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Mensagem
por Clermont » Sex Out 27, 2006 4:23 pm
O TEMPO DO AVESSO
Miriam Leitão – Panorama Econômico, O Globo – 26/10/06
O Brasil se acostumou com maluquices e já não estranha mais nada. Num evento no Planalto, no dia 13, o presidente Lula, atendendo a uma reivindicação dos Sem-Terra e da Contag, disse: “Valeu a pena enfrentar a polícia.” Ele é presidente de todos os brasileiros, comanda o governo, as Forças Armadas, o aparato policial; se acha que o pleito é justo, deve comandar o atendimento à reivindicação, e não mandar os cidadãos ao confronto com a polícia.
Dias depois, numa entrevista na TV Record, sugeriu aos trabalhadores de serviços essenciais que façam uma greve diferente: “Um trabalhador que trabalha no metrô não precisa parar; ele pode abrir as catracas para o povo andar de graça”. Tudo o que um presidente pode sugerir, em qualquer situação em que há desacordo entre os cidadãos do país que preside, é que as partes negociem até se chegar a uma solução, dentro da lei, para as desavenças.
O Brasil já nem nota que os fatos estranhos são estranhos. Acostumou-se. Na segunda-feira, quando a Bolívia avisou que não aumentaria o prazo de negociação com a Petrobrás, insinuando que a empresa brasileira fraudou preços para ter lucros extraordinários, a primeira reação foi de Marco Aurélio Garcia. A impropriedade aí é que Garcia é hoje chefe do comitê da campanha do presidente à reeleição; não deveria estar no governo, nem falando em nome do governo. Mas o fez porque – outra esquisitice – o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, anda pulando de palanque em palanque, ocupadíssimo com as questões internas. Só ontem os jornais traziam a reação de Amorim, que deve ter se lembrado do cargo que ocupa no governo. Antes disso, outra bizarrice que foi banalizada; por quatro anos o Brasil teve dois chanceleres.
Há também uma lista de fatos na categoria “parece estranho, mas não é”. Nessa lista, está o apoio de Blairo Maggi à candidatura do presidente. O agronegócio sofreu muito nos últimos anos, tanto que jogou o preço da crise no governo, votando na oposição. O Centro-Oeste, onde Maggi tem seu reduto, deu maioria de votos a Geraldo Alckmin. Maggi é um grande proprietário de terras, grande produtor de soja, e é favor do governo. Esquisito? Nem tanto. O último pacote agrícola incluiu a renegociação da dívida dos pequenos e médios produtores com as grandes empresas. Atualmente grandes tradings e produtoras de grãos financiam produtores menores. Quando a crise piorou, eles pararam de pagar aos seus credores. O governo refinanciou essa dívida, o que beneficiou grandes empresas como a Cargill, a Bunge e... a Maggi.
No Brasil, existe até esquisitice com aviso prévio. Dias atrás, um dos líderes dos Sem-Terra, que anda às voltas com a Justiça, José Rainha, avisou que a trégua dada pelos Sem-Terra acaba no dia 29. Mais precisamente: “Vamos sair da trincheira no dia 29 às 17 horas.” O país ficou sabendo que o movimento está fingindo bom comportamento para não assustar os eleitores e não prejudicar o presidente da República. Eles, que fizeram quase mil ocupações durante o mandato, deram uma “trégua”, não se sabe a quem, mas com hora para acabar. É um avanço: agora, o país está sendo enganado com aviso prévio.
Foram tantas as versões do presidente para os mesmos fatos que o brasileiro se perdeu. Se houver uma prova de múltipla escolha sobre o que disse Lula sobre aquele escândalo, a melhor resposta será “todas as alternativas anteriores”. Entendi isso na conversa com o presidente. A mim, Lula disse que não havia perguntado a Ricardo Berzoini sobre o dossiê, porque não era “delegado de polícia”. Disse mais: “Não perguntei, nem perguntarei.” Dias depois, à mesma pergunta na TV Cultura, respondeu que chamou Berzoini, numa quarta-feira, pediu explicação e, como não houve explicação satisfatória, ele o afastou do comitê de campanha. Em cada um dos escândalos, Lula deu respostas múltiplas. Na entrevista do GLOBO com ele, relacionei cinco explicações diferentes para o mensalão (não sabia, foi traído, isso é feito sistematicamente no país, cosnpiração das elites, culpa da imprensa) e perguntei em que Lula eu deveria acreditar. Ele disse: “Todos.” Está vendo? Se tiver dúvida, sempre marque em “todas as alternativas anteriores.” Não tem erro.
O país faz um grande esforço para acompanhar todos os depoimentos dos envolvidos nos escândalos; declarações são publicadas, conferidas, acareações são feitas, contradições ressaltadas, depoimentos tomados. Tudo desperdício, porque o governador eleito da Bahia, Jaques Wagner, avisou que “os réus petistas têm o direito de mentir”. Isso economiza tempo: não precisa nem saber o que explicaram, basta não acreditar.
Nada normal também é a forma explícita com que o governo inteiro engajou-se na campanha eleitoral. Começou pelos ministros políticos, contaminou a área econômcia, espalhou-se pelos outros escalões. Não está se falando nem de aberrações, como a do diretor de gestão de risco do Banco do Brasil, Expedito Veloso, mas, sim, de coisas mais simples, como a militância escancarada em pleno horário de trabalho nas dependências públicas.
Fatos como os relatados aqui podem ser considerados como coisas exóticas, palavras estapafúrdias, ou podem ser vistos como são: desvios de comportamento que ameaçam a consolidação da cultura democráticas do país.
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O LUGAR DE DELFIM
Demétrio Magnoli – O GLOBO, 19/10/06.
Lula corteja José Sarney e beija a mão de Jáder Barbalho. Lula projeta um mandato “excepcional” para Fernando Collor e recebe, do presidente caído, apoio à sua reeleição. Lula acusa a “elite que governa este país há 500 anos” e, ato contínuo, se apresenta como a reencarnação combinada de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Na barafunda da política lulista, aparentemente não há nada de singular na confraternização do presidente com o deputado Delfim Neto, o czar econômico da ditadura militar entre 1967 e 1974.
Mas não é tudo igual. Sob a ótica de Lula, as figuras políticas valem pela serventia que podem ter para o seu projeto político pessoal. Sarney é uma peça crucial no arranjo parlamentar lulista. Barbalho controla uma máquina política signficativa. Collor tem votos, apesar de tudo. Vargas e JK são monumentos de uma certa memória cujo culto interessa ao salvacionismo lulista. Delfim, por outro lado, não mais possui valor tangível. Por que Lula o ressuscitou politicamente?
“Quero dizer da minha alegria de estar aqui com Delfim, uma das pessoas de quem a gente mais divergia na década de 70. Eu, como dirigente sindical, fazia todas as críticas numa época em que a gente tinha no Brasil uma contradição muito forte. Ao mesmo tempo tinha o auge do autoritarismo militar, tinha o auge do crescimento econômico.” Lula, no fim das contas, tem uma ideologia.
Na consciência política de uma parte da esquerda agrupada no PT, o vazio deixado pela dissolução do socialismo foi preenchido por um nacionalismo tosco que é também desejo de restauração. Esses órfãos do Muro de Berlim interpretam quase todo o período aberto pelo fim do regime militar como uma queda contínua, que sintetizam por meio da expressão “neoliberalismo”. Eles nunca admiraram as virtudes da democracia, essa “invenção burguesa”, e sua combinação com as privatizações pareceu-lhes demonstrar a natureza monstruosa daquilo que veio depois dos generais-presidentes.
Lula não é de esquerda, mas compartilha essa narrativa da queda. O lulismo, como ideologia política, é um salvacionismo conservador: “O Lula é uma parte do povo deste país que adquiriu consciência política. A hora que eles tirarem as minhas pernas, eu vou andar pelas pernas de vocês; a hora que eles tirarem os meus braços, eu vou gesticular pelos braços de vocês; a hora que eles tirarem o meu coração, eu vou amar pelo coração de vocês. (1)” Esse trecho de um comício eleitoral recente sintetiza o salvacionismo lulista.
No diapasão do discurso do salvador-da-pátria não há lugar para a trama de mediações institucionais da democracia. Lula e o povo, tornados uma entidade única, preenchem todo o palco e fazem a história inteira. Mas, para salvar a pátria, o líder que é o povo precisa de um Estado forte, capaz de dar e tirar, proteger e ameaçar, patrocinar e subornar. A vontade de restaurar um Estado assim é o traço-de-união entre Lula e a esquerda stalinista.
Na campanha eleitoral de 2002, Lula fez o elogio da “capacidade de plenejamento estratégico” da ditadura militar. Nas saudações a Delfim Neto, Lula elaborou u ma interpretação dicotômica da ditadura militar, assentada nos pólos complementares do autoritarismo político e do crescimento econômico. É um recorte histórico arbitrário, que se destina a contrastar virtudes econômicas imaginárias do autoritarismo com uma suposta incapacidade da democracia “neoliberal” de promover crescimento e bem-estar.
Lula e Delfim até que formam um belo par. Eles têm muito mais em comum do que ousariam supor no passado recente, que já ficou tão longe.
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DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.
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(1): Gozado, conheço um feitiço vodu para levantar os mortos que é mais ou menos assim:
“Poderoso Barão Samedi, príncipe dos mortos e senhor dos cemitérios, escute minha voz.
Você está para atravessar as portas negras, deixe que minha mente tome o lugar da sua...
Fecho seus ouvidos porque, de agora em diante, ouvirá com os meus...
Fecho seus olhos porque, de agora em diante, verá com os meus...
Prendo suas mãos porque, de agora em diante, usará as minhas...
Prendo seu coração porque, a partir deste momento, ele viverá com o bater do meu.
E a chama que deverá dar-lhe a vida e movimento... eu a comando em nome do príncipe dos mortos!”