Bem... recebi um e-mail com esta carta-bíblia. Tive paciência de ler tudo e achei que valeria a pena postá-la.
UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA
(QUE PODERIA TER SIDO EVITADA)
Ao longo dos últimos trinta anos, trabalhei em uma das mais movimentadas áreas terminais de tráfego aéreo do mundo, São Paulo. Conheci e aprendi com controladores de vôo de alto nível, talvez o mais “brilhante e anônimo” ramo de trabalho que se possa imaginar. Ser Controlador de Vôo!
Brilhante, esta é minha humilde opinião, porque temos o dever de conduzir e orientar todas as aeronaves que voem em nosso espaço aéreo de forma rápida, eficaz e, sobretudo com segurança. Afinal são milhares de vidas que diariamente estão voando nas aeronaves em nosso céu.
Anônima, porque por falta de conhecimento, são pouquíssimas pessoas que sabem e conhecem a profissão de controlador de vôo. Os aeronautas sabem, embora nem sempre nos conheçam, a importância da nossa função. Somos íntimos, embora na grande maioria das vezes, sequer nos conhecemos. Somos apenas vozes, a lhes orientar de forma segura, e assim nosso trabalho tão intimamente ligado é executado de forma tranqüila. Tanto assim que, nós controladores de vôo somos desconhecidos pela maioria do grande público.
Agora com esta tragédia, envolvendo duas aeronaves (Um Boeing da Gol e um jato executivo “Legacy” da Embraer) em nosso espaço aéreo, com certeza a mídia vai divulgar e infelizmente a nossa nobre profissão poderá ser questionada.
Nestes trinta anos de serviço, pudemos acompanhar a evolução tecnológica no mundo. Mais diretamente ao meu ramo de trabalho. Quando aqui cheguei no início dos anos oitenta, a sala do radar (onde se exercia todo o controle de vôo da área de São Paulo) era um ambiente de penumbra, com Scopes (telas) de radar de cor âmbar, onde se via passar milhares de vezes a varredura (sinal circular de 360 graus) concomitantemente à antena do radar que girava ininterruptamente durante todas as horas do dia, todos os dias do ano, por anos a fio. Esta varredura de antena é que proporcionava a nós controladores observarmos as aeronaves voando em nossa área. Naquela época, todas as aeronaves eram representadas em nossa tela por simples pontos (alvos) não maiores que um grão de arroz. Os equipamentos até então eram os melhores de que dispúnhamos, e trabalhamos assim por muitos anos.
A tecnologia desenvolveu-se muito rapidamente e obviamente, também em nossa área o progresso foi sistemático. Mudaram-se os equipamentos que dispunham de poucos recursos, e vieram sistemas novos que sem dúvida melhoraram as nossas condições de trabalho. Antigamente o controlador de vôo, era a verdadeira alma dos pilotos, pois eram eles que vetoravam (orientavam com proas e rumos) a melhor trajetória a ser seguida a fim de agilizar a evolução das aeronaves. Hoje em dia os modernos sistemas de navegação das aeronaves juntamente com a evolução dos sistemas utilizados pelo tráfego aéreo no Brasil e no mundo, facilitaram a vida de todos. Mas a alma do tráfego aéreo, ainda é de um ser humano. Pessoas desprovidas de vaidades, altruístas, abnegados que faz de sua anônima existência a grandeza de uma profissão praticamente desconhecida, e não reconhecida pelas nossas autoridades. O grande público só sabe que existem controladores de vôo, quando grandes tragédias envolvendo aviões são noticiadas mundo afora. Os aviões continuam sendo o meio de transporte mais seguro, mas o sensacionalismo da mídia vende muito mais com as grandes tragédias aeronáuticas. Até porque geralmente são tragédias de muita dramaticidade, e ceifam muitas vidas.
Como parte integrante do sistema fiquei contente com a evolução da tecnologia, mas mesmo todo o avanço tecnológico merece cuidado e tem um preço.
Afinal as máquinas precisam quem as opere, manejem e tirem delas todo o proveito possível. É aí que entramos nós. De que adianta toda a tecnologia, sem mão de obra especializada? De que adianta toda a capacidade das máquinas, se elas não tem o discernimento para determinar as melhores manobras a serem executadas? De que adianta toda a tecnologia se não houver alguém habilitado a tirar delas tudo o que as máquinas puderem nos oferecer? De que adianta todo o sistema informatizado se não houver controladores (humanos) operando de forma correta, segura e proporcionar um vôo tranqüilo a todos aqueles que estiverem a bordo de qualquer aeronave?
Investiu-se muito no fator tecnológico, e esqueceu-se do fator humano. Tempos atrás os controladores vestiam-se de uma vontade enorme para desempenhar seu papel. Havia situações inusitadas, tais como “disputas” entre os controladores para poderem trabalhar nos horários de pico, onde o volume de tráfego era tão intenso, que “saudavelmente” disputávamos entre nós. Cada um querendo realizar um trabalho de excelente qualidade. Não havia vaidades. O volume de tráfego era intenso, todo aviador familiarizado com a terminal de São Paulo, vai entender o que digo. Todos nós sentíamos o grande prazer que era controlar aquelas aeronaves, organizá-las, ajustá-las e colocá-las na final da pista de pouso com a distância correta e segura. Observar a fila indiana de aviões alinhados para pousar, e vê-los um a um tocar o solo.
Era fantástico!
Era muito comum também fazermos pilhérias com os companheiros tentando “minimizar” o feito de algum outro parceiro de trabalho. Na realidade o mais comum era que nos cumprimentássemos pelo bom desempenho e íamos embora (eu me sentia assim) tranqüilos e satisfeitos.
Hoje com a tecnologia, os controladores de vôo tiram o máximo proveito das máquinas em detrimento da sua capacidade de realizar o serviço nos moldes de antigamente. Estamos mais robotisados, quase autômatos. Perigosamente estamos nos tornando muito dependentes da tecnologia. Estamos perdendo nosso “feeling” (sentimento), nossa capacidade de avaliação para desempenharmos a nossa função. Com o uso do radar muitas vezes vemos apenas aquilo que nos interessa, deixando de observar detalhes importantes e relevantes ao nosso trabalho de uma forma geral.
A tecnologia proporciona aeronaves navegarem por sistemas gerenciais de satélites, coordenadas geográficas e outros tão sofisticados que é possível dizer que os aviões de última geração são capazes de voar com o mínimo de erro imaginável. Tudo isto tem um preço! Assim como os controladores. Os aviões com a mais avançada tecnologia precisam quem as opere. Os pilotos são estes predestinados. São eles quem tiram de suas máquinas o melhor proveito possível. Os computadores de bordo facilitaram a vida de todos, mas mesmo assim será necessário um ser humano (piloto) para extrair da máquina tudo o que puder lhe proporcionar de melhor. Ainda não existem aviões comerciais que voem sem seus respectivos comandantes! Também a vida dos pilotos foi facilitada, mas nem por isso tornou-se simples. Ainda que a tecnologia seja espetacular, o avião depende da iniciativa dos comandantes toda vez que algo de anormal vier a acontecer. São eles que determinam em função de todo o treinamento que tem as melhores opções para casos atípicos que possam ocorrer com suas respectivas aeronaves. Em situações de emergência, são os pilotos que irão executar as manobras previstas e treinadas exaustivamente em simuladores de vôo. Achar e tentar resolver qualquer problema em vôo. E se não for possível resolver, efetuar o pouso em algum aeroporto próximo ou lugar seguro. Para isto estão treinados e aptos.
Para os controladores de vôo a realidade é bem diferente. Investiu-se em tecnologia. Esqueceu-se do fator humano. Ao longo dos anos pude testemunhar com tristeza, como a nossa profissão aos poucos foi sendo colocada em segundo plano. Pudemos acompanhar como os controladores mais novos, diante de uma situação de despreparo emocional e até porque não dizer, medo, encarava o trabalho com receio. Achava que a responsabilidade era muito grande, e é, mas sempre foi e continuará assim. Alguns foram jogados na especialidade de tráfego aéreo contra a sua vontade. Como era preciso formar controladores uma vez que o mercado necessitava, pessoas sem o perfil adequado eram simplesmente obrigadas a ingressarem na especialidade a contragosto. Alguns novos controladores não demonstram a mesma vontade que tínhamos nós.
Aprendemos no cotidiano do dia a dia as dificuldades do nosso trabalho. O volume de tráfego no Brasil aumentou, assim como em todo o mundo. Nossos profissionais não tiveram o mesmo reconhecimento. Vejo com tristeza que as autoridades aeronáuticas não acreditaram que o estrangulamento operacional do tráfego aéreo viesse a acontecer. Talvez até pelo próprio anonimato da nossa função. Tempos atrás tínhamos necessidades urgentes de controladores de vôo que possuíssem curso de operação radar para poderem trabalhar em todos os setores de controle de vôo que utilizasse o equipamento radar. Havia uma necessidade grande, e falta de material humano. Mão de obra especializada. Foi quando “alguma” autoridade aeronáutica investida no cargo de comandante, simplesmente da noite para o dia decidiu “cancelar” todos os cursos previstos para aquele determinado ano, alegando falta de verbas!
Com certeza hoje ainda sofremos reflexos daquela mal fadada ordem.
Em outra oportunidade ao percebermos que o ensino fundamental que era ministrado em escola especializada para a formação de novos controladores, estava tendo o seu foco principal desviado. Ficamos preocupados, e um companheiro nosso, conhecedor das dificuldades da formação destes profissionais, caiu na besteira de dar seu parecer a uma revista especializada em assuntos de aviação. Ao ser publicado tal artigo, o mesmo amigo (militar de carreira) foi convocado a dar explicações, pois estava levando a público assunto relevante e de caráter sigiloso. Resolveram as “autoridades” que este elemento deveria ser “transferido” e assim foi feito. O problema continua e agora com esta triste tragédia, é bem possível que feridas, sejam novamente abertas...
O stresse emocional, gerado pelo nosso trabalho é de longe um dos maiores entre vários ramos de atividade profissional. Juntamente com nossos amigos aviadores, temos uma carga de stresse e responsabilidade quase infinita. Não é a toa que as nossas atividades são tão ligadas intimamente. Trabalhamos de comum acordo, respeitando cada um o seu espaço e trabalhando igualmente para que as nossas atividades iniciem-se e terminem de forma satisfatória. Não existe a necessidade de sermos agradecidos a cada vez que executamos nosso trabalho, é nosso dever, mas é gratificante sabermos que o reconhecimento vem em forma de um simples “obrigado controle”. Nas situações em que viajei de avião, muitas vezes fiz questão de cumprimentar a tripulação da aeronave pelo vôo. A rotina às vezes nos faz esquecer que estivemos nas mãos de pessoas capazes e que se chegamos bem ao nosso destino foi porque eles nos conduziram de forma perfeita.
Abateu-se sobre nós, uma tragédia. Com a tecnologia disponível seria praticamente impossível que duas aeronaves de última geração, dispondo dos equipamentos mais modernos em atividade no momento pudessem se chocar em pleno vôo. Ainda hoje me pergunto como isto pôde acontecer? É algo inconcebível do ponto de vista tecnológico, mas passível de acontecer do ponto de vista humano.
Todo acidente aeronáutico envolve fatores múltiplos que serão estudados pelas autoridades competentes, não com o intuito de se punir ou creditar culpabilidade às pessoas envolvidas, mas com a suprema intenção de que outros acidentes possam ser evitados. Quando o acidente aeronáutico vem a se consumar, é porque toda uma gama de falhas que poderiam ser corrigidas, não o foram e assim a tragédia anunciada acaba por acontecer.
Irritantemente e com muita surpresa, já ouvi depoimentos (sobre o acidente) tão surpreendentes quanto chocantes de autoridades que sequer sabem o que estão dizendo. Fico a imaginar se elas são incompetentes mesmo, ou se estão sendo mal assessoradas? Quanta besteira somos obrigados a ouvir, e acredito que por total desconhecimento da população, é possível que a grande maioria acabe acreditando e concordando com tantas bobagens e absurdos ditos aleatoriamente. Pessoas despreparadas representando órgãos governamentais e falando asneiras sem a mínima noção. A tragédia mexe com todos nós, e o fato em si já é terrível. Agora ouvir depoimentos descabidos sobre assunto conhecido é revoltante.
Aconteceram falhas gritantes. Falhas quando não corrigidas, tendem a desencadear outras falhas, e assim a seqüência vai se avolumando e provocará uma quebra dos padrões de segurança. A conseqüência poderá ser, e neste caso foi uma tragédia de proporções gigantescas e até então inimagináveis.
Tenho ouvido alguns absurdos. É sabido que a aeronave Legacy, realmente estava em uma altitude incompatível. Isto é fato! Contudo o que me pergunto é: Porque ela estava naquela altitude? É incomensurável de minha parte acreditar que os pilotos americanos estivessem desobedecendo ao regulamento de tráfego aéreo por conta e risco. Se estavam mantendo a altitude incorreta, é porque em algum momento do vôo uma falha aconteceu, não foi detectada e corrigida. Se foi detectada, e não foi corretamente corrigida também contribuiu para que a aeronave continuasse em altitude incorreta.
As falhas de comunicação entre aeronaves e órgãos de controle são mais freqüentes do que as autoridades querem fazer o povo acreditar. As interferências de rádios piratas em nosso espaço aéreo, é a meu ver um caso de segurança nacional. As aeronaves que voam em nosso espaço aéreo correm riscos demasiados. As interferências são tantas que muitas vezes os pilotos são “obrigados” a diminuir o volume dos seus rádios de comunicação porque fica simplesmente “impossível” tentar ouvir os controladores. Será que este tipo de interferência poderia ter feito com que os pilotos americanos, baixassem o volume do seu rádio e por isto deixaram de ouvir os controladores de Brasília tentando fazer contato? Telefonia celular interfere nas comunicações. Chega-se ao absurdo de interferências acontecerem com os próprios sistemas de aproximação e pouso por instrumentos nas pistas dos aeroportos!
É verdade que sistema de proteção ao vôo do Brasil é um dos melhores do mundo. A realidade é que nosso país é continental e querermos achar que conseguiremos executar todo o controle de tráfego aéreo numa imensidão destas, apenas com alguns poucos centros de controle de área é fantasia. Faltam controladores. É possível que as autoridades aeronáuticas e governamentais pensem sempre na otimização do espaço aéreo reduzindo cada vez mais os órgãos de controle, conseqüentemente reduzindo o número de controladores, como que para economizar.
É o tipo de economia barata e burra.
Agora com a perda de vidas inocentes com certeza estarão se questionando se é este o melhor caminho. Se não estiverem se questionando a este respeito, então penso que o ignorante talvez seja eu. Ë sabido também que existem áreas de falha de detecção radar. Volto a frisar que o nosso país é continental e o sistema tem suas falhas. Na Amazônia, o sistema melhorou muito com a criação do SIVAM (Sistema Integrado de Vigilância da Amazônia), contudo pode ainda não ser o ideal. Há alguns anos atrás, não havia radar monitorando a toda a Amazônia isto veio a ser incrementado e implantado (coincidentemente) após o acidente com o vôo da Varig, quando a aeronave com erros de navegação desapareceu em meio à selva. Havia também a necessidade de uma vigilância ostensiva na Amazônia devido aos vôos clandestinos de tráfico de drogas e armamentos.
Mesmo com esta monitoração por radares o acidente aconteceu!
Se os comandantes do Legacy inadvertidamente ou propositalmente desligaram o transponder do avião (eu particularmente não acredito), incorreram numa falha grave. Ainda assim eu me pergunto, se algumas medidas básicas e até simples não poderiam ter sido tomadas e evitado o mal maior? Explico: Quando a aeronave deixou de emitir sinais do transponder, automaticamente os radares passaram a não ter mais “recepção do equipamento” da mesma. Isto acarreta a perda de “visualização” da referida aeronave nas telas de radar. A aeronave passa a ficar “invisível” na questão da etiqueta alfanumérica que corresponde a cada aeronave desde que o transponder esteja emitindo interrogações ao radar e recebendo resposta. Os controladores tentaram contato via rádio. Aparentemente não conseguiram. Sendo assim, surgiu a dúvida. Estaria à aeronave mantendo o FL 370, ou iria cumprir o plano de vôo conforme estava estipulado. Foi divulgado na Internet e depois desmentido que o Legacy conseguiu contato com o Centro Brasília questionando se deveria manter o FL 370 ou deveria descer para o FL 360 e que como resposta foi orientado a “manter o FL 370”. São especulações, não existe nada oficial, porém pode ter havido aí mais uma falha gritante, envolvendo a aeronave, o órgão de controle e suponho eu um problema de fraseologia. Às vezes, a fraseologia pode ser inadequada e gerar interpretações erradas. Aquilo que falamos, pode ser interpretado de forma incorreta e é comum muitas vezes “ouvirmos e interpretarmos” aquilo que é mais conveniente para nós.
Supondo que a aeronave Legacy, não tivesse feito mais contato. Deveria cumprir a risca o plano de vôo proposto. Isto é o que diz o regulamento de tráfego aéreo, e é norma internacional. Agora vale a pena ressaltarmos alguns pontos que podem nos levar a entender algumas falhas. Mesmo sem as informações oficiais, baseado em minha experiência como controlador. Pergunto-me se no momento em que esta aeronave estava para receber a sua autorização de plano de vôo, ela foi devidamente orientada? Conforme a minha “pouca experiência” em tráfego aéreo, reconheço que controladores cometem falhas de informação por desconhecimento, ou por achar que a sua área de atuação é restrita e às vezes repassa aos pilotos, informações incompletas, mas não se dá conta disto.
Será que no momento da autorização de plano de vôo, os pilotos receberam a mesma conforme fora solicitado no plano de vôo original? Poderia algum detalhe ter sido esquecido? Poderia a autorização do plano de vôo ter sido incompleta? A tripulação é estrangeira. Não está familiarizada com nosso tráfego aéreo e nossa área. Pouca experiência de vôo em nosso território. Então neste caso é essencial que tenhamos o cuidado de ao transmitir instruções de autorização de vôo, não economizemos palavras. Devemos lhes dar todas as instruções pertinentes sob pena de estarmos omitindo informações importantíssimas para a realização do vôo conforme o planejamento inicial. Se deixarmos de instruir corretamente a aeronave em todos os trechos de vôo, estaremos incorrendo em erro. Se por acaso na autorização não detalharmos todos os trechos da rota e respectivos níveis de vôo. Os pilotos podem entender que estarão autorizados a voar em um nível de vôo diferente do proposto inicialmente. A fraseologia tem de ser usada de forma correta. Se ao estabelecer contato via rádio com os órgãos de controle, os pilotos foram instruídos a manter “determinada altitude” e nada mais for informado, aquela última instrução passa a vigorar até que uma nova instrução seja fornecida e assim sucessivamente. Nem sempre o que pensamos e falamos, será interpretado da mesma forma. É preciso que a fraseologia usada seja a mais clara e correta possível, para não dar margem a interpretações equivocadas. Será que isto de fato aconteceu?
Nos vários trechos de vôo apresentado no plano de vôo inicial, estavam previstas mudanças de altitudes em determinados pontos. Em função principalmente da rota escolhida. Como já sabemos, em determinadas rotas às aerovias são de mão dupla, e neste caso a separação será fornecida através de altitudes diferentes de acordo com os rumos que as aeronaves estejam voando. Isto acabou não acontecendo. Um dos fatores que me leva a acreditar que a aeronave estivesse mantendo a altitude incorreta, foi porque em determinado momento do vôo esta aeronave possa ter sido orientada a manter aquele nível de vôo e nenhuma outra instrução complementar tenha sido informada. Desta forma a aeronave continuou seu vôo em altitude incompatível. É bem provável que uma falha de fraseologia entre pilotos e controladores tenha gerado um mal entendido que não foi corrigido e associado aí à falta de visualização radar e falha nas comunicações acabou levando ao acidente.
Durante o vôo após passar por Brasília, tem-se dito que o Legacy simplesmente passou a ficar invisível, ou seja, nas telas de radar apenas o alvo primário do mesmo aparecia. Sendo assim os controladores ficaram sem a informação principal que seria exatamente a altitude que aeronave estava mantendo. Mesmo assim, seria fácil de checar esta informação desde que se obtivesse o contato rádio com os pilotos. Só que isto também por razões até agora desconhecidas não foi possível. A aeronave continuou mantendo o último nível de vôo autorizado pelo Centro. O nível FL 370. O jato executivo deveria descer para o nível FL 360, só que por falta de comunicação não o fez e é preciso lembrar que em contato anterior o mesmo foi instruído a manter o FL 370 e até onde sabemos, nenhuma instrução posterior foi passada, recebida e contestada pelos pilotos do Legacy. Ora pode ter acontecido de o piloto entender que deveria manter a altitude até que o controlador o mandasse descer. Como a falha de comunicação aconteceu, por via das dúvidas mantiveram a altitude. É possível que os pilotos tenham aguardado um contato rádio por parte dos órgãos de controle. E várias tentativas foram realizadas. Associando-se aí a pouca experiência dos pilotos americanos com o nosso tráfego aéreo, é provável que nem tenham se dado conta de que estavam voando em outros setores de controle de Brasília sem contato com ninguém. A setorização do centro prevê que determinadas freqüências de comunicação sejam específicas para determinados setores geográficos. À medida que as aeronaves se distanciam destes setores, a comunicação se torna impossível. Também aí pode ter acontecido outra falha gritante. Tanto os pilotos, talvez por desconhecerem o espaço aéreo, como os controladores por talvez tardiamente terem instruído a aeronave a mudar de freqüência e já naquele momento não mais conseguirem contato, possam ter a partir daí desencadeado uma seqüência de falhas que acabariam levando ao erro fatal. A partir do momento em que se julgava que a aeronave tivesse descido, mas não se tinha certeza do fato, deveriam os controladores adotar medidas alternativas visando à segurança das aeronaves envolvidas. Só que até aquele momento, não se sabia qual a altitude verdadeira do Legacy, bem como se haveria algum tráfego que viesse a interferir com a rota dele.
Haveria depois o tráfego do Gol 1907.
As coincidências ruins começaram a acontecer. Informações equivocadas por parte dos controladores envolvidos no serviço. A altitude do Jato executivo. A altitude do avião da Gol. A suposição equivocada de que o jatinho estivesse no nível abaixo, embora não se tivesse a certeza absoluta. Comentários entre os controladores foram inconclusivos e optou-se por acreditar que a aeronave estivesse de fato no nível mais baixo. A falta de comunicação.
Estranho por exemplo: é o fato dos pilotos do jatinho manterem-se calados durante todo o tempo. Existem sim “zonas cegas” onde se voa por um bom tempo sem conseguir falar com órgãos de controle. É comum para quem voa que se deixarmos de ouvir tanto os controladores como as aeronaves que estejam voando próximas naquele setor de controle, concluirmos estar com algum problema de comunicação. E estranhamente os pilotos americanos, até onde se sabe não fizeram nenhuma tentativa de contato rádio com os controladores mesmo que em outras frequências. É um comportamento no mínimo estranho, afinal todos sabemos que é preciso o contato bilateral para informarmos e sermos informados sobre qualquer eventualidade durante o vôo.
Extra oficialmente tem-se informado que o sistema de rádios do Legacy pode eventualmente se desativar inadvertidamente (entrar em stand-by) quando alguma mudança for comandada pelos pilotos. O mesmo poderia acontecer com o transponder.
É especulação.
Esta tragédia poderia ter sido evitada? A meu ver sim! Como as autoridades não divulgam os dados referentes às comunicações entre as aeronaves e os órgãos de controle, fica difícil sabermos pormenores das comunicações bilaterais. A experiência nos diz que agora com as leituras das caixas pretas e dos dados de voz colhidos das aeronaves envolvidas saberemos com certeza o porquê desta tragédia ter acontecido. Evidentemente quando as autoridades brasileiras alardearam inadvertidamente que os “culpados” seriam os pilotos do jato executivo, deram um tiro no próprio pé!
Todo incidente e ou acidente aeronáutico, não tem “um culpado”. São falhas latentes que começam a acontecer e se não as corrigirmos devidamente, estas falhas acabarão incorrendo em erros que poderão ser fatais. É preciso muita calma, na hora de divulgar os detalhes deste acidente sob pena de estarmos imputando culpas, a quem de fato pode ter sido também vítima do sistema.
A tragédia se consumou e muitas vidas inocentes acabaram pagando por erros de outros. O sistema tem a sua parcela de culpa sim, pois ao longo dos anos deixou que o tráfego aéreo fosse relegado a segundo plano. Os controladores de vôo do Brasil, em sua maioria são militares formados em escola especializada. E como tal tende a seguir as normas de disciplina e hierarquia militar. Alguns são tolhidos dentro desta filosofia e simplesmente tendem a ficarem calados sob pena (medo) de serem punidos militarmente. Os que se atrevem a falar são punidos com transferências contrárias a sua vontade.
Por sermos militares de carreira, os vencimentos irrisórios são os de um graduado militar e não o de um controlador de vôo. No Brasil os controladores de vôo recebem em média R$ 2.000,00 de salários. Considerando-se a atividade, responsabilidade, stresse e a comparação com os vencimentos dos controladores da Europa e Estados Unidos este valor é ridículo! E o nosso volume de tráfego não é muito inferior ao deles não. Chegamos ao cúmulo de termos controladores civis no Brasil, que ganham ainda menos do que os controladores militares. Pasmem, mas é esta a grande e tenebrosa realidade do nosso sistema. Aliado a isto é preciso que saibam que não se formam controladores num piscar de olhos não. É preciso anos de estudo e formação básica. Estágio e cursos de aperfeiçoamento, principalmente se estes controladores irão trabalhar em áreas de controle radar. Cursos de familiarização e estágio avançado. Para se ter uma idéia das dificuldades, um controlador de vôo que venha a trabalhar em uma área de intenso movimento como a Terminal de São Paulo, levará aproximadamente quatro anos para atingir o nível de proficiência desejado.
Não é exagero, é a realidade.
Então somos obrigados a ouvir as “autoridades” dizerem que vão contratar controladores a toque de caixa para suprir a deficiência e o afastamento dos controladores de vôo envolvidos no acidente. Que irão remanejar controladores de outras áreas para suprirem à mesma deficiência. Esta palhaçada não tem cabimento. Ora se precisamos de um bom tempo para nos familiarizar com os equipamentos e com a área de controle em que iremos trabalhar, como é que uma autoridade investida de ministro da defesa vem a público falar mais uma bravata desmedida e inconseqüente? Ninguém é remanejado de sua área habitual de controle, chega em um órgão diferente, com uma área de controle totalmente desconhecida e sai controlando vôos. Isto é uma imbecilidade sem tamanho! As autoridades deveriam sim estar preocupadas com a falta de apoio dado aos seus graduados que trabalham no tráfego aéreo. Somos quase que marginalizados, pois trabalhamos com o tráfego aéreo do Brasil que tem a imensa maioria composta de aeronaves civis. Trabalhamos em aeroportos das principais capitais brasileiras e em órgãos de controle geralmente voltados para toda a aviação geral, e não só a aviação militar. Aqueles que trabalham em bases aéreas é que tem o seu trabalho direcionado especificamente as aeronaves militares. Muitas vezes somos olhados de forma desdenhosa, como se fôssemos diferentes. Acreditam que temos regalias. Mas ao longo dos anos, não pudemos acompanhar nossos filhos crescerem porque nossas escalas de serviço sempre nos obrigavam a passar pelo menos três finais de semana do mês longe da família, pois estávamos escalados trabalhando. Quantos natais, reveillons e feriados passamos trabalhando enquanto a maioria das famílias viajava. Quantas noites de sono perdidas em claro, porque a escala de serviço nos obrigava a isto. Se somos olhados de forma diferente, é porque realmente somos diferenciados dos demais.
Felizmente somos diferentes sim, pois somos abnegados em ganhar pouco, e sermos tratados levianamente pelas autoridades. Reduziram valores de nossas diárias. Reduziram as ajudas de custo. Reduziram valores da cota de alimentação. É realidade que em determinadas localidades e órgãos de controle, os controladores pagam do seu próprio bolso a alimentação, uma vez que recebemos apenas 10 dias de etapa de alimentação por mês e a um valor irrisório. Os outros dias nós temos de pagar. Dá para acreditar?
É realidade também que autoridades investidas de comandantes cancelem a seu bel prazer cursos de reciclagem e aprimoramento alegando falta de verbas. Agora com o advento desta terrível tragédia escondem-se, pois sabem que vão surgir queixas de todos os lados e que muita roupa suja será lavada aos olhos da população. Nós que somos servidores públicos federais, e somos militares não podemos abrir a boca e reclamar, mas fomos ao longo dos anos vilipendiados por eles. Chegamos a ponto de irmos ministrar cursos de aperfeiçoamento para novos controladores em outra localidade e o dinheiro a que fazemos jus para custear despesas de viagens, hospedagem, alimentação e outros itens mais, terem sido cortados pela metade. Com a agravante de só recebermos muitas vezes quando já estamos em fase final de curso, ou seja, além de não recebermos o dinheiro antecipadamente ainda somos obrigados a bancar do próprio bolso, acarretando mal estar e dívidas financeiras, que em alguns casos não conseguimos nos livrar facilmente. O pior de tudo é que se quisermos receber o que nos é devido, somos em alguns casos obrigados a recorrer à justiça comum. E ainda temos de conviver com as ameaças de punições. Esta é uma dura realidade para nós controladores de vôo.
Todas estas mazelas não justificam incidentes, acidentes ou tragédias. Agora as autoridades deveriam ter mais cuidado. Não falar bobagens e muito mais cuidado para não divulgarem inverdades sob pena de estarem futuramente jogando contra o próprio patrimônio. Sabemos que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, e tenho receio de que isto volte a acontecer com as pessoas envolvidas nesta terrível tragédia. Contudo o que mais me preocupa de fato, é que isto possa acontecer novamente. Não só no Brasil, mas pelo mundo, como já aconteceu. Qual é nossa obrigação? Aprendermos com este terrível episódio. Corrigirmos as falhas e erros para que não aconteçam tragédias como esta. Agora se continuarem tratando com mesquinhez a nossa atividade como tem sido feito ao longo destes anos, pode ser que o fator humano seja fator contribuinte para outros desastres.
As dificuldades da nossa vida particular obrigam-nos muitas vezes a buscar atividade extra, para podermos dar melhores condições de vida a nossa família. É comum e infelizmente necessário que controladores de vôo tenham outros “empregos” para possibilitarem aumento de renda. Com o que se recebe hoje, não se consegue dar um tratamento digno para nossos familiares. Em cidades em que o custo de vida é alto, pior ainda é nossa situação. Aí a solução muitas vezes é ter outra atividade em detrimento do nosso principal trabalho, e que não venham às autoridades dizer que isto não acontece.
É a cruel realidade.
Já presenciei casos de princípio de exaustão em companheiros, por falta de descanso merecido. Em nossa atividade é essencial que estejamos bem física e mentalmente. Já houve situações em que ficamos sobrecarregados, porque companheiros não apresentavam as condições ideais de trabalho. Não devemos correr riscos. Agora para ganharmos o que ganhamos e não podermos dar aos nossos, condições de vida no mínimo decente preferimos correr o risco.
Como sempre acontece, é preciso que muitas vidas se percam e tragédias aconteçam para que apareçam os oportunistas de ocasião dizendo que vão melhorar as condições de trabalho, aumentar os vencimentos e não sofrermos nenhum tipo de pressão. Passado algum tempo tudo acaba caindo no esquecimento. Voltamos a nossa vida anônima de controladores de vôo, exercendo atividades extra, tentando estudar para quem sabe conseguirmos uma atividade melhor e condizente que nos dê algum retorno financeiro. Tentarmos criar nossos filhos com dignidade. Mostrando a nobreza do nosso caráter altruísta. Termos opções. Mesmo que seja ilusão, nos faça acreditar que teremos uma vida melhor. Enquanto vemos por aí o dinheiro dos mensalões, sanguessugas e dossiês escorrendo por entre os dedos daqueles que não se preocupam com ninguém a não ser com eles próprios, nós os abnegados controladores de vôo vamos levando nossa vida com dificuldades. Poderemos ser execrados, diante desta tragédia, mas a realidade da nossa atividade e vida pessoal é bem diferente do que mesmo aqueles que nos conhecem e sabem da nossa importância podem sequer imaginar.
Assim é o Brasil. Se detalhes da tragédia vierem a público mostrar as falhas do sistema. Com certeza os discursos serão mais “adequados”. As culpas serão devidamente diluídas. As verdades poderão ser acobertadas, para evitar constrangimentos. Pessoas estarão torcendo para que rapidamente as marcas desta tragédia se apaguem. E acabem caindo no esquecimento. Para nós que vivemos intensamente o que fazemos, ficará sempre aquela pontinha de ressentimento. Algo poderia ter sido feito para evitar-se o pior, mas não aconteceu. Ficamos com as lições dolorosas das perdas. Ficamos com o sentimento de impotência diante de algo supostamente inadmissível. Ficamos divagando e pensando que “se” fosse tomada uma providência simples, isto não teria acontecido.
O mais trágico de tudo isto, é que a mesma tecnologia que já salvou milhões de vidas. Neste caso foi fator preponderante para a colisão das duas aeronaves. Com os sofisticados e quase perfeitos sistemas de navegação das mesmas, onde o erro é mínimo, esta colisão tornou-se inevitável do ponto de vista “precisão dos sistemas”. Fosse algum tempo atrás, com o sistema de navegação primário, utilizando-se os auxílios rádios básicos VOR/DME ou NDB, me atrevo a dizer que poderia acontecer destas duas aeronaves se cruzarem na mesma altitude, lado a lado, porém o suficiente para que não colidissem...
Coisas da tecnologia!
Acredito que não existam “culpados” desta tragédia, mas circunstâncias desastrosas contribuíram para o evento.
Que as lições sejam aprendidas e oferecidas para estudos, análises e futuras referências.
Que se olhe para o tráfego aéreo de maneira séria.
Que tratem muito melhor estes profissionais, que se desdobram para conduzir e proteger a vida de todos da melhor maneira possível.
Que tenham o reconhecimento, como profissão.
Que as autoridades deixem a mesquinhez de lado, e façam com que os controladores tenham sempre seu aprimoramento profissional periódico e adequado com treinamentos.
Que os vencimentos sejam condizentes e não obriguem necessidades extras em detrimento do bem estar físico e mental destes profissionais.
Que autoridades desçam do seu pedestal, olhem nos olhos dos controladores e entendam suas necessidades e anseios.
Saibam que acima de tudo somos seres humanos.
Dizem que errar é humano.
A palavra erro não faz parte do nosso vocabulário.
Temos obrigação de realizar nosso trabalho sem erros. Quando isto não acontece às conseqüências geralmente são graves.
Orgulho-me do que fiz como profissional do tráfego aéreo. Conheço e entendo quem está do outro lado das comunicações, pois também sou piloto de aeronaves. Sempre tive a preocupação de mostrar aos controladores mais novos a responsabilidade que estava em nossa mente e mãos. Mostrar a importância da abnegação em se trabalhar sem visar reconhecimento pessoal. A dura realidade do nosso serviço. A dura realidade da vida. A certeza de sair de cabeça erguida após mais um dia de trabalho bem feito. A certeza de que no dinamismo da nossa profissão, nenhum dia será igual ao outro. Todos os dias estaremos aprendendo algo. Passaremos algumas situações desconfortáveis, mas serão benéficas para nossa experiência pessoal. Estarmos emocionalmente bem. Desvincularmos nossa vida profissional da vida pessoal. Deixarmos nossos problemas fora da esfera profissional para que os mesmos não venham a nos atrapalhar. Dedicarmos ao serviço toda a grandeza que ele merece. Mostrar a pessoas arrogantes vestidas de autoridades que muitas vezes a vida deles próprios estão nas mãos de pessoas simples e dedicadas. Pessoas que não querem de forma alguma aparecer. São vozes, simplesmente vozes, que com determinação e muito boa vontade fazem com que milhares de vôos partam e aterrissem em segurança em algum lugar deste Brasil.
José Manuel Fernandes
(Mané)
Orgulhosamente Controlador de Vôo
O erro de todo executor é, em princípio, o reflexo do planejamento ruim de algum executivo.