Fonte: http://www.jb.com.br
Há que se receber com grande cautela o súbito interesse norte-americano pelo álcool e pelo biodiesel do Brasil. O discurso de Bush, anunciando o desejo de depender menos do petróleo do Oriente Médio, e o divulgado propósito de grandes grupos norte-americanos, a começar pela Microsoft, em investir na produção brasileira de etanol, não devem trazer-nos esperanças, mas, sim, gravíssima preocupação. Com civilização fundada no alto consumo de energia - e civilização que exportou ao resto do mundo -, os norte-americanos são, como reconheceu Bush, viciados em petróleo. Querem, agora, trocar de vício.
É aí que a porca torce o rabo, segundo a boa filosofia rural. O grande interesse do Norte pela Amazônia não é bem pelo oxigênio que a floresta produz, mas pela sua biodiversidade e pela reserva de espaço para ocupação futura. O leitor já imaginou o que seria transformar as grandes florestas e o vasto cerrado em extenso canavial, com as sobras vegetais da saccharum officinarum servindo para nutrir o gado confinado? Nos espaços restantes, é claro, seriam produzidos os grãos - entre eles, o de soja - que alimentariam o mundo. Seria, ao mesmo tempo, gerar a força motriz do álcool, e produzir as proteínas vegetais e animais. Isso sem falar na madeira a ser retirada.
Essa é a saída estratégica para os Estados Unidos, e não se trata de idéia nova. Há mais de 50 anos, a revista de estudos Anhembi, dirigida pelo escritor Paulo Duarte, tratava de dispersos projetos de transformação do Brasil em celeiro dos ricos, ou seja, de transformar o nosso país em permanente fornecedor de matérias-primas ao mundo. Mais ou menos na mesma época, o Marechal Tito denunciava projeto semelhante da União Soviética, de preterir a industrialização dos Bálcãs, e destinar o fertilíssimo Vale do Danúbio à produção de alimentos para o consumo dos países socialistas industrializados. É bom registrar que só se assemelham àquelas terras do Danúbio as glebas entre os rios Paraguai e Paraná, e a extensa Pampa Úmida da foz do Rio da Prata, em nosso continente. Tito, alegando razões doutrinárias (o modelo iugoslavo de autogestão do socialismo), mas também denunciando o projeto de colonização agrícola da região, rompeu com Stalin. Manteve a Iugoslávia como líder dos países não alinhados - até sua morte, que trouxe o fim da unidade daquela confederação.
Como os impérios não atuam à mercê das coincidências, mas, sim, com planos de longo prazo, já foi aprovado, na Câmara, projeto que autoriza o governo a ''arrendar'' milhões de hectares de terras amazônicas. E aí nos recordamos de que a boa-fé costuma ser pior do que a má-fé: os diabos se escondem dentro das almas virtuosas. O poder Executivo, por iniciativa da ministra Marina Silva, recosturou projeto do governo Fernando Henrique de conceder, pelo prazo de até 40 anos, o uso dessas áreas à exploração privada. Para iniciar o grande negócio, os estrangeiros (os norte-americanos, mas, também, os chineses) só precisam aprovar seus projetos, obter a concessão e começar a agir. No passado, havia a preocupação de evitar a alienação de grandes áreas aos estrangeiros. A concessão atual é o primeiro passo para que eles se tornem senhores de vastos territórios e neles criem suas próprias leis.
Alega-se que o governo brasileiro não tem conseguido impor a ordem na Amazônia, e que os concessionários seriam capazes de fazê-lo, na exploração racional dos recursos naturais sem comprometer o meio ambiente. O Estado é, sim, capaz de ordenar a exploração racional dos recursos naturais, mediante empreendimentos dos quais detenha controle acionário, e com presença militar na região. Não podemos pedir a outros que imponham ordem em nossa casa.
Há mais de um século, brasileiros liderados por Plácido de Castro foram capazes de conservar a soberania nacional no Acre, contra os interesses norte-americanos do Bolivian Syndicate.
Esta é a nossa esperança. Quando o Estado não se faz presente, o próprio povo costuma defender a soberania sobre o seu território.
*MAURO SANTAYANA