Exército negocia com tráfico e retoma armas
Militares recuperaram fuzis e pistola no domingo em troca do fim
das ações; comando militar diz que informação é absurda
Raphael Gomide
Sucursal Rio
Colaboraram SERGIO TORRES e
MARIO HUGO MONKEN, da Sucursal do Rio
Integrantes do Exército negociaram sigilosamente com a facção criminosa Comando Vermelho a recuperação de dez fuzis e uma pistola roubados de um quartel do Rio, em São Cristóvão (zona norte), no dia 3 de março, segundo relatos feitos à Folha por pessoas envolvidas. As armas já estavam em posse do Exército desde domingo à noite.
Elas estão com a numeração raspada em três diferentes lugares. Um comboio de 12 carros descaracterizados, com homens fortemente armados do Exército transportou, no domingo à noite, os fuzis e a pistola até uma unidade da instituição. Militares celebraram o sucesso da operação no mesmo dia.
Às 19h40 de ontem, o Exército anunciou oficialmente a recuperação das armas. Informou que foram encontradas em um local em São Conrado, bairro vizinho à Rocinha.
Apesar de já estar com o armamento desde domingo, o Exército realizou uma megaoperação ontem na Rocinha. Havia feito o mesmo anteontem na favela do Dendê, na Ilha do Governador, e na Vila dos Pinheiros, na Maré, ambas na zona norte.
A operação sigilosa para recuperar as armas, cuja negociação ocorreu entre a sexta-feira, dia 10, e o domingo, 12, envolveu um líder da facção criminosa Comando Vermelho que não está preso.
Ele negociou a devolução do material a fim de livrar favelas da facção da operação de asfixia do Exército, que reduziu drasticamente o lucro da venda de drogas nas áreas ocupadas. O negociante da facção assumiu que o Comando Vermelho fez o assalto e manteve as armas escondidas até o fim de semana em uma favela plana (o que não é o caso da Rocinha), na qual a venda de droga está sob seu controle, como a Folha informou no dia 9.
O acordo
Para devolver as armas ao Exército, o negociador apresentou três pré-condições:
1) fim das operações de asfixia das tropas do Exército nas favelas do Rio -o que aconteceu entre domingo e segunda-feira;
2) apresentação pública das armas como se tivessem sido apreendidas em uma favela na qual a venda de drogas estivesse sob domínio da facção inimiga, a ADA (Amigos dos Amigos);
3) transferência de um líder do CV do presídio Bangu 1 para Bangu 3 ou 4. Essa transferência pode demorar algum tempo para acontecer, para não aparentar ligação com a operação e por depender da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio.
Rocinha
Ontem, às 10h07 -depois de iniciada no domingo uma fase que o Exército classificou de "seletiva e pontual", sem operações "massivas"-, cerca de 400 soldados ocuparam a favela da Rocinha, a maior do Rio, onde a venda de droga é comandada pela facção criminosa ADA.
A Folha soube da operação na noite de anteontem. Às 9h de ontem, quando a reportagem chegou à entrada da Rocinha, era normal o movimento de moradores. Com um radiotransmissor, o jornal acompanhou os diálogos travados por traficantes.
A chegada das tropas à Rocinha os surpreendeu. "Olha o comboio do Exército! Tá vindo comboio do Exército, lá na estrada da Gávea! É muito caminhão, tem tanque de guerra! Os caras estão vindo para cá!", começou a gritar muito nervoso, pelo rádio, um vigia do tráfico na favela, que antes fazia brincadeiras com outros colegas.
Os traficantes negaram estar com os fuzis. "As armas não estão com a gente, não! Aqui não tem [fuzil] 7.62!", gritou um rapaz, pelo rádio. ""Vai lá buscar no Complexo do Alemão. Está tudo lá. Aqui é o bonde do tesouro. Temos dinheiro para comprar armas, não precisamos roubar", disse outro.
Abacate
Após o desespero inicial, em que descreviam freneticamente o poderio militar da Força, os traficantes da Rocinha passaram a fazer ameaças por rádio e a negar estar com as armas.
"Vai entrar na bala geral. Barulha os caras!", disse outro. "Vagabundagem, fica na atividade, subiu o maior bondão de abacate [Exército]!", disse um traficante.
Com um potente aparelho de som instalado em um jipe militar estacionado em frente a um dos pontos mais movimentados da favela, o Exército pedia ajuda à população da favela. ""Atenção moradores da comunidade. O Exército brasileiro vai recuperar as armas desviadas. Denuncie os assaltantes. Sua identidade será preservada. Exército brasileiro. Braço forte e mão amiga."
Pelos radiotransmissores, os traficantes falavam sobre a conduta surpreendente dos militares. "O periquito [como os traficantes chamam os militares do Exército] em vez de ficar na atividade, fica de costa para vagabundo", disse um deles.
General diz que não faz acordo com criminosos
Sucursal de Brasília
Questionado sobre a existência de negociações com a facção criminosa Comando Vermelho para a recuperação das armas, o comandante do Comando Militar do Leste, general Domingos Curado, qualificou a hipótese de absurda. "O Exército não negocia com criminosos e age dentro da lei", afirmou, após se reunir com o ministro da Defesa e vice-presidente, José Alencar, e com o comandante do Exército, Francisco Albuquerque.
Ele afirmou ontem que ainda não é possível saber se as tropas deixarão o Rio. Segundo ele, existe um Inquérito Policial Militar (IPM) em curso e, se houver novos mandados, a Força poderá entrar novamente nas favelas cariocas.
Exército diz que achou armas após denúncia
General afirma que armamento foi localizado com base em
informação de "um elemento que passou e se evadiu"
Mario Hugo Monken
Sucursal do Rio
Pedro Dias Leite
Sucursal de Brasília
O chefe do Estado Maior do Comando Militar do Leste, general Hélio Chagas Macedo, disse ontem que o Exército chegou a localização dos dez fuzis e de uma pistola por intermédio de uma pessoa que passou no local onde estavam os militares na favela da Rocinha (São Conrado, zona sul) e relatou onde estavam as armas.
O armamento foi achado por volta das 18h30 na localidade conhecida como Esqueleto, na estrada das Canoas, em São Conrado, entre a Rocinha (onde a venda de drogas é controlada pela ADA) e o Vidigal (Comando Vermelho). A operação de resgate contou com a participação da PM. Segundo o Exército, o informante fugiu. A Força não deu informações a respeito dele nem de como as armas foram encontradas.
"Houve uma denúncia no local de um elemento que passou, fez a denúncia e se evadiu", declarou Macedo. Ele disse acreditar que os próprios traficantes teriam revelado a localização das armas porque as ações do Exército estavam sufocando o comércio de drogas.
Não quis mencionar, porém, sobre suspeitos porque há um Inquérito Policial Militar (IPM) em andamento. Não quis falar também qual facção criminosa teria comandado a ação.
"A entrega das armas mostra que não estava sendo conveniente [para o tráfico] a presença do Exército. As operações levaram a esse quadro de que era melhor devolver o armamento do que continuar as ações de vulto nas favelas. Foi melhor para eles [os traficantes]. A devolução do armamento diminuirá a presença ostensiva em número do Exército", disse.
O Ministério Público Militar, que auxilia as investigações sobre o roubo do armamento, informou que já existem quatro suspeitos identificados. Dois seriam ex-militares do próprio Estabelecimento Central de Transportes, onde houve o roubo, sendo que um deles é morador da favela Nova Brasília, no complexo do Alemão (zona norte), com venda de droga controlada pelo CV.
Um outro seria parente de um dos ex-militares suspeitos e o quarto, um civil. Nenhum deles foi preso ou indiciado até agora.
Compreensivos com o crime
O vice-presidente da República, José Alencar, afirmou ontem que "nós estamos sendo muito compreensivos com o crime no Brasil" e deixou claro que o Exército pode voltar às ruas do Rio de Janeiro, desta vez para ações contra criminosos, se houver um pedido do governo do Estado.
"Se houver um pedido do governo do Rio para que o Exército participe em alguma ação episódica para minorar os problemas da criminalidade no Rio, o Exército jamais se furtaria e não se retira", disse Alencar, que acumula o cargo de ministro da Defesa.
Alencar afirmou que a ação do tráfico foi um "atrevimento". "Agora, o Exército obviamente que tinha de estar presente a todas essas áreas, porque tinha de buscar o que lhe pertencia. Mas não é apenas isso. Um atrevimento. Nós estamos sendo muito compreensivos com o crime no Brasil. E, com essa compreensão, o crime vai crescendo. Então tem de haver ações dessa natureza para mostrar que o crime não compensa."
O vice afirmou que deu a informação sobre a recuperação dos dez fuzis "imediatamente" ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele também disse que o êxito da ação era de responsabilidade do governo do Estado do Rio de Janeiro e da Polícia Federal, numa clara tentativa de evitar uma guerra de egos.