Nasceu José Bonifácio a 13 de junho de 1763. Fazia parte de uma das famílias mais ricas de Santos. O pai, funcionário da Coroa, figurava no Recenseamento de 1765 como a segunda fortuna da cidade. (...)
Coimbra reunia grande número de brasileiros, representantes das famílias mais ou menos ilustres da colônia ou membros de sua clientela. Durante o século XVIII, cerca de 1700 brasileiros matricularam-se na Universidade, dos quais 68 pertenciam à capitania de São Vicente. (...) A primeira elite brasileira, a responsável pela institucionalização do país depois da Independência, foi quase toda ela formada na Universidade de Coimbra, o que é um dado significativo para sua compreensão.
Alguns anos antes de José Bonifácio chegar a Coimbra, a Universidade passara por profunda transformação. Pombal, no seu intento de reorganizar Portugal, segundo diretrizes que a burguesia vinha preconizando nos vários países da Europa, procurou modernizar o ensino, ainda preso à retórica clássica. Introduzir na Universidade os métodos mais modernos do empirismo. Abrir a Universidade ao movimento das Luzes que empolgava o pensamento europeu, varrer o obscurantismo e a rotina em que estava mergulhado o ensino, combater a influência dos jesuítas eram os seus principais objetivos. Com a reforma remodelaram-se os cursos, dando-se maior importância aos estudos científicos. Condenou-se o ensino “meramente teórico e livresco”, preconizando-se a observação direta da natureza. Na Faculdade das Artes, na qual ingressaria alguns anos mais tarde José Bonifácio, desenvolveram-se estudos de filosofia e ciências da natureza.
Quando José Bonifácio chegou a Portugal no entanto, já o Ministro Pombal caíra em desgraça e a Universidade estava longe de se pautar pelas normas do pensamento ilustrado. Atravessava-se um período de repressão às idéias que pareciam por demais avançadas para um Portugal arcaico e carola. O Alvará de 5 de fevereiro de 1778 mandara apreender muitos livros de “perniciosa doutrina”, não só capazes de corromper os bons costumes, como dizia o alvará, mas igualmente contrários “à santidade da religião católica e ao sossego público”. Com a queda do ministro, a reação tomara conta de Portugal. Vários lentes foram submetidos a processo por lerem autores franceses, principalmente Rousseau. No ano seguinte, o reitor Francisco de Lemos foi exonerado, sendo nomeado em seu lugar o Principal da Santa Igreja de Lisboa, “com a missão de providenciar contra o ardor revolucionário com que os jovens de aplicavam à lição voluntária dos livros de errada doutrina”.
No Reino da Estupidez, poema satírico publicado em 1785 atribuído a um estudante brasileiro, Francisco de Melo Franco, que na opinião de alguns contou a com a colaboração de José Bonifácio, mestres e cursos são impiedosamente criticados.
A Reforma trouxe à Universidade de Coimbra alguns professores “dignos de tal nome” – dizia-se no poema – mas para distingui-los seria preciso “ter a vista bem perspicaz: tanto reina ainda aqui mesmo a Estupidez”. Sobre os estudantes de Leis, e José Bonifácio era um deles, observava-se que o único fruto que levavam era a “pedantaria, a vaidade e a indisposição de jamais saberem, enfarinhados unicamente em quatro petas do Direito Romano”, não sabendo “nem o Direito Pátrio, nem o Público, nem o das Gentes, nem Política nem Comércio”, nada que fosse útil enfim. O poema denunciava ainda o atraso de Portugal em relação ao Progresso de outros países, as arbitrariedades cometidas pela fidalguia, a falta de compostura do clero, o fanatismo, a credulidade e a ignorância do povo em geral, condenando a submissão de Portugal aos estrangeiros:
Miserável nação! Que fielmente
Os tesouros franqueia aos Estrangeiros
Por chitas, por fivelas, por volantes
E por outras imensas ninharias!
Relatava, enfim como a Estupidez fora introduzida na Academia.
É nessa Universidade, “Reino da Estupidez” de onde a reforma Pombalina não conseguira varrer, de todo, os modelos tradicionais, que José Bonifácio inicia-se nos autores da Ilustração, ampliando, ao mesmo tempo, seus conhecimentos dos clássicos.
Leitor incansável, José Bonfiácio não se contentaria com o que lhe era ensinado na Universidade. Suas notas dispersas hoje em vários arquivos e suas poesias está, assim como suas cartas, cheias de referências a Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Locke, Pope, Virgílio, Horácio, Camões, denotando uma formação humanista ampla e familiaridade com os autores da Ilustração, o que irá explicar mais tarde suas teorias políticas.
Embora continuasse a versejar, as preocupações científicas passaram ao primeiro plano, fixando-se seu interesse nos estudos de mineralogia. Contando com o apoio do Duque de Lafões, conseguiu, depois de formado, uma viagem de estudo pela Europa, viagem que se prolongou por dez anos, durantes os quais prosseguiu os estudos acompanhando cursos de Química de Fourcroy, Lavoisier, Jussieu, fazendo estágios em regiões mineiras da Europa (Tirol, Estítira, Caríntia), viajando pela França, Alemanha, Áustria, Hungria, Suécia, Noruega, Dinamarca. Quem o encontrasse naquela época veria nele o jovem cientista interessado em mineralogia e jamais suspeitaria que vinte anos mais tarde viria ele a desempenhar importante papel na emancipação da colônia portuguesa na América.
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Na França esteve em plena Revolução, nos primeiros meses de 1791, guardando uma penosa impressão dos movimentos revolucionários e da agitação das massas. Entre os autores da Ilustração, se alinharia melhor ao lado de Voltaire e Montesquieu, do que de Rousseau. Sua irreverência em matéria religiosa, sua desconfiança em relação às massas, sua pouca simpatia pelos regimes democráticos lembram as críticas de Voltaire ao clero em geral e o seu horror à canaille. Seria um liberal, mas nunca um democrata. Suas idéias, aliás, acompanhavam de perto as de Melo Franco, ele também discípulo de Locke, Condillac, Helvetius e Cabanis, para quem a “licença de uma grande liberdade” era tão nociva quanto os despotismos.
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O ideário político de José Bonifácio.
Tendo vivido mais de trinta anos na Europa, identificara-se em vários aspectos com o pensamento ilustrado assimilando a visão crítica da burguesia européia, condenando o latifúndio improdutivo, o trabalho escravo, valorizando o trabalho livre e a mecanização. Da Ilustração também lhe viera um acentuado anti-clericalismo, sua confiança na eficácia da educação como meio de transformação da sociedade, incluindo-se a educação feminina, sua aversão aos privilégios e títulos de nobreza e a todas as formas de absolutismo. Não daria nunca sua adesão às soluções revolucionárias, encarando com desconfiança o que considerava “excessos de liberdade”. O chefe de Estado, a seu ver devia ser menos um líder revolucionário, um representante do povo do que um déspota esclarecido, e menos um déspota esclarecido do que um monarca constitucional.
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Toda sua vida se regeria por esse quadro de valores. Abominava os “extremos” da República, não desejando tampouco um governo absolutista. Por isso se oporia em 1823 ao Imperador como se opusera às intenções republicanas de Ledo e Januário da Cunha Barbosa.
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Temeroso das mudanças bruscas e radicais, mais confiante no “progresso do espírito humano”, não seria avesso às transformações lentas e progressivas. “Os que se opõem às reformas”, escreveria ele, criticando os adeptos do status quo, “por nímio respeito da antiguidade”, por que “não restabelecem a tortura, a queima de feiticeiros etc.? Seriam nossos pais culpáveis para com os seus antigos quando adotaram o Cristianismo e destruíram a escravidão na Europa? Não era isto abandonar a antiguidade para ser moderno? E por que não aproveitaremos nós as luzes do nosso para que a nossa posteridade tenha também uma antiguidade que de nós provenha, mas que o deixe de ser, logo que o progresso do espírito humano assim o exigir?” E em outra ocasião: “Nas reformas deve haver muita prudência, se conhecer o verdadeiro estado dos tempos, o que estes sofrem que se reforme, e o que deve ficar do antigo. Nada se deve fazer aos saltos, mas tudo por graus, como obra da Natureza”.
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Seu programa político filiava-se a uma posição conservadora, consentânea com os interessados no estabelecimento de um regime monárquico no qual o poder real ficasse limitado pelo compromisso constitucional e pela atuação do Legislativo, recrutado pelo voto qualificado. Divergia apenas quanto à fixação dos limites do poder real. As oligarquias rurais, aliadas aos elementos mais liberais, nesta questão, consideravm imprescindível limitar o poder real, submetendo-o à hegemonia do Legislativo que poderiam facilmente controlar. Interpretando o ponto de vista burocrático, José Bonifácio pretenderia reforçar o poder do rei, receando o governo das oligarquias.
O radicalismo de José Bonifácio.
Se o seu programa político aproximava-o mais dos conservadores do que dos liberais, seu programa social e econômico afastava-o dos conservadores, colocando-o ao lado dos liberais mais extremados que na prática política perseguia e na teoria não raro ultrapassava. Embora jamais chegasse a aceitar a apologia revolucionária e democrática da Nova Luz Brazileira, jornal contundente aparecido em 1829 ou do Jurujuba dos Farroupilhas (...), José Bonifácio estaria, no entanto, identificado com as opiniões desses jornais no tocante à aristocracia, tratados de comércio, abolição da escravatura e extinção do latifúndio improdutivo.
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Mais incômoda ainda à aristocracia rural do que sua aversão aos títulos de nobreza e seu sarcasmo ferino eram sua intenção de pleitear a cessação do tráfico e a gradual emancipação dos escravos, assim como suas críticas ao latifúndio e seus projetos de reforma do sistema de propriedade da terra. (...) A idéia de substituir o trabalhador escravo pelo livre aparecia, na época, aos olhos da maioria, como sonhos de visionário e de nada adiantaria o exemplo de José Bonifácio que introduzia na sua propriedade em Santos vários imigrantes com a intenção de demonstrar aos seus compatriotas a viabilidade de sua sugestão.
Repetindo os argumentos de Rousseau e Condorcet, escreveria José Bonifácio que a sociedade civil tem por base primeira a justiça e por fim principal a felicidade dos homens e prosseguia dizendo: “mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem e o que é pior dos filhos deste homem e dos filhos destes filhos? Nos dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. Não vos iludais, Senhores, a propriedade foi sancionada para o bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais e de se tornar de pessoa a cousa, (...) Não é pois o direito de propriedade que querem defender, é o direito da força, pois que o homem não podendo ser cousa, não pode ser objeto de propriedade”.
Ao mesmo tempo que combatia nesses termos a escravidão, recomendava o uso de máquinas que diminuíssem a necessidade de mão-de-obra e observava que, se fossem calculados os custos da aquisição das terras, dos escravos, dos instrumentos rurais que cada um necessitava, seu sustento, vestuário, moléstias que os dizimavam, fugas repetidas, ver-se-ia que o trabalho livre era mais produtivo. Parecia-lhe paradoxal que um povo livre e independente adotasse uma Constituição liberal e um regime representativo, mantendo escravizado mais de um terço da sua população. Considerava a escravidão corruptora da sociedade, responsável pelo pouco apreço ao trabalho, pela desagregação da família e deterioração da religião.
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Não obstante recomendadsse sempre que tudo fosse feito com moderação e circunspecção para evitar alvoroço da população escrava, sua posição apareceria como demasiado avançada aos olhos de seus amigos que viviam em função do trabalho escravo nas lavouras ou se enriqueciam às custas do tráfico.
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Igual escândalo deviam provocar suas idéias a propósito da política de terras expostas nas Instruções do Governo Provisório de São Paulo aos deputados da Província às Cortes Portuguesas, onde, no item 11, sugeria uma nova legislação sobre sesmarias, fundando-se para isso nas Ordenações do Reino e argumentando que as leis referentes à concessão de terras haviam sido desrespeitadas, permitindo-se contrariamente ao espírito da lei, a criação de latifúndios improdutivos “com sumo prejuízo da administração, da justiça e da civilização do País.” Por isso sugeria que todas as terras que não se achassem cultivadas reintegrassem os bens nacionais, permitindo-se aos donos conservar apenas meia légua quadrada, com a condição de começarem logo a cultivá-las. Recomendava ainda a instituição de uma caixa cofre para recolher o produto da venda de terras, sendo o capital acumulado empregado na promoção da colonização. Com esse objetivo sugeria fossem concedidos lotes de terra a europeus, pobres, índios, mulatos e negros forros. Recomendava finalmente que todos os proprietários de terra fossem obrigados a conservar a sexta parte de sua propriedade intata; coberta de matos e arvoredos, proibindo-se a derrubada e as queimadas, salvo quando fossem as matas substituídas por bosques artificiais. Procurava dessa maneira prevenir os inconvenientes oriundos do desflorestamento sem medidas.
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Também ao lado dos liberais estaria José Bonifácio em matéria de religião. Formado no convívio com os autores da Ilustração, conservaria por toda vida uma certa irreverência que lhe permitia fazer afirmações que certamente escandalizariam os meios católicos, mais conservadores como quando dizia que o catolicismo convinha mais um governo despótico que a um constitucional e que a “religião que convida a vadiagem e faz do celibato uma virtude é uma planta venenosa no Brasil”. Na discussão a propósito da liberdade de culto, travada na Assembléia Constituinte em 1823, suas simpatias estariam ao lado dos que a defendiam (Muniz Tavares, Custódio Dias, Carneiro de Campos), contrariando alguns dos seus mais fervorosos companheiros, tais como Azeredo Coutinho, que consideravam a liberdade de culto um atentado à religião”.
Na posição de intelectual e burocrata, formado na Europa, impreganado de idéias ilustradas, não diretamente vinculado aos meios agrários e mercantis, colocando-se freqüentemente contra os interesses desses grupos, José Bonifácio perderia progressivamente suas bases políticas.
Manifestara pouca simpatia pelos tratados de comércio com os ingleses e opunha-se aos empréstimos, considerando-os lesivos ao interesse nacional. Num dos seus textos analisa os efeitos do Tratado de Methuen, observando que “os portugueses deviam-se escandalizar da pouca gratidão britânica”. A Pontois, representante francês do Rio de Janeiro, confessava que todos os tratados de comércio e amizade concluídos com as potências européias eram puras tolices e que nunca os deixaria ter feito se estivesse no Brasil. Numa de suas cartas escritas do exílio, referindo-se ao tratado de reconhecimento da Independência do Brasil que estipulava o pagamento de 2 milhões de libras esterlinas a Portugal e obrigava o Brasil a assumir junto ao governo britânico um pesado empréstimo, comentaria José Bonifácio acremente: “ao menos temos a Independência reconhecida, bem que a soberania nacional recebeu um coice na boca do estômago de que não sei se morrerá ou se restabelecerá a tempo, tudo depende da conduta futura dos Tatambas” (referindo-se à elite responsável pelos destinos políticos do país).
Cartas Andradinas, A.B.N., 14, p. 11. “Os políticos da moda querem que o Brasil se torne Inglaterra ou França, eu quisera que ele não perdese nunca os seus usos e costumes simples e naturais e antes retrogradasse do que se corrompesse” dizia José Bonifácio (O. Tarquínio de Souza, O Pensamento Vivo de José Bonifácio, p. 137).
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Extraído de MOTA, Carlos Guilherme - 1822: Dimensões, Editora Perspectiva - São Paulo, SP - 1986 (2ª Ed).