutamente não.”
O especialista Chrystal disse que tais incidentes eram “muito comuns”.
De acordo com entrevistas com vinte e quatro ex-combatentes que participaram em tais incursões, elas eram uma realidade implacável para os iraquianos sob ocupação. As forças americanas, impelidas por uma pobre inteligência, invadiam as vizinhanças onde os insurgentes operavam, irrompendo em casas na esperança de surpreender combatentes ou encontrar armas. Mas tais apreensões, disseram eles, eram raras. De longe mais comum eram estórias nas quais soldados assaltavam uma casa, destruíam propriedade na sua busca fútil e deixavam civis aterrorizados lutando para reparar os danos e começar o longo tormento de tentar achar membros da família que foram arrebatados como suspeitos.
As incursões tinham lugar, entre a meia-noite e as 5 da manhã, de acordo com o sargento John Bruhns, 29 anos, da Philadelphia, que estima ter tomado parte em incursões em quase 1000 lares iraquianos. Ele serviu em Bagdá e Abu Ghraib, uma cidade infame por sua prisão, localizada 32 Km ao oeste da capital, com o I Batalhão da 3ª Brigada, 1ª Divisão Blindada, por um ano começando em abril de 2003. Suas descrições dos procedimentos de uma incursão, ecoam semelhantes àquelas de oito outros ex-combatentes que serviram em localizações tão diversas como Kirkuk, Samarra, Bagdá, Mosul e Tikrit.
“Você queria pegá-los com a guarda baixa,” explicou o sargento Bruhns. “Você queria pegá-los dormindo.” Cerca de dez soldados estavam envolvidos em cada incursão, ele disse, com cinco estacionados fora e o restante revistando a casa.
Uma vez que estivessem na frente da casa, os soldados, alguns usando capacetes de kevlar e vestes flak (coletes à prova de balas) com lança-granadas automáticos montados em suas armas, chutavam a porta, de acordo com o sargento Bruhns, que sem paixão, descreve o procedimento:
“Você entrava correndo. Se houvesse luz, você a acendia – se as luzes estivessem funcionando. Se não, você pegava as lanternas... Você deixava uma esquadra de fuzileiros fora, enquanto outra esquadra de fuzileiros entrava. Cada líder de esquadra tinham uma conjunto transmissor-receptor de cabeça com o qual ele se comunicava com o outro líder de esquadra.
“Você subia as escadas. Você agarrava o homem da casa. Você o tirava da cama na frente de sua esposas. Você o colocava contra a parede. Você tinha soldados novos, praças de 1ª classe [PFC, ou privates first class], e especialistas que entravam nos outros cômodos e arrebanhavam a família, e você os punha todos juntos. Então você entrava num cômodo e o reduzia a pedaços até ter certeza de que não havia nenhuma arma ou qualquer coisa que eles pudessem usar para nos atacar.
“Você pegava o intérprete e o homem da casa, e você o tinha sob mira, e dizia ao intérprete para lhe perguntar: ‘Você tem quaisquer armas? Você tem qualquer propaganda anti-americana, alguma coisa – qualquer coisa – aqui que possa nos levar a acreditar que você, de algum modo, está envolvido em atividade da insurgência ou anti-coalizão?’
“Normalmente, eles diziam, ‘não’, porque isso, normalmente, era a verdade,” disse o sargento Bruhns. “Então, o que você fazia era pegar as almofadas do sofá deles e esvaziá-las. Então, você virava o sofá de cabeça pra baixo. Você ia até a geladeira, se eles tivessem geladeira, e você jogava tudo no chão, e você abria suas gavetas e as esvaziava... Você abria seus armários e jogava todas as roupas no chão e, basicamente, deixava a casa deles parecendo como se tivesse sido atingida por um furacão.
“E, se você achava alguma coisa, então você os detinha. Se não, você dizia, ‘Sinto ter incomodado vocês. Tenham uma boa noite.’ Dessa forma, você tinha humilhado esse homem na frente de toda sua família e a aterrorizado, e destruído sua casa. E, então, você se dirigia para a próxima porta e fazia a mesma coisa em uma centena de casas.”
Cada incursão, ou operação de “busca e isolamento”, como elas eram, algumas vezes, chamadas, envolviam de cinco a vinte casas, ele disse. Seguindo-se a uma onda de ataques contra soldados em uma área particular, comandantes iriam, normalmente, ordenar aos infantes que saíssem em incursões, em busca por depósitos de armas, munição ou material para confecção de IEDs. Era permitido que cada família iraquiana mantivesse um AK-47 em casa, mas de acordo com Bruhns, aqueles encontrados com armas extras eram arrebanhados e detidos e a operação classificada como um “sucesso”, mesmo se fosse claro que ninguém na casa fosse um insurgente.
Antes de uma incursão, de acordo com descrições por vários ex-combatentes, os soldados, tipicamente, estabeleciam uma área de “quarentena”, ao barrar qualquer um de entrar ou sair. Em “briefings” pré-incursão, o sargento Bruhns disse, os comandantes, com freqüência, diziam aos seus soldados que a vizinhança que eles foram ordenados a incursionar era “uma área hostil com um alto-nível de insurgência” e que havia sido tomada por antigos baathistas ou terroristas da al Qaeda.
“Assim você tinha todos esses soldados, e eles estavam irritados,” disse o sargento Bruhns. “E uma porção desses soldados pensava que, uma vez que botassem a porta abaixo com chutes, haveria pessoas lá dentro, esperando com armas para começar a atirar contra eles.”
O sargento Dustin Flatt, 33 anos, de Denver, estima que ele invadiu “milhares” de lares em Tikrit, Samarra e Mosul. Ele serviu com a 18ª Brigada de Infantaria, 1ª Divisão de Infantaria, por um ano, começando em fevereiro de 2004. “Nós os matávamos de susto toda vez que entrávamos em cada casa,” ele disse.
O especialista Ali Oun, 23 anos, um guarda nacional de New York City, disse que conduziu segurança de perímetro em quase 100 incursões enquanto servia em Sadr City, com a 89ª Brigada de Polícia Militar por onze meses começando em abril de 2004. Quando soldados invadiam uma casa, ele disse, primeiro isolavam-na com “Humvees”. Soldados guardavam a entrada para ter certeza de que ninguém escapasse. Se uma localidade inteira estivesse sendo incursionada, em operações em larga escala, ela, também, era isolada, disse o especialista Garett Reppenhagen, de 32 anos, de Manitou Springs, Colorado, um tocaieiro e batedor de cavalaria com o 263º Batalhão Blindado, 1ª Divisão de Infantaria, que foi desdobrado para Baquba por um ano, em fevereiro de 2004.
O sargento-ajudante Timothy John Westphal, 31 anos, de Denver, relembra de uma noite de verão em 2004, a opressiva temperatura de mais de 40º C, quando ele e quarenta e quatro outros soldados americanos incursionaram uma fazenda nas cercanias de Tikrit. O sargento Wesphal, que serviu lá por toda uma temporada de um ano com a 18ª Brigada de Infantaria, 1ª Divisão de Infantaria, começando em fevereiro de 2004, disse que ele foi informado de que alguns homens na fazenda eram insurgentes. Como um líder de GC de infantaria mecanizada (infantaria blindada no Brasil), o sargento Westphal liderou a missão para assegurar a casa principal, enquanto quinze homens varriam a propriedade. O sargento Westphal e seus homens pularam o muro cercando a casa, totalmente à espera de ficar cara-a-cara com insurgentes armados.
“Nós tínhamos nossas lanternas e... eu disse ao meu pessoal, ‘Na contagem de três, apenas acertem eles com suas luzes e vamos ver o que temos aqui. Acordem eles!”
A lanterna do sargento Westphal estava montada em sua carabina M-4, uma versão menor do fuzil M-16, portanto, ao apontar sua luz contra um grupo de pessoas dormindo no chão, ele estava apontando sua arma contra elas. O sargento Westphal, primeiro, voltou sua luz contra um homem que aparentava estar com mais de 60 anos.
“O homem deu um grito horrorizado, de gelar o sangue,” relembra o sargento Westphal. “Eu nunca ouvi nada assim. Quero dizer, o sujeito estava absolutamente aterrorizado. Eu posso imaginar o que ele estava pensando, tendo vivido sob Saddam.”
Os habitantes da fazenda não eram insurgentes, mas uma família dormindo fora para se aliviar do calor torturante, e o homem que o sargento Westphal tinha acordado com um susto era o patriarca.
“Logo, começamos a tirar as cobertas de todas aquelas pessoas dormindo, era ele, talvez dois caras... ou seus filhos ou sobrinhos ou qualquer coisa assim, e o resto era de mulheres e crianças,” disse o sargento Westphal. “Nós não achamos coisa nenhuma.”
Eu posso lhe contar centenas de estórias como essa e elas são todas muito parecidas a essa que lhe contei. Apenas uma família diferente, um tempo diferente e uma circunstância difente.”
Para o sargento Westphal, aquela noite foi um ponto de virada. “Eu me lembro de ter pensado comigo mesmo, ‘eu apenas levei o terror a alguém sob a bandeira americana, e não foi para fazer isso que eu me alistei no Exército,” ele disse.