Quantas divisões tem o Brasil?
por Lindolpho Cademartori em 26 de julho de 2005
Resumo: O Brasil das Forças Armadas sucateadas e de operacionalidade precária é o mesmo Brasil que almeja se sentar ao lado dos EUA, da Rússia, da Grã-Bretanha, da China e da França no CSNU.
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Um País cuja Força Aérea não tem uma centena de caças interceptadores e de ataque para se defender de uma eventual operação ofensiva, com vistas à manutenção da superioridade aérea, à qual se sucederão um maciço desembarque anfíbio e a ocupação terrestre por parte de forças invasoras; um País cuja Armada mal e porcamente perfaz uma Frota, e que cuja escassez de recursos impede a Marinha de manter um único navio operando 24 horas por dia ao longo da costa[1]; um País cujo orçamento de defesa tem 75,4% de seu montante dedicado à folha de pagamentos[2] (700 mil inativos, 300 mil em atividade[3]); um País cujo orçamento de defesa – excluído o setor previdenciário – é o menor do mundo, correspondendo a 0,3% do PIB[4]; um País que dispõe de um programa destinado à construção de um submarino de propulsão nuclear que se arrasta por mais de duas décadas; um País que trata suas Forças Armadas com laivos revanchistas e desprezo institucional, ignorando a missão constitucional e de construção e de projeção de poder que as mesmas têm; um País que, aos trancos e barrancos, mantém, em seu próprio quintal estratégico, uma única Brigada na MINUSTAH (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti), e, ainda assim, se depara com sólidas oposições parlamentar, de entidades e popular à ação de suas tropas no estrangeiro: eis o País, caro leitor, que aspira obter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Que o apanhado soe como uma troça de mau gosto, mas não é: o Brasil das Forças Armadas sucateadas e de operacionalidade precária é o mesmo Brasil que almeja se sentar ao lado dos E.U.A., da Rússia, da Grã-Bretanha, da China e da França no CSNU.
O Brasil dispõe de uma corrente de plataformas continentais de prospecção de petróleo em alto mar, ao longo de quase toda a costa – nomeadamente no Sudeste -, e sua Marinha de Guerra, malgrado ser a oitava do mundo em tonelagem, descomissiona embarcações com menos de 30 anos de uso pela simples razão de que não há verbas para mantê-las operando; no mesmo sentido estão as aspirações tocantes à “Amazônia Azul”[5], compreendendo nossas águas jurisdicionais, para a defesa da qual seria necessária uma Armada que dispusesse de no mínimo três frotas[6], cada uma das quais operando um porta-aviões e diversas embarcações de escolta e multi-propósito. Os latentes desejos brasileiros de projeção de poder no Atlântico Sul, bem assim a urgência em sediar uma frota em Marajó, para que a mesma controle o acesso à foz do Amazonas, igualmente esbarram no estado depauperado da Marinha, no contingenciamento de verbas e nas aberrações orçamentárias do Ministério da Defesa.
Somos uma nação continental com quase 8.000 quilômetros de extensão costeira, e, a despeito disso, nossos meios navais são inferiores àqueles de que dispõe a Marinha italiana[7]. Temos um oceano sobre o qual poderíamos projetar poder e gerar o capital político e militar necessário a uma investida séria com vistas à obtenção de um assento permanente no CSNU, mas o nosso empenho retórico e dissuasor se concentra em declarações de intenções arrancadas a preços exorbitantes de membros permanentes e aspirantes a uma cadeira cativa no CSNU, reconhecendo o capitalismo de zoológico chinês como uma “economia de mercado” e forçando a barra em visitas oficiais, para que outros líderes endossem a aspiração brasileira. Nossos concorrentes são uma potência nuclear cuja economia cresce à ordem de 7,5-8% ao ano, um colosso tecnológico-industrial que corresponde à segunda maior economia do globo e uma potência científico-tecnológica européia que dispõe do estado-da-arte em matéria de equipamento militar no Velho Mundo[8]. O Brasil, de sua feita, tem um PIB nominal pouco superior ao da cidade de Nova York, uma Força Aérea indulgentemente modesta, uma Marinha de Guerra que definha há mais de uma década e nenhuma frota de bombardeiros médios ou pesados. Some-se a isso limitações constitucionais que fazem da guerra uma realidade só quando uma hipotética aviação inimiga já estiver despejando bombas sobre nossos desprotegidos centros industriais, inversões mínimas na área de Pesquisa & Desenvolvimento militares e, enfim, um Exército cuja experiência aproveitável em teatros operacionais ultramarinos vem sendo deliberadamente atrofiada pela mais absoluta indiferença dos formuladores do pensamento estratégico em relação à necessidade de envolvimento de forças brasileiras nas operações de paz das Nações Unidas – ou mesmo ao lado de uma superpotência que faz ouvidos moucos ao assembleísmo imobilista de Nova York e resolve, manu militari, alterar o equilíbrio regional no Oriente Médio.
A estratégia do blefe gradual
O impedimento não é direcionado e tampouco tem o Brasil como molde, mas as condições das quais o País passa ao largo. O poderio militar de um país candidato a um assento permanente no CSNU deve ser global – global capabilities – ou regional – regional capabilities. O Brasil, sem embargo do porte geopolítico e das possibilidades (quase deterministas, no sentido ratzelliano[9] do termo) de projeção de poder regional, é um país cujas Forças Armadas não conseguem sequer assegurar, para fins absolutos, a ordem e a segurança locais (embora esta tampouco seja sua missão constitucional). Nossas fronteiras porosas são virtualmente desguarnecidas, incapaz por termo à entrada de armas e drogas em território nacional e mesmo a eventuais incursões de forças paramilitares estrangeiras. A Lei do Tiro de Destruição (“Lei do Abate”) é fato recente, de conseqüências que ainda não podem ser inteiramente analisadas. A orientação defensiva e quase resignada das unidades do Exército nas fronteiras amazônicas, perante as afrontas de forças paramilitares colombianas, contribui para suscitar na corporação a desnecessidade de uma postura ativa e ofensiva. O estabelecimento de reservas indígenas de dimensões semelhantes às de nações européias, em áreas de fronteira ou em perímetros estratégicos, nos quais a entrada das Forças Armadas é vetada, agrava o quadro. É transmitida a idéia de que há no Brasil setentrional “territórios semi-autônomos”, sobre os quais o poder estatal não pode agir, tendo como subproduto o mal-ajambrado conceito de que o Brasil é um país não totalmente pacificado e com problemas de ordem doméstica que tornam improvável a possibilidade de que o País venha a se engajar efetivamente – seja no âmbito da vontade ou no tocante à capacidade material - na pacificação de rincões como Chechênia, Kosovo, Congo, Darfur ou Afeganistão.
O que nos guia à conclusão de que nenhuma potência, seja ela membro permanente ou não do CSNU, considerará ou apoiará decididamente o ingresso de uma nação cuja máquina de guerra e vontade política de usá-la está sensivelmente aquém das capacidades dos próprios membros e dos demais candidatos. Almejar um assento permanente no CSNU é um tour de poder, e desejar fazer parte de um pool de superpotências sem dispor de um poder comparável ao delas é pura e simplesmente um blefe. E blefes, bem o disse Winston Churchill[10], são promissórias emitidas a uma nêmesis – Stálin que o dissesse, quando a tempestade alemã de fogo e aço desabou sobre a Rússia, no verão de 1941. Ou ele simplesmente é tomado pelo que é, desacreditando seu postulante, ou a conta não tarda a chegar – impondo ao País responsabilidades acima de seus meios.
A política externa de sindicato
A inércia brasileira diante de um estado de semi-anarquia na Bolívia; o vieses condescendentes e escapistas perante o rearmamento de uma Venezuela aparentemente decidida a se tornar, pela força das armas, uma potência regional; e a abstenção em relação às facções paramilitares colombianas: tais ações integram, de um lado, o flanco passivo da ação estratégica brasileira no continente. No flanco ativo, tem-se o voluntarismo presidencial em assuntos externos, o verbo de palanque da Chancelaria, a tentativa de articulação de uma política externa que mais lembra uma política sindical e a auto-humilhação relativa aos países-chave no apoio ao assento permanente no CSNU, ridicularizando o serviço diplomático brasileiro e dando a entender que nossa política externa serve a virtuoses imediatistas. Previsível é, portanto, que os resultados não sejam os melhores.
Quer nos parecer que o Brasil depositou seus anseios de grandeza institucional face às nações nas mãos de um grupo de homens que age de forma bastante semelhante à do diplomata francês que, durante a II Guerra Mundial, sugeriu a Stálin que os soviéticos abrandassem as perseguições aos católicos, a fim de melhorar a imagem do Kremlin com o Papa. Stálin teria respondido: “O Papa!...Quantas divisões tem o Papa?”. O Brasil, ao que se afigura, quer confrontar o mundo com o suposto fato de que nos atribuir maior importância política fará com que uma parcela pivotal dos Estados reveja o curso de suas políticas externas e domésticas, prerrogando a solução de um número de problemas que compensaria a atribuição de maior importância política ao Brasil por meio de um assento no CSNU. Não tardará, portanto, até que alguém pergunte, de uma forma ou de outra: “O Brasil!...Quantas divisões tem o Brasil?”
[1] Marinha tem projeto para a Amazônia Azul. Gazeta Mercantil, 23/06/2005.
[2] Extraído de
http://www.defesabr.com/Md/md_recursos.htm . Àqueles que porventura se interessarem por um projeto simulado de reformulação das Forças Armadas, conferir o portal
http://www.defesabr.com, desenvolvido e mantido por Roberto Silva. Cuida-se de um trabalho soberbo e minuciosamente argumentado, simulando um projeto de total reequipagem e reestruturação das FFAA até 2020.
[3] Ibidem
[4] Ibidem
[5] A Amazônia Azul compreende as águas jurisdicionais brasileiras, nomeadamente a ZEE e a plataforma continental. Corresponde a uma área de 4.451.766 km2, equivalente a 52% do território continental. A costa brasileira tem 7.491 km de extensão.
[6] Ver o projeto de Roberto Silva, supracitado, sobre a necessidade de três frotas para a Marinha do Brasil, sediadas em pontos estratégicos ao longo da costa: a 1ª Frota teria como base Sepetiba, no Rio de Janeiro; a 2ª Frota estaria baseada no Recife, em Pernambuco; a 3ª Frota estaria sediada na Ilha de Marajó, atual Estado do Pará, com vistas ao controle do litoral sententrional e do acesso à foz do Rio Amazonas.
[7]
http://www.defesabr.com/Mb/mb_marinhas_Parte1.htm [8] Respectivamente, Índia, Japão e Alemanha. Nigéria e África do Sul – e há divergências quanto ao Brasil fazer parte do “primeiro pelotão” ou do “segundo pelotão” - integram a segunda coluna de candidatos a um assento permanente, embora os endossos à candidatura das mesmas seja mais um gesto positivo de boa vontade e incentivo ao aprimoramento das instituições domésticas do que uma sondagem real com vistas à aceitação dos dois países africanos como membros permanente do CSNU.
[9] Cf. RATZEL, Friedrich. Politische Geographie oder Geographie der Staaten, des Verkehrs und des Krieges.
[10] CHURCHILL, Winston. Memórias da Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.